Por: Claudio Yuge
10/11/2010
Lembro-me bem da primeira vez que li alguma coisa do Laerte. Procurando pela rede para ser mais preciso, já que não tenho mais aquela edição, descobri que foi a história Ameaça Nuclear, do número 7 da finada Circo.
Leio quadrinhos desde muito guri e ná época, em 1987 ou 1988, quando tinha nove ou dez anos, já devorava coisas de Sherlock Holmes e de Júlio Verne, começava a me aventurar pelo policial juvenil Marcos Rey; era um nerd viciado em MSX.
E, mesmo assim, Ameaça Nuclear foi impactante. Caiu como uma bomba em meu cérebro e teria efeito semelhante, anos depois, com o que Watchmen, V de Vingança, Sandman e Cavaleiro das Trevas causou em minha mente.
O trabalho de Laerte, desde aquelas olhadelas quando criança, passou a ser uma constante em minha vida. Virou um troço pulsante, capaz de me tornar ainda mais inquieto. Impulsionou a me fazer escrever e criar, desenhar. ”Como é que esse cara consegue fazer traços tão soltos? Mesmo depois do nanquim?” Um mistério adolescente.
Já mais crescidinho, reli Ameaça Nuclear ao comprar novamente aquela Circo em um sebo. Depois li novamente anos depois. Em seguida perdi a revista, mas nunca mais deixei de pensar naquilo de tempos em tempos. E fui acompanhando a saga de nosso artista ao longo desse tempo.
Sempre gostei mais dele porque foi o que sempre se preocupou (ou não, de repente foi uma necessidade) em se reinventar. De expressar realmente aquilo que não cabe em si mesmo, não somente o que precisa expressar pra sobreviver.
Bem, enfim, depois desse blablablá todo, tenho o enorme prazer de apresentar a entrevista que fiz com ele recentemente, para o jornal que trabalho aqui em Curitiba, a Folha de Londrina.
Você já tem ideia de quantos álbuns já lançou?
- São sempre coletâneas de trabalhos que fiz, então deve ter uns 20 e poucos livros, acho. Uma conta um pouco confusa porque tem algumas editoras que foram à falência e livros que não estão mais disponíveis.
De onde saiu a iniciativa de publicar Muchacha’?
- Eu tinha negociado com a Companhia das Letras quando estava produzindo a história para o caderno Ilustrada (da Folha de S. Paulo). Essa história da Muchacha sucede uma série que estava fazendo sobre memórias da televisão, que foram publicadas no álbum Laertevisão (publicado pela Conrad Editora). Quando terminei, dei o ciclo de memórias pessoais encerrado. Mas eu gostei de ter acessado esse mundo dos anos 50, da televisão. Então comecei a investigar, a trabalhar esses seriados de ação que tinham na época pré-videotape…
Como quais?
- Falcão Negro. O Falcão Negro é a referência. O Capitão Tigre é uma espécie de Falcão Negro. Então fui criando outros personagens e aos poucos fui sentindo que aquilo era uma história. Daí passei a construir um roteiro fora da intenção inicial, que era só curtir um pouco.
O projeto foi mudando então conforme você foi produzindo?
- Comecei a fazer a história com uma ideia geral do que ia ser. Depois de um tempo fui achando que aquilo poderia ficar de pé e fui inventando um background para cada personagem. E aí comecei a construir capítulos para manter essa história em pé.
Você disse que tinha encerrado um ciclo de memórias com o Laertevisão mas depois se empolgou e prolongou esse ciclo com Muchacha. Sente ter encerrado esse ciclo agora?
- Estou na idade em que as pessoas começam a fazer memórias. É interessante fazer memórias quando você chega aos 60 anos, tem muito material. Não sei, as coisas que vivi nesse mundo do passado tem elementos que ajudam a pensar o presente.
Que exemplos você pode dar sobre isso?
- É simples quanto comparar as coisas. Hoje quando você pensa em seriado de televisão você pensa no modo americano de produzir, com 20 e tantos episódios, cumprir uma temporada, negociar essa temporada… Existe uma tradição firmada neste território de ficção que permite as pessoas trabalharem em cima de um terreno sólido. E naquela época não, era tudo improviso, tudo uma invenção a partir de quase zero. Isso faz a gente pensar que hoje em dia a gente pode estar numa fase zero, num terreno zero em relação a alguma coisa. Do que a gente vai lembrar daqui a 30 ou 40 anos que tinha hoje ou não tinha hoje? É um exercício legal de fazer. A televisão existe ainda, a televisão é um elemento comum, as pessoas assistem muito. Ela se tornou uma presença absolutamente total. Ter televisão é como ter uma casa.
