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sábado, 29 de outubro de 2011

António Zambujo - estabelece o diálogo entre o fado e a bossa nova


Me senti como Moisés quando conversou com Deus

É assim que António Zambujo se refere aos elogios que recebeu de Caetano Veloso. O jovem cantor português vem se destacando pelo diálogo que estabelece entre o fado e a bossa nova
por Barbara Heckler
 
 
Quem se aferra à ideia de que um oceano separa o dramático fado da intimista bossa nova precisa ouvir António Zambujo. Dono de um timbre delicado, o jovem fadista vem chamando a atenção por reinventar um dos gêneros mais tradicionais de Portugal ao aproximá-lo da música brasileira, em especial da sonoridade que João Gilberto inaugurou. Os discos do intérprete alentejano não apenas abrem espaço para participações da sambista Roberta Sá ou de Zé Renato como também alternam canções de Baden Powell, Vinicius de Moraes, Antônio Maria e Ivan Lins com fados tão célebres quanto Nem às Paredes Confesso.
Já nas especulações sobre as origens do ritmo português, paira uma sombra dos trópicos. Quando, em 1821, a família do imperador dom João VI deixou o Rio de Janeiro e retornou à Europa, levou na bagagem o lundu, considerado por muitos o primeiro estilo musical afro-brasileiro. A cadência do lundu inspiraria o fado, do latim fatum, que quer dizer "destino". Mas tanto essa como outras teorias sobre o surgimento do gênero lusitano (há quem lhe atribua raízes árabes, por exemplo) carecem de provas mais concretas. O que realmente se sabe é que, de início, o fado se associava às tabernas e aos prostíbulos, principalmente os de Lisboa. Só em meados do século 20, o tipo popular, tocado com uma guitarra clássica e uma portuguesa, adentrou os salões aristocráticos.
Aos 35 anos, António Zambujo também impressiona por se destacar num universo em que as mulheres costumam imperar. A atriz e cantora lisboeta Amália Rodrigues (1920-1999) é ainda hoje o maior nome do gênero, dentro e fora de Portugal. Em 2008, assim que descobriu Zambujo, Caetano Veloso o elogiou com entusiasmo - entre outras razões, justamente pelo fato de uma voz masculina sobressair em seara tão feminina. "Há nele dois elementos (...) que compõem para mim um grande passo", escreveu no blog Obra em Progresso, "que seja um homem a cantar fado tão lindamente (...) e que o diálogo com a música brasileira se apresente tão orgânico, já não-pensado, já resultante de forças históricas que vêm se expandindo há décadas".
Em Guia, o quarto e mais recente álbum de Zambujo, tal diálogo se aprimora. O amor e a saudade, temas comuns tanto no fado como na bossa nova, são interpretados pelo alentejano não com o derramamento típico dos portugueses, mas com a serenidade de João Gilberto e seus herdeiros. De Lisboa, por telefone, o cantor luso deu uma entrevista a BRAVO!.

