Tim tim por tim tim - Francisco Bosco
Como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”
“Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, seria preciso incluir nela: a escrita em voz alta”, escrevia, em voz baixa, Roland Barthes, nos anos 1970, para em seguida lamentar: “Essa escrita vocal (...), não se a pratica”. Tal como imaginada por Barthes, essa arte ignoraria a clareza das mensagens, o teatro das emoções, todo a dimensão, em suma, do sentido e da comunicação — seu campo de manobras seria antes fonético: “um texto onde se pudesse ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a volúpia das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda”. Compreende-se por que Barthes afirmava que essa arte não era praticada: ele não conheceu João Gilberto. Pois o baiano de Juazeiro, como uma espécie de Flaubert falado (e feliz), levou a arte da escrita em voz alta a um ponto sem precedentes, e ainda sem sucessores.
Esse aspecto da arte de João Gilberto é — como outros igualmente fundamentais de sua criação — minuciosamente investigado no documentário “Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto”, cujo roteiro é do cancionista e pesquisador Paulo da Costa e Silva. Com quase quatro horas de duração, o doc é apresentado pelo cancionista Romulo Froes e apresenta depoimentos da maior parte dos principais estudiosos daobra de João Gilberto. Embora tenha sido produzido por mim, para a rádio Batuta (www.ims.com.br/radiobatuta), sinto-me desimpedido de elogiá-lo, pois não sou o responsável por suas virtudes, e sim seu roteirista e seus entrevistados, que cumprem a promessa do título e revelam, com rigor demonstrativo, com quantos e quais paus se fez essa canoa que saiu da Bahia para ganhar o mundo.
Menos explorado, talvez, nas obras críticas que já lhe foram consagradas, o aspecto da operação com a língua no canto de João Gilberto receberá aqui meu destaque. Trata-se de uma arte dentro da arte, pois a construção do canto de João envolve outras decisões, fundamentais, de princípio. Como explica o preparador vocal Felipe Abreu, “é um canto naturalista, cujo parâmetro é se aproximar da fala. E isso vem desde uma utilização de uma tessitura muito próxima a da fala — quer dizer, com muito poucos agudos, mas numa região que mais ou menos um homem tem falando, até a questão da articulação e da enunciação do texto muito próxima àquela da fala”. Tais princípios remontam aos dois grandes precursores do canto falado na canção popular brasileira, Mario Reis e Carmen Miranda, que cantavam com pouco volume, articulando sílaba por sílaba com precisão milimétrica e esvaziando o pathos das canções (em Carmem, desde a escolha do repertório).
Mas as diferenças são claras e decisivas. Como esclarece Paulo da Costa e Silva, Mário canta staccato, João canta legato. Ou seja: Mário canta dividindo; João canta ligando. “Cantar em legato significa amaciar a transição de uma nota para outra, criando um traço de união entre elas. Mário Reis fazia o oposto: cantava separando. Com isso, obtém uma espécie de pontilhismo musical. A frase melódica é percebida como uma série de sílabas autônomas, que não variam muito em duração. De fato, raramente ouvimos Mário Reis sustentar por muito tempo uma mesma nota. Em João ocorre justamente o contrário: seu canto explora ao máximo a elasticidade das vogais. A frase melódica é percebida como um fluxo contínuo, um rio vocálico eventualmente bloqueado pela presença das consoantes.” Aqui é que o trato com a língua atinge o estatuto de ourivesaria.
João explora todas as potencialidades rítmicas e melódicas das consoantes oclusivas, como “p”, “t”, “k” (que, percussivas, interrompem o fluxo sonoro, recortando-o), das sibilantes (também percussivas, mas ao modo de instrumentos como o ganzá) e das vogais (em que o canto se dilata e a voz pode deslizar macia de nota a nota numa mesma emissão). Todo cantor joga com essas características, mas João joga especialmente bem: como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”. Na arquitetura sonora de João Gilberto, explica Paulo, “as vogais formam extensos vãos horizontais, livres, soltos no espaço. Eventualmente apoiados sobre pilares de consoantes”. Do mesmo modo, as consoantes são mobilizadas em toda a sua potência rítmica. Em “Pra que discutir com madame”, por exemplo, João comprime as vogais das palavras “discutir com”, fazendoas soar como um composto de chocalho, caixa e surdo: pra que “dz-k-tch-com” madame. Felipe Abreu arremata: “Vogais e consoantes são as cores e os traços com que ele pinta seus quadros. Quer dizer, a expressão do canto dele, muito mais do que em relação a agudos, potência, dinâmica vocal entre fortes e fracos, vem da utilização das cores das vogais e das consoantes para criar a palheta que ele usa no canto.”
Essa pintura, João a exercita mesmo quando em língua estrangeira. O ensaísta Lorezo Mammì comenta sua interpretação de “Estate”, canção italiana registrada no álbum “Amoroso”: “Ele não faz nenhum erro, mas parece que ele dissecou, encontrou exatamente para a linha melódica se aquele ‘o’ tem que ser um pouquinho mais aberto que ele é, se ele deve dar uma amolecida naquela consoante... Parece um italiano que passou por um filtro e foi reconstituído pedacinho por pedacinho.”
Enfim, eis aí uma bela recompensa para aqueles que, como eu, se desencorajaram diante dos altos preços da turnê — agora adiada — de João Gilberto.