Muito se fala sobre a ruptura de sua obra a partir de certo momento, especialmente com relação aos personagens, que você teria se cansado deles. Que fase é está que está vivendo?
- Eu cansei dos personagens. Acho que cansar não é a palavra certa. Senti que existia um ciclo que acabou, está cumprido. Fecha um período que me deu muito prazer, tenho muita satisfação pelo trabalho realizado nesses anos todos. Senti que está esgotado, já disse o que tinha que ser dito ali e senti a necessidade de uma busca nova. Parti para essa busca há uns cinco ou seis anos e estou nela, estou na estrada.
Sei que é muito abstrato falar sobre isso, mas você poderia dizer de onde vem essa diferente força criativa que vive neste momento?
- Não é de um lugar só. Identifico claramente uma época, que era o final da adolescência, quando tinha 19 ou 20 anos, como uma fase rica de significados, de busca, de procedimentos e pesquisa gráficos. Liberdade de ação, eram os anos 60, uma explosão geral. Eu também estava explodindo naquele negócio. De uma maneira esquemática, quando comecei a me profissionalizar, bloqueei várias dessas tendências e outras coisas e formatei um modus operandi profissional. ”Vou fazer humor, vou fazer piadas, meu desenho é mais ou menos assim…” Todo mundo faz isso de uma certa maneira na área de entretenimento e de comunicação, em busca de ser reconhecido, de ter sua assinatura associada a determinado tipo de trabalho. ”Ah, esse desenho eu conheço, é do fulano.” Sabe? Esse tipo de coisa. É uma preciosidade para o profissional. Agora, isso tudo entrou no pacote do ciclo cumprido pra mim. Não preciso mais desse tipo de afirmação de personalidade gráfica e senti vontade de voltar aos procedimentos e buscas quando tinha 20 anos. Não exatamente voltar no tempo, não estou me iludindo quanto a isso. Tenho a pretensão de buscar um pouco aquela energia criativa, aquela inquietação, aquela abertura de possibilidades.
O que não cabe mais dentro de você que precisa liberar criativamente? Digo, o que tem a dizer?
- Um artista nunca tem uma coisa pra dizer, acho eu. E estou me incluindo entre artistas só por uma questão expositiva. Nunca tenho uma coisa fechada pra dizer. Em princípio, o modo como vejo a atividade de desenho, ilustração, criação de histórias e autoria é busca, basicamente busca. Nesse sentido, estou sempre buscando, não tenho uma ideia muito clara de que tipo de conclusão posso chegar.
Não poderia deixar de tocar neste assunto. O crossdressing faz parte dessas mudanças, desta fase criativa que vive? Li que faz parte também de uma investigação sobre o universo feminino. Que conclusão chegou até agora?
- Também ainda não concluí nada (risos). A conclusão que chego é que é uma delícia. É um exercício de liberdade maravilhoso. Abrir a cabeça para esse tipo de possibilidade, compreender a vestimenta como algo que você pode manipular e conduzir de acordo com suas necessidades e fantasias e não apenas se submeter aos códigos de gêneros, essa descoberta é uma delícia incrível.
Você já tinha pensado nisso no passado?
- Já, mas de maneira confusa e obscura. Neste momento apenas cheguei à conclusão de que é possível mexer com roupas, sair com saias, sapatos e brincos e coisas assim.
Quando lembro desse assunto sempre me vem à cabeça Ed Wood e como ele enfrentou o estranhamento de se vestir como mulher. Esse estranhamento também acontece com você?
- Sim, um pouco. Não tenho sentido hostilidade muito grande. Tenho sentido estranhamento e um pouco de constrangimento. E uma certa surpresa, uma insegurança grande por parte das pessoas. Não estou completamente seguro também, vou ficando à medida com o tempo. Quando saio por aí vestido dessa forma, fico sempre de antena ligada. Muitas pessoas que me observam querem fazer uma crítica mas não sentem muito habilitadas a fazer essa crítica, existe de tudo…
Essa liberdade tem trazido benefícios na forma como cria, na sua profissão?
