Tem lugares que eu me lembro, toda vida...começa assim uma das canções mais bonitas dos Beatles, In my life, do Lp Rubber Soul (1965), disco em que o grupo atinge o seu auge como banda.
Depois, viriam o Revolver e o Sgt. Pepper, em que o talento dos compositores continuou a toda, mas a experimentação de outras sonoridades – com orquestra, instrumentos hindus, naipes de metais, sons eletrônicos etc, – a chamada fase psicodélica, faria John Lennon dizer que, na maioria das vezes, durante as sessões de gravação, era Paul no piano, mais Ringo eoverdubs (que é como se chamam, no jargão, os acréscimos à base musical); e o próprio Ringo comentar que aprendeu a jogar xadrez nas sessões do Pepper, pois, após as gravações da base – quando a bateria era gravada – os outros Beatles passavam o tempo nos acréscimos sonoros.
Ou seja, o som básico e orgânico de uma banda com duas guitarras, mais baixo e bateria, bastando pra dar o recado, ficara pra trás, como ficaram para trás as apresentações ao vivo. Os Beatles seriam, a partir de 1967, uma banda de estúdio, onde realizaram – se não o seu melhor - o que fez o rock deixar de ser considerado apenas entretenimento para se alçar à categoria de obra de arte. Dionisíaco se rendendo ao apolíneo? O rock ficando adulto, perdendo a inocência edênica? Rubber Soul é o disco que marca essa transição, ainda não consolidada.
In my life também é uma das duas canções – a outra é Eleanor Rigby - em que Lennon e McCartney discordaram sobre quem compõs o que: segundo Paul, em depoimento na sua biografia autorizada – anos após a morte do parceiro – a melodia de In my life é toda dele, com partes da letra. Segundo John, ele iniciou a canção com letra e música, e Paul ajudou com a melodia da parte B.
Como era comum – mas não a regra – nas gravações dos Beatles, a voz principal da faixa era feita pelo compositor majoritário, e é Lennon quem cumpre esse papel, tendo ele declarado que essa era uma de suas canções que ele gostava. Como Lennon está morto, fica difícil resolver a questão, na verdade, irrelevante. A canção existe como algo uno, indivisível, partes harmonicamente combinadas. Perguntar sobre a participação de cada parceiro na composição apenas tenta responder à nossa curiosidade.
A gravação de In my life é uma síntese do que se constituía a mágica dos Beatles, como eles adequavam a canção ao arranjo e às técnicas de gravação (na faixa, além dos Beatles em seus instrumentos, tem um solo de piano tocado devagar, mas com a rotação alterada, feito por George Martin, produtor dos discos da banda)sem que a instrumentação se sobrepusesse à força da canção. Esta tem fluidez e simplicidade, adequada a um comentário denso/afetivo sobre a vida de um indivíduo e suas relações.
Depois de I'm a loser, do Beatles for sale(1964), Help e You've got to hide your love away (ambas de 1965), a canção dá seguimento ao Lennon confessional, que disse não gostar das próprias canções de amor adolescente, feitas para atender à demanda dos Beatles, mesmo que músicas como I'll cry instead e I don't want to spoil the party, ambas de 1964, sejam a cara dele, atormentadas e tocantes. Na sua carreira solo, John iria deixar de lado as canções "encomendadas", para falar de si.
In my life pode ser lida também como uma canção sobre a maturidade, ou o que esta significava para John Lennon: ao encontrar Yoko, ele dizia ter deixado a turma de amigos pra se dedicar à esposa, mesmo "sem perder a afeição pelos amigos e coisas que passaram".
Nesse sentido, a letra é curiosamente profética: faz um balanço do passado – com alguma melancolia – louvando os lugares, amizades e amores, mas entra na segunda parte cantando o primado do amor "arrasa-quarteirão", que seria o envolvimento de Lennon e Yoko, não ocorrido à época da canção, pois eles ainda nem se conheciam.
Em uma tradução livre:
mas de todos os amores e amigos
mais nenhum a ti agora se compara
quando penso no amor novo, paixão rara
as memórias quase perdem o sentido.
No final, Lennon canta:
Em minha vida, eu vou te amar mais.
Como disse Geoffrey Strokes, o irônico é que o amor entre um casal – que os Beatles mais cantaram em suas canções – tenha sido determinante para o fim do grupo.
In my life é também a canção que abre a sérieBeatles Anthology, com um vídeo remetendo, significativamente, à memória.
No mais, é tempo de caquis.
https://www.youtube.com/watch?v=cgB3qf4bjac
https://www.youtube.com/watch?v=3BT-93fvrFc