A última vez deve tirar sangue.
Unhas riscando
a palma.
Da mão. Da boca. Da alma.
O coração, acostumado ao seu vazio, espantou-se de ter visita.
Hóspede? Inquilino? Dono? O coração não sabia. Sabia, apenas, que ele chegou
devagar, analisando o espaço, espreitando as esquinas, mapeando os caminhos e
veredas. Sabia, somente, que ele foi fincando bandeiras, deixando marcas em cada
canto, tornando seu o que já nem lembrava de haver outro.
O coração se assustou. Descobriu, num rompante, que o peito era
pequeno. Escutou sua própria angústia de desconhecer os amanhãs feito batucada.
Tum-tum e acelerando. Até que. Não era nada. Não era festa, não era
dia.
É aquela dorzinha fina de viver, a certeza da incompletude, a
percepção dos limites, o desconforto comigo mesma, com o mundo. É aquela
preocupação que nunca deixa desfranzir completamente a testa. É aquela
compreensão de que não foi a melhor palavra, não foi o melhor momento, não foi.
É aquela sensação de ter perdido alguma coisa, talvez o bonde, talvez eu mesma.
Olhei pro lado errado do futuro e pensei que era um encontro. Era um
abismo.
Estou cansada. Muito cansada. Cansada de tentar. De me esforçar. De
não conseguir. Cansada de ser insuficiente. Cansada de não ser o bastante.
Cansada de só me permitir ser feliz. Chegou o sofrer. A dor. Sou a dos olhos
vermelhos. A do sorriso triste. A que não tem caminhos. Escrevo, letra a letra,
para não esquecer: não sirvo, não presto, não consigo.
Eu, na palma da sua mão. Estava tudo certo, combinado: você ia partir
meu coração. Nem marcamos encontro, nem decidimos hora, era o que podia ser: eu,
você e a dor que viria. Nenhum lugar é nosso, você dizia e eu afiava a faca que
você usaria pra me sangrar. Desde a primeira vez ficou acertado: nada. Nada não
é nunca, eu brincava de roleta-russa e lhe pedia corpo e desejo. Eu só queria:
tanto. Existem coisas que não podem ser ditas e coisas que não devem ser ditas,
escrevo sempre o que não pode ser dito, deixo os deveres com você. Não pode ser
dito o desejo correndo morno na pele, tudo se ruborizando e umedecendo. Como
dizer um olhar feito sim e mais e agora?
Em lento preparo pra dor, eu deixei o querer se fazer presença. Me
ocupe, era um soluço, um gemido, você todo em mim, eu sei, eu espero, eu
convido, eu aceito. Não acreditamos em finais felizes, não acreditamos um no
outro, não acreditamos em futuros, não acreditamos em nenhum deus que não
soubesse dançar e nem nos deuses astronautas, não acreditamos em redenção, não
acreditamos em nada e nos agarramos, náufragos, no corpo do outro, impossível
âncora. Fui me preparando pra morrer, morrer em você, aquele prazer feito
soluço, eu sabia que lhe escolher era me abandonar, eu sabia, eu queria, eu
sabia. Eu me fazia em confissões e estremecimentos, colecionava relógios
esperando a hora certa de ser sua e não ser mais nada. Você ia partir meu
coração, não ia? Não me disse nada sobre arrancá-lo do peito, esvaziá-lo dos
sonhos e perdê-lo entre serras, disse?
Mas eu ainda sei contar estrelas. Ainda sei fazer pintura a dedo com
o sangue que verto. Ainda sei cantar baixinho. Ainda sei fazer panqueca. Ainda
sei deixar o olhar se perder no mar como se fosse, ele todo, lágrima. Ainda sei
pensar: amanhã, amanhã, amanhã e fazer de conta que sou Scarlett. Mas não
sou.
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