- Tem. Aí já é uma ligação um pouco mais abstrata. É uma coisa ligada com o estado de espírito de quando eu trabalho, que não dá pra definir direito.
O que você acha dessa nova geração que vem produzindo trabalhos legais, como o Bá e o Moon, o Rafa, seu filho, e outros?
- O trabalho do Rafa é bastante diverso e original. O caminho que eles estão tomando é complicado em relação ao caminho que eu tomei quando comecei. Se a gente pode resumir as condições da época, não existiam jornais e revistas. Essas coisas estavam sendo criadas à medida que a gente fazia o nosso debut no mundo profissional. Por exemplo, na questão da remuneração é claro pra mim isso. Quando comecei, com dois ou três trabalhos fixos conseguia pagar aluguel, gasolina do carro, monte de coisas e me sustentava, com uma grande folga… Nah, com uma pequena folga. Enfim, hoje isso é inviável, completamente impossível, as pessoas têm que inventar um troço a cada dia pra ir buscar recursos e tal. Não é nem um pouco simples. O Rafa tem uma atividade em artes plásticas que é uma arma na mão dele, é um recurso que ele se defende nessa área. O que eu tinha de formação em artes plásticas ou de vontade de fazer artes plásticas mandei pro espaço rápido quando comecei a desenhar profissionalmente. Esses meninos chegam numa hora em que já aconteceu todo o boom de quadrinhos e uma explosão de revistas nas bancas e tudo… Muitas editoras já foram à falência e de um modo geral os quadrinhos hoje estão se comportando mais ou menos à europeia: a ideia está muito mais centrada em fazer álbuns e vender nas livrarias e coisas assim, do que fazer gibis e conquistar bancas. É uma outra perspectiva. Acho legal pra caralho, conhecer coisas novas.
Você tem lido muita coisa nova, o que tem acompanhado?
- Pouca, em relação ao que tem por aí. Tenho visto o trabalho do Rafa, do Grampá… Revistas eu tenho lido a Beleléu, a Samba... Tem algumas coisas que eu sou fã permanentemente. O trabalho do Berardi, que hoje faz os trabalhos da Julia, a criminóloga. Esse cara vou ler sempre que pintar. Infelizmente foi cancelado o título por aqui. Os irmãos Hernandez, o que eles fizerem eu estou lendo. Difícil eu ficar citando porque esqueço um monte de gente. O Liniers… Vários autores japoneses que não consigo lembrar o nome, como o cara que fez Gourmet, o cara que fez Na Prisão… Europeus também, o Christophe Bléin, do Isaac, o Pirata, O Gato do Rabino… Vou conhecendo e trabalhando e me surpreendo de ver que são trabalhos já de alguns anos, o cara fez aquilo em 2003 ou 2002 e de eu só estar conhecendo isso agora.
O mercado cresceu assustadoramente nos últimos 20 e 30 anos…
- Sim, esse mercado sim, o das livrarias. Mas é engraçado, o mercado de livros é um mercado pequeno. As multidões que vão às feiras, às bienais de livro, na verdade elas estão atrás da feira e não dos livros. Existem alguns livros que vendem estupidamente, mas o livro mesmo, o mercado normal é reduzido no Brasil. E os quadrinhos foram, progressivamente, se enquandrando nesse mercado e abandonando um mercado que era muito grande, onde os leitores, pelo menos os que me interessam muito, o de pouco dinheiro na mão e que gosta de quadrinhos, está desprovido, não está sendo servido. O que está vindo para as bancas são os mangás, que é possível produzir barato. Revista de quadrinhos brasileira, a nossa turma, está indo toda para a livraria. É uma pena isso. Então, está havendo um boom de mercado nesse segmento de livraria, mas que pra mim, com a memória que tenho de quando a gente vendia até 100 mil exemplares em bancas, é um retrocesso, é um ‘desboom’.
E o que pensa em fazer depois de Muchacha? Já tem alguma coisa preparada?
- Vou fazendo um pé depois de outro. Não consigo mais fazer planos balzaquianos. Digo isso porque ele (Balzac), com 20 e poucos anos, teve a visão do que seria o trabalho da vida inteira dele. Escreveu, planificou, dividiu em segmentos e antes de escrever os 100 e poucos novelas, romances e contos, planificou tudo. Sou absolutamente ao contrário. Nunca sei o que vou fazer. Tenho um trabalho com o Otto Guerra, de animação, que mudou completamente, era pra ser a história dos Piratas (do Tietê) e agora vai ser uma baseada na história geral das tiras que faço…
Tem alguma coisa que gostaria muito de ter feito e não fez, deixou passar?