“Se fosse possível imaginar uma estética do prazer textual, seria preciso incluir nela: a escrita em voz alta”, escrevia, em voz baixa, Roland Barthes, nos anos 1970, para em seguida lamentar: “Essa escrita vocal (...), não se a pratica”. Tal como imaginada por Barthes, essa arte ignoraria a clareza das mensagens, o teatro das emoções, todo a dimensão, em suma, do sentido e da comunicação — seu campo de manobras seria antes fonético: “um texto onde se pudesse ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a volúpia das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda”. Compreende-se por que Barthes afirmava que essa arte não era praticada: ele não conheceu João Gilberto. Pois o baiano de Juazeiro, como uma espécie de Flaubert falado (e feliz), levou a arte da escrita em voz alta a um ponto sem precedentes, e ainda sem sucessores.
Esse aspecto da arte de João Gilberto é — como outros igualmente fundamentais de sua criação — minuciosamente investigado no documentário “Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto”, cujo roteiro é do cancionista e pesquisador Paulo da Costa e Silva. Com quase quatro horas de duração, o doc é apresentado pelo cancionista Romulo Froes e apresenta depoimentos da maior parte dos principais estudiosos daobra de João Gilberto. Embora tenha sido produzido por mim, para a rádio Batuta (www.ims.com.br/radiobatuta), sinto-me desimpedido de elogiá-lo, pois não sou o responsável por suas virtudes, e sim seu roteirista e seus entrevistados, que cumprem a promessa do título e revelam, com rigor demonstrativo, com quantos e quais paus se fez essa canoa que saiu da Bahia para ganhar o mundo.
Menos explorado, talvez, nas obras críticas que já lhe foram consagradas, o aspecto da operação com a língua no canto de João Gilberto receberá aqui meu destaque. Trata-se de uma arte dentro da arte, pois a construção do canto de João envolve outras decisões, fundamentais, de princípio. Como explica o preparador vocal Felipe Abreu, “é um canto naturalista, cujo parâmetro é se aproximar da fala. E isso vem desde uma utilização de uma tessitura muito próxima a da fala — quer dizer, com muito poucos agudos, mas numa região que mais ou menos um homem tem falando, até a questão da articulação e da enunciação do texto muito próxima àquela da fala”. Tais princípios remontam aos dois grandes precursores do canto falado na canção popular brasileira, Mario Reis e Carmen Miranda, que cantavam com pouco volume, articulando sílaba por sílaba com precisão milimétrica e esvaziando o pathos das canções (em Carmem, desde a escolha do repertório).
Mas as diferenças são claras e decisivas. Como esclarece Paulo da Costa e Silva, Mário canta staccato, João canta legato. Ou seja: Mário canta dividindo; João canta ligando. “Cantar em legato significa amaciar a transição de uma nota para outra, criando um traço de união entre elas. Mário Reis fazia o oposto: cantava separando. Com isso, obtém uma espécie de pontilhismo musical. A frase melódica é percebida como uma série de sílabas autônomas, que não variam muito em duração. De fato, raramente ouvimos Mário Reis sustentar por muito tempo uma mesma nota. Em João ocorre justamente o contrário: seu canto explora ao máximo a elasticidade das vogais. A frase melódica é percebida como um fluxo contínuo, um rio vocálico eventualmente bloqueado pela presença das consoantes.” Aqui é que o trato com a língua atinge o estatuto de ourivesaria.
João explora todas as potencialidades rítmicas e melódicas das consoantes oclusivas, como “p”, “t”, “k” (que, percussivas, interrompem o fluxo sonoro, recortando-o), das sibilantes (também percussivas, mas ao modo de instrumentos como o ganzá) e das vogais (em que o canto se dilata e a voz pode deslizar macia de nota a nota numa mesma emissão). Todo cantor joga com essas características, mas João joga especialmente bem: como disse o poeta Augusto de Campos, “João trata as vogais como Pelé trata a bola”. Na arquitetura sonora de João Gilberto, explica Paulo, “as vogais formam extensos vãos horizontais, livres, soltos no espaço. Eventualmente apoiados sobre pilares de consoantes”. Do mesmo modo, as consoantes são mobilizadas em toda a sua potência rítmica. Em “Pra que discutir com madame”, por exemplo, João comprime as vogais das palavras “discutir com”, fazendoas soar como um composto de chocalho, caixa e surdo: pra que “dz-k-tch-com” madame. Felipe Abreu arremata: “Vogais e consoantes são as cores e os traços com que ele pinta seus quadros. Quer dizer, a expressão do canto dele, muito mais do que em relação a agudos, potência, dinâmica vocal entre fortes e fracos, vem da utilização das cores das vogais e das consoantes para criar a palheta que ele usa no canto.”
Essa pintura, João a exercita mesmo quando em língua estrangeira. O ensaísta Lorezo Mammì comenta sua interpretação de “Estate”, canção italiana registrada no álbum “Amoroso”: “Ele não faz nenhum erro, mas parece que ele dissecou, encontrou exatamente para a linha melódica se aquele ‘o’ tem que ser um pouquinho mais aberto que ele é, se ele deve dar uma amolecida naquela consoante... Parece um italiano que passou por um filtro e foi reconstituído pedacinho por pedacinho.”
Enfim, eis aí uma bela recompensa para aqueles que, como eu, se desencorajaram diante dos altos preços da turnê — agora adiada — de João Gilberto.
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