BRAVO!: Como você se interessou pelo fado?
António Zambujo: Foi algo natural. Quando menino, em 1980, não ouvíamos muito fado nas ruas. Só o escutávamos dentro da casa de familiares. Eram discos de Amália Rodrigues, a grande referência, além de Max e Francisco José. De tanto ouvi-los, acabei me apaixonando por algumas letras e alguns poemas cantados. Passei a cantá-los também, mas nunca em público. Cantava sempre com quem havia mais intimidade.
No entanto, logo cedo, aos 16 anos, você ganhou um concurso como fadista...
Ganhei, mas era um concurso só para as pessoas da região do Alentejo, e o prêmio não me trouxe nenhum fruto imediato. Continuei a minha vida em Beja, cidade onde nasci, com várias dúvidas sobre o que gostaria de fazer. Sabia que queria ser músico, mas ainda não sabia exatamente de que tipo. Apenas mais tarde é que me envolvi realmente com o fado e passei a cantá-lo pelos arredores de Beja. Até que recebi um convite para me apresentar duas vezes por semana em Évora. De lá, segui para Lisboa a convite de Mário Pacheco, o fundador do Clube de Fado (célebre restaurante no bairro de Alfama, onde se pode escutar o gênero ao vivo). Foi então que tomei mais consciência do estilo lisboeta de cantar. Quem pretende virar fadista deve passar pela capital do país, já que tudo começou ali.
De que modo os jovens viam o fado quando você era mais novo?
Não o viam com bons olhos. Consideravam-no uma música para velhos. Eu não sentia vergonha de interpretá-lo. Mas sabia que, se falasse sobre o assunto para os jovens da minha idade, eles ririam. Pura ignorância porque o gênero nos permite cantar os grandes poetas da língua portuguesa. A responsável por isso foi Amália Rodrigues, que deu outra dimensão ao fado quando interpretou Vaz de Camões, Pedro Homem de Mello e o próprio Vinicius de Moraes. Até então, as músicas falavam principalmente sobre o cotidiano de Lisboa e eram escritas por poetas populares e não por poetas eruditos. Ao lançar o álbum Com que Voz (1970), em que cantou grandes poemas da língua portuguesa, Amália modificou esse cenário. Aliás, o que solidificou sua carreira internacional foi justamente o cuidado com a escolha de repertório.
Quando o fado voltou a agradar aos jovens?
A partir de 1994, quando Lisboa foi considerada a Capital da Cultura pela União Europeia. Na época, o fado teve muito destaque e projetou diversos cantores, o que atraiu a atenção de um público mais amplo. Depois, a partir dos anos 2000, com a morte de Amália, houve outro boom do gênero e surgiram novos fadistas, como Mariza, que alcançou uma projeção imensa, inclusive no exterior. Toda vez que um disco dela chega às lojas de Portugal, ocupa imediatamente o primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Fenômeno idêntico acontece com outros jovens intérpretes: o Camané, a Ana Moura e a Carminho. Acho importante para os moços terem acesso a artistas com os quais se identificam tanto pela faixa etária como pelos temas que cantam, sempre relacionados ao dia a dia.
Por que você coloca a morte de Amália Rodrigues como um marco?
Apesar de já existirem grandes fadistas jovens nos anos 90, o público em geral só passou a conhecê-los após o falecimento de Amália, em 1999. Ela exibia uma aura tão grande que acabava obscurecendo todo o resto... Depois de sua morte, é como se tivesse desentupido um cano, e outros fadistas puderam finalmente aparecer.
No que essa nova geração de intérpretes se diferencia das anteriores?
O fado é uma música que vive da improvisação, do que cada um de nós tem para dar. O que noto na minha geração é que os fadistas de qualidade não soam todos iguais. Cada intérprete possui influências muito particulares. É essa diferenciação que permite ao gênero atingir um público cada vez mais abrangente. Quem não gosta de minha abordagem pode gostar da abordagem de outro cantor.
Que fadistas da geração pós-Amália você aprecia?
Ricardo Ribeiro e Camané, entre os homens. Das mulheres, minhas preferidas são a Carminho e a Ana Moura, que se parece comigo por inserir no fado elementos de outros gêneros. Os demais têm um apego maior à tradição.
Quais são suas principais influências fora do universo fadista?
Eu trouxe do canto alentejano o meu modo de interpretar, o meu timbre. Já a minha voz, sem tanta dramaticidade nem vibratos, veio de mestres como Chet Backer, João Gilberto e Caetano Veloso. Sou reflexo daquilo que ouço.
Como você reagiu quando soube que Caetano o elogiou no blog Obra em Progresso?
Fiquei 45 minutos de boca aberta. Nunca imaginei que Caetano fosse me ouvir e muito menos que fosse escrever alguma coisa sobre mim. Quando li os comentários, me senti como Moisés quando Deus falou com ele.

http://bravonline.abril.com.br/materia/me-senti-como-moises-quando-conversou-deus



BRAVO!


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