- Putz, um monte, quase tudo…
Mas algo em especial?
- Não sei, não me arrependo, sei lá… É meio que punheta mental, porque não existe como reconstruir as coisas assim… Me arrependo, por exemplo de ter me enfiado em jornalismo sindical e ter trabalho dez anos na Gazeta Mercantil. Eu me arrependo mas não tinha como, na época, saber e fazer diferente. Eu, hoje, acho que tinha como. Mas isso é idealismo, uma coisa tonta, a gente se investir de uma onipotência e uma onisciência, uma coisa irreal. Ninguém tem isso, só o Balzac.
Você se arrepende em que sentido? No sentido criativo?
- Não me arrependo de fazer o que fiz no jornalismo sindical. Mas acho que esqueci de outras coisas. Esqueci de determinados apuramentos gráficos que gostaria de ter desenvolvido. De apuros técnicos que não busquei. Mas como disse, isso é punheta mental, a vida é o que é e o que a gente fez, essa é a verdade.
Só para encerrar: tem alguma história que você consegue lembrar agora na qual gostaria de ter seu nome assinado embaixo dela?
- Quase todas as que eu gostei (risos). Na verdade o meu trabalho é uma tentativa de assinar as histórias que eu gostaria de ter assinado. Não estou me autochamando de plágio ou plageador, acho que minha motivação principal, e desconfio que é o da maioria dos artistas, é a outra arte, a arte dos outros, outros trabalhos. Pra mim é muito claro isso. Desde criança, quando estava desenhando, estava querendo ir atrás de um sentimento ou de uma emoção que tinha sido despertada com um filme, um livro, um quadrinho, qualquer coisa. Quase tudo o que fiz foi uma tentativa de assinar outra arte. Nesse processo dialético de você ver uma coisa, apropriar-se de partes dela, elaborar e reapresentar é uma definição de trabalho artístico, processo criativo. Não acredito muito em partir do zero, do nada, do éter, do caos, sei lá. Partimos de um mundo de ideias, criamos coletivamente junto com os autores que a gente ama.
Depois da entrevista, Laerte ainda disse que deve lançar mais um álbum com seu personagem Deus e mais uma coletânea pela Cia. das Letras. Enquanto esperávamos pelo táxi que nos levaria para o lançamento de Muchacha na Itiban Comic Shop, disse que vem pouco pra Curitiba e, mesmo com o frio que estava fazendo, não sentia frio nas pernas. ”Sempre pensei que mulher passava frio de saia. Mas essas meias são muito quentinhas!”
Percebi que aquele momento seria semelhante ao que Ameaça Nuclear causou quando criança. Iria me ”perturbar” para o resto da vida. Impulsionar novamente a escrever, a desenhar, a criar. Principalmente depois do que ele me ensinou. Sim, Laerte me explicou como consegue criar desenhos tão soltos depois do nanquim.
E dali em diante aprendi mais do que isso. Aprendi que as memórias desse Laerte podem parecer nebulosas ou surreais, como suas atuais tiras, mas fazem sentido. Porque, conforme crescemos são essas recordações afetivas que, paradoxalmente, nos fazem menos saudosistas ou nostálgicos. São essas coisas que nos ensinam a valorizar os pequenos e inesquecíveis momentos, para seguir em frente. Assim estamos preparados para criar novos e inesquecíveis momentos.
Tentaria fazer aqui uma resenha sobre Muchacha. Mas não é o caso. Não é o momento de julgar Laerte, muito menos seu trabalho. Seria muito sem graça tentar explicar o que são aquelas memórias afetivas. O momento é de se divertir com o cara. De admirar e aplaudir. E assim, encerro aqui também um ciclo de minha memória afetiva com um gênio de nossos quadrinhos.
As fotos desta entrevista foram todas tiradas pelo sensacional Theo Marques.
Em tempo: Muchacha tem 96 páginas no formato 20,5 x 19 cm e custa R$ 29.
http://www.ideafixa.com/hqs-laerte-muchacha-e-memoria-afetiva/
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