Adejo sostenuto
Ter imaginado, imaginado que podia,
podia ser.
E ter de rir de si e ter de rir de dó e ter
de rir de lá.
podia ser.
E ter de rir de si e ter de rir de dó e ter
de rir de lá.
Ordem
Ó Vossa Iminência,
Vossa Iminência que nunca chega,
Vossa Iminência que não chega, chega.
Vossa Iminência que nunca chega,
Vossa Iminência que não chega, chega.
Arabesco
Quando você não diz nada, toda olhos, fogos e artifício, e nada digo eu, todo utopia, tiros e queda, não é que não dizemos nada. Poderíamos falar cobras e lagartos, serpentes. Poderíamos falar sem parar, caravana, miragens. Ou poderíamos simplesmente dizer deserto. Mas não, não dizemos nada. E é o que dizemos de certo.
Formigamento
Praga ou não, dei com as maçãs formigando ao erguer os olhos. Acho que o sangue para de correr pelo local, ou corre demais, não sei. A única coisa que sei é que sempre que acontece fico meio atarantado, pensando em esconder o rosto, mesmo não fazendo ideia de como seguir escrevendo com as mãos ocupadas, ou olhar só para o chão, arriscando viver vexado, ou até mesmo aguentar firme o formigamento e tocar em frente como todo mundo, cada qual com seu papel, ou folha... penso um pouco corado.
A tristeza do rei
Baixar édito –
é o ofício.
Baixa o tédio
e baixa a treva.
A trova cala
e cala o bobo.
A cama é larga
e larga o corpo.
Mas a alegria –
a alegria tem que reinar,
tem que reinar a alegria
em todos os quadrantes,
e o rei se dependura
(qual um quadro).
é o ofício.
Baixa o tédio
e baixa a treva.
A trova cala
e cala o bobo.
A cama é larga
e larga o corpo.
Mas a alegria –
a alegria tem que reinar,
tem que reinar a alegria
em todos os quadrantes,
e o rei se dependura
(qual um quadro).
Gatos e homens
(goeldiana)
Os gatos passeiam, de olhos acesos, entre móveis, vasos, vielas. Os homens sossegam, de olhos cerrados, entre persianas, penumbras, penhascos. Os gatos querem pular e pulam, como os sonhos, o muro. E as sombras, esgueirando-se meio-fio adentro, despertam a mais pálida suspeita.
Esperança
Não havia porto.
Corpos e mais corpos apenas.
Não que não houvesse braços.
E o abraço desesperado.
E a esperança de afundar.
Não havia esperança de mar.
Corpos e mais corpos apenas.
Não que não houvesse braços.
E o abraço desesperado.
E a esperança de afundar.
Não havia esperança de mar.
Banho de sol
Certas manhãs, despontando impossíveis de azul e luz, parece quererem nos lembrar que não devíamos estar fazendo isso. É quando com certo pejo rápido engavetamos os afazeres e – não sabemos bem o que fazer. O amor permanece proibido durante o expediente. A poesia, de fim de semana, se confunde com suplemento. O subterrâneo, que retumbava outra vida... Outra vida! É quando com certo pejo rápido descemos tomar banho de sol.
Artrose
Mexeu-se um pouco. Que tinha que fazer algo, isso lembrava, e que era urgente isso, lembrava. O que era... Mexeu-se. Era alguma coisa que tinha que ver. Olhou ao redor, nenhum pico à vista, e teve vontade de sentir saudade do tempo em que escalava as estantes. Intrépido. É, intrépido. Mas não se mexeu. Nem pra apanhar a manta, que de quando em quando deslizava como deslizavam as nuvens, lembrava. Via a cortina em sua queda congelada e teve vontade de sentir saudade do tempo em que mergulhava no trabalho. Pescou a manta, com o gancho do cabide, cobriu a cabeça. O ar – não, não faltava. Inspirava e expirava, regular.
