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terça-feira, 7 de maio de 2013

Tai o que eu queria dizer...

Um Girassol da Cor de Seu Cabelo: Saudades da Esquina e do Clube


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A capa do álbum Nel­son Angelo & Joyce, 1972
Nos anos 70, já havia o Chico Buar­que de “Mulhe­res de Ate­nas”, o Cae­tano Veloso de “Sampa”, o Edu Lobo de “Arras­tão” na indo­má­vel voz de Elis. E isso era bom. Mas nós, na peri­fe­ria da peri­fe­ria do mundo neces­si­tá­va­mos de algo mais. Algo mais cos­mó­po­lis, que nos  sin­te­ti­zasse e sin­to­ni­zasse com o mundo ou ligasse defi­ni­ti­va­mente ao rock sem dei­xar de ser orgu­lho­sa­mente peri­fé­ri­cos – até mesmo den­tro de nosso país. Fal­tava a esses todos uma carga pop, bem sabía­mos. Uma liga­ção com o mundo de uma forma ainda mais espon­tâ­nea e com­plexa que nos eflú­vios dema­si­ado van­guar­dis­tas da Tro­pi­cá­lia ou de Os Mutan­tes. Ou que nas bem lapi­da­das rimas toan­tes de Chico, decal­ca­das de João Cabral de Mello Neto. Nós já éramos, de há muito, o cen­tro de nosso mundo. Mas ainda não sabíamos.
Esse fenô­meno, radi­cal­mente musi­cal, rico na inven­ção harmô­nica, ante­nado ao que ocor­ria lá fora, porém sem per­der a bossa de ser­tões pro­fun­dos, sem pre­dar a ore­lha ser­ta­neja e sem dei­xar de des­cer o Rio São Fran­cisco até desviar-se a Ponta de Areia, no Recôn­cavo Bai­ano, deu-se atra­vés de Mil­ton Nas­ci­mento e seus cola­bo­ra­do­res: Lô Bor­ges, Beto Gue­des, Tavi­nho Moura, Toni­nho Horta, Nel­son Angelo, Joyce, Alaíde Costa, Wag­ner Tiso, Flá­vio Ven­tu­rini, Fer­nando Brant, Ronaldo Bas­tos, O Som Ima­gi­ná­rio, et alli. Era como se o bar­roco das igre­jas de Minas de repente fun­disse com o som dos Bea­tles para pro­du­zir um ter­ceiro que era ainda mais ambi­ci­oso até mesmo que o som do quar­teto de Liver­pool depois do Pep­pers. Chico e Cae­tano eram poe­tas valendo-se de can­ções. Edu Lobo, um com­po­si­tor sofis­ti­cado, embora exces­si­va­mente cau­te­loso. Mil­ton era a can­ção em estado bruto. 
A onda ficou conhe­cido como Clube da Esquina. Um rótulo gené­rico, super­fi­cial, mas sufi­ci­ente. O lema era um pouco o que segue na letra de Fer­nando Brant em “Para Len­non e McCart­ney”, que, aliás presta conta de um misto de fas­ci­na­ção, des­con­solo, emu­la­ção, supe­ra­ção: “Por que vocês não sabem do lixo Ocidental/ Não pre­ci­sam mais temer/ Não pre­ci­sam da solidão/ Todo dia é dia de viver// Por que vocês não verão meu lado Ocidental/ Não pre­cisa medo, não/ Não pre­cisa da timidez/ Todo dia é dia de viver// Eu sou da Amé­rica do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou o mundo, sou Minas Gerais”. É ao mesmo tempo senso de sentir-se des­pre­zado ou igno­rado, e supe­rar esse estado, esse opró­brio, por inven­ti­vi­dade. Ser radi­cal­mente do mundo care­cia de ter um pé no quin­tal, na pro­vín­cia. Assu­mir ser o lixo, e, nesse movi­mento, por amal­ga­mar aspesc­tos “arcai­cos”, “taca­nhos” e infor­ma­ções moder­nís­si­mas, converter-se no luxo do Oci­dente. Ser o rema­tado luxo da aldeia musi­cal do globo. E esse luxo tam­bém somos, doa em quem doer. (Ante­on­tem, aliás, Paul McCart­ney fez show em Belo Hori­zonte (antigo Cur­ral d’El Rey) e disse em por­tu­guês: “eu vim dizer: uai!”).
