"Queremos tanto o Blue Jeans quanto a cultura islâmica”
O romancista turco Orhan Pamuk reflete sobre as contradições que cada protagonista da Primavera Árabe enfrenta ao lutar pela democracia em países muçulmanos
por Marcelo Musa Cavallari
Minha literatura não é do tipo que se preocupa com o que acontece no próximo capítulo”, diz o escritor Orhan Pamuk. “O que importa não é o que vem em seguida, mas, sim, do que se trata a vida.” Aos 59 anos, com mais de 15 milhões de livros vendidos em cerca de 60 países, consagrado com o Nobel de Literatura de 2006, Pamuk continua vivendo na cidade em que nasceu: a Istambul turca. Meio Europa e meio Ásia, muçulmana e secular, meio Ocidente e meio Oriente Médio, ex-império e país emergente, a Turquia que o autor costuma retratar é o cenário para personagens à procura da própria identidade – uma busca que também move o romancista.
E é com os olhos de quem escreve sob o compromisso de “entender as pessoas, colocar-se no lugar delas, compreendê-las sem as julgar”, que Pamuk assistiu, pela TV, como quase todo mundo, à derrubada de regimes ditatoriais do norte da África, O fenômeno teve início há pouco mais de um ano, em dezembro de 2010, e logo recebeu o nome de Primavera Árabe. Para o escritor, o fundamental nesse evento eminentemente político é, mais uma vez, a busca da identidade – ou como acomodar tendências tradicionais e modernizantes no coração de cada habitante desses países de cultura islâmica que, agora, tentam abraçar a democracia.
De passagem por São Paulo, onde proferiu uma palestra e lançou o livro O Romancista Ingênuo e o Sentimental, compêndio de aulas ministradas na Universidade Harvard (Estados Unidos), Pamuk conversou com BRAVO!.
BRAVO!: Como você reagiu ao saber dos primeiros acontecimentos que dariam origem à Primavera Árabe?
Orhan Pamuk: Fiquei muitíssimo feliz, especialmente no dia em que (o presidente egípcio Hosni) Mubarak caiu. Quando todas as TVs internacionais mostraram a praça Tahrir, no Cairo, e a imensa alegria da multidão, havia quase lágrimas nos meus olhos. Em primeiro lugar, por ver que os árabes estavam retomando sua dignidade. Depois, por algo que afeta todo o Islã. Os povos árabe, turco e persa são povos diferentes, mas estão entre as principais nações da cultura islâmica. Mesmo sendo uma pessoa secular, fiquei bem contente em ver destruído o preconceito orientalista de que os povos islâmicos são obedientes, de que cultuam a autoridade. Pena que, mais tarde, tive algumas suspeitas em relação ao movimento. Já vi tanta coisa acontecer do mesmo jeito na Turquia ao longo dos últimos 50 anos que comecei a identificar certos problemas no Egito também.
Que problemas?
Depois da derrocada de Mubarak, a elite governante egípcia está usando a mesma chantagem junto ao Ocidente e às classes médias secularizadas que o próprio Mubarak usou: “Por favor, apoiem-me ao governar este país por meio do totalitarismo. Do contrário, ele cairá no inferno e nas mãos do Islã político”.
Mas os partidos islâmicos são fortes e se revelaram importantes na Primavera Árabe. Não há realmente o risco de que assumam o poder?
Talvez. Esse é um dilema ético de uma situação política. Nós queremos a democracia porque ela é a escolha ética, e não porque legitima o Ocidente ou porque é boa para a economia. A democracia é para as pessoas, deve estar a serviço das pessoas. Não é algo para mostrar ao Ocidente. Os grupos políticos islâmicos têm uma conexão com o povo, e eles sabem prestar serviços. Essa é uma das razões de estarem em ação na Primavera Árabe. A segunda razão é que eles são mártires, são reprimidos. Por isso, podem fazer pose, se apresentar como vítimas e, assim, despertar a simpatia das pessoas. O pior dessa situação é que intelectuais liberais, pró-Ocidente, semimodernos, seculares, ficam confusos. Vi tanto disso na Turquia... Na esquerda turca, alguns ainda põem a esperança em golpes militares, em prender pessoas para que a nação seja secular. Outros, e estou ao lado desses, avaliam que se deve criticar ambos os lados: o governo (atualmente em mãos de um partido islâmico), por não ser democrático o bastante, e os militares, que posam de defensores do secularismo, mas agem de maneira brutal e radicalmente nacionalista.
Nos últimos anos, o Islã político ganhou força na Turquia, ainda que adaptado à democracia. Você acha isso possível no Egito?
Parece-me fútil fazer previsões. Há tantas variações de sombras e cores interessantes... No fim das contas, é preciso ver como os dilemas de que falei se refletem na mentalidade de cada um. Eu exploro e dramatizo essa tensão no meu romance Neve, em que um personagem tem os dois lados: ele faz parte da nação, de seus valores, não quer parecer um agente ocidental, mas também defende a democracia, os direitos das mulheres, a liberdade de expressão e o respeito pela diversidade, o que aparenta estar em contradição política com a comunidade islâmica conservadora. Devemos encarar isso não como dois partidos da Primavera Árabe, mas como dois sentimentos no espírito de uma única pessoa. No fundo, todos nós queremos modernidade, sofás confortáveis, água quente encanada e blue jeans – à semelhança da juventude soviética, que queria blue jeans. No entanto, também gostamos de nossas casas e de roupas antigas. Queremos abraçar o passado cultural de nossa nação. São desejos contraditórios, que cada um de nós carrega no coração.
Se a democracia, como você diz, é uma escolha ética e a religião é, para muita gente, a principal fonte de escolhas éticas, pode-se considerar que o Islã seja uma fonte para a democracia?
Sim. Muitas pessoas começam a entender e discutir o que chamamos de shura (“consulta”, em árabe, um conceito presente no Corão que aconselha governantes islâmicos a ouvir aqueles que serão afetados por suas decisões). Tornar o Islã compatível com a democracia é também uma questão de interpretação. A interpretação torna qualquer coisa possível. Não sou uma pessoa religiosa, mas prefiro argumentar a favor da democracia para um país islâmico por meio da shura, ou de qualquer outro mecanismo que se encontre na cultura clássica. Melhor isso do que Bush nos mandando aviões e bombas sob o pretexto de que trarão a democracia.
O que é de fato real na maneira como o mundo está vendo a Primavera Árabe e a celebrando?
Há muita coisa com que se pode ficar feliz. Os ditadores caíram e o mais importante é que, agora, o povo está claramente no jogo. Isso é o suficiente por um ano. Vamos ver o que acontece daqui para a frente.
Marcelo Musa Cavallari é jornalista.
http://bravonline.abril.com.br/materia/queremos-tanto-o-blue-jeans-quanto-a-cultura-islamica#image=173-lit-pamuk-1
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