Circulatura do quadrado
Indo de um canto a outro e deste àqueloutro e destoutro ao penúltimo e do penúltimo ao último canto, perfaz-se um quadrado. Perfazendo-o vida afora, em que pese a distração com a poeira que levantamos, observa-se com justeza que o último confina palmo a palmo com o primeiro canto. Não deixamos de perfazê-lo por isso, notando embora requerer sempre mais e mais esforço, à medida que mais e mais nos faltam forças. – Mas há o pó, o pó! o tom subindo, subindo e descendo em sua infinita variedade, e a réstia de sol, volta e meia nos dizemos, erguendo a coluna.
Autoimobilismo
As notícias chegam de fora. Volta e meia viaja um conhecido, um parente, e regressam cheios de malas e saudade. Ah, a Europa! E não só ela. A Ásia! A China! O Império! Quantos jardins suspensos não suspeita o pobre tronco! resvalamos a pena velada nos olhos dos descobridores, nós que mal nos movemos do leito. Só ficamos menos embaraçados quando as pedem de dentro. Balançam a cabeça, não sei se positivamente ou por polidez, e esperam assentar a poeira. Uma hora os braços caem, levantando mais poeira. É quando se levantam também. Felizmente não preciso acompanhá-los.
Labirintite
Ler o diário sem abanar a cabeça, eis arte que só a idade ensina. E se volta e meia topamos notícia imperiosa, a tentar-nos o equilíbrio estoicamente conquistado, cerramos os olhos, como que em oração matinal, o tempo talvez de uma ave-maria, um pai-nosso, surdo de todo aos rompantes do vulgo, e logo logramos reabri-los com a beatitude dos grandes santos. Se porventura anos afora, sabe Deus, pressentimos falecer-nos o árduo dom de levitar, resta virar a página e com sorte deparar nosso necrológio. Ou até mesmo fechá-lo, última saída. Tudo, tudo, irmão, menos cair na tentação de abaná-la. Não por reavivar o fogo da danação, este eterno, senão por prevenir mais alta desgraça, o inflamar o labirinto.
Parábola
Não reclamo. Se é sina andar em círculo, ando. Se ninguém nunca viu a figura, paciência. A esperança... vocês sabem. Por isso não reclamo, ando. Ou me arrasto, vá lá. Às vezes levo uma vida, caracol? carrossel? via-láctea? tateando a geometria dos passos. Geometria? A aspiral pode ser só aspiração, bem sei. Daqui, da poça, divisá-la, não há, senão em parte, braço, sino, cello. E se for uma parábola, uma parábola! e ergo os olhos. Os sóis, dardejando, parece também se desfazerem em sal ou cal, e caio queimando.
Ancien régime
Acompanhar nosso passamento passo a passo tem sido meu passatempo. E o tempo passa. Os arranjos por entretê-lo, ao império do dia frágeis, figuram coroas. Para que servem então – ó questão que morreu descabelada! Servem à cabeça, sabe Deus, ou sobem a ela.
Mistério dos transportes
Rasgando o futuro e desaguando na praça monumental, os maiores pensam em rodovias; já avenidas cogitam os grandes da vida, de preferência homônimas e culminando no arco do triunfo; há quem sonhe, lírico! com alamedas a cuja sombra possa folgar do insolente sol; não falo dos épicos, que devem planejar estradas sumindo no horizonte curvado de aventuras; menos ainda dos dramáticos, que atentam só aos buracos e ponto; em tempos verdes e ardentes bucólicos ainda vislumbram trilhas a receber-nos de cachoeiras abertas. Mas o último capiau, este sabe, picando o fumo, que é o fim da picada.
Flor de asfalto
Ó flor de betume que não corta
a corrente...
Trinca o cristal de crença, tão enorme
o normal.
Ó flor de bestunto que não enxerga o
enxurro, o cu do escuro, a bota/
Bota na cabeça.
a corrente...
Trinca o cristal de crença, tão enorme
o normal.
Ó flor de bestunto que não enxerga o
enxurro, o cu do escuro, a bota/
Bota na cabeça.
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