Enquanto isso há três álbuns abso­lu­ta­mente vene­ra­dos: o Clube da Esquina; o cha­mado disco do Tênis (de Lô Bor­ges); e o Nel­son Angelo & Joyce. Todos do emble­má­tico ano de 1972. Estra­nha coin­ci­dên­cia. Atra­vés des­ses álbuns – e do ras­ti­lho deles em outros menos memo­rá­veis ou mais epi­só­di­cos, depois mas sobre­tudo antes – nós sabía­mos que não só tínha­mos che­gado ao pata­mar da con­tra­cul­tura inter­na­ci­o­nal, mas a supe­rado com a tran­qui­li­dade e a efi­cá­cia artís­tica e musi­cal daque­les caras. (Lem­bro que em 72, eu tinha ape­nas 9 anos, e ia des­co­brir esse uni­verso, fas­ci­nado, um tanto mais adiante).
Mas então, nós saía­mos do Nor­deste sequi­o­sos por Minas. Minas era nosso suple­mento. Saía­mos lou­cos pelas mon­ta­nhas, velhos ritos, as fer­ro­vias, a mís­tica do Grande Ser­tão, as igre­jas, coros e cida­des colo­ni­ais de Minas – que, de outra forma tam­bém as tínha­mos no Nor­deste (em São Luís, Olinda, Recife, Sal­va­dor, Penedo, São Cris­tó­vão) – onde esses eflú­vios musi­cais tinham medrado. Mas faltava-nos Alei­ja­di­nho, e o sen­tido com­pó­sito, com­plexo de pas­sado e futuro jun­gi­dos, da forma como os minei­ros haviam repro­ces­sado no seu som. Ou uma certa dimen­são cívica, pre­sente em can­ções como “Cora­ção Civil” — que pare­ciam defron­tar a dita­dura mas sem per­der um grama de lirismo. E nem por som­bra seguía­mos ape­nas sedu­zi­dos por um sen­ti­mento orto­do­xa­mente cató­lico – e é claro que havia algo de cató­lico tam­bém naquilo – mas mais era: era uni­ver­sal, no mais lato senso — e não no da Igreja Uni­ver­sal do Reino de Deus. Ou seja, era reas­su­mir a radi­ca­li­dade uni­ver­sal do termo. Era, no mínimo, astu­ci­oso que esse apa­rente des­prezo, o da con­di­ção de “peri­fé­ri­cos”, fosse (re-)convertido em pai­xão e fé.
E até hoje, nos rimos do facto: o que dá certo por aqui – ainda quando ori­gi­na­lís­simo – é lou­vado como con­ti­nu­a­ção de Europa (e, quiet often, não neces­sa­ri­a­mente de Por­tu­gal, mas sobre­tudo de Itá­lia, de Ale­ma­nha, de França, até de Ingla­terra). O que dá errado, bem, o que dá errado é nosso mesmo e pecu­liar (e, fre­quen­te­mente, pro­vem tam­bém de Por­tu­gal). Oremos.
Sem remis­são. 
Isso de san­ção vinda de fora, de repente, dei­xou de nos obce­car. Por­que a música nos imu­ni­zou con­tra essas falá­cias e ara­pu­cas. Nos auto­no­mi­zou. Nos abriu para o mundo sem esque­cer o pas­sado. E, claro, esses minei­ros nos apre­sen­ta­ram pon­tu­al­mente a uma pers­pec­tiva musi­cal mais com­plexa e moderna que a dos Bea­tles. Como se fosse uma melhor rea­tu­a­li­za­ção de 22 e das pers­pi­ca­zes lições dos Andrade: Mário e Oswald. Essa (in-)sanção. Insa­ni­dade, se obses­siva. E, logo, ( por que não?) de novo o “tupi or not tupi” na crista da onda. Ou o Macu­naíma. Ou a Antro­po­fa­gia de Oswald. A devo­ra­ção cani­bal e incor­po­ra­ção da subs­tân­cia por eli­mi­na­ção da borra. E, então, quase qual­quer forma de san­ção vinda de fora, com alguma pre­ten­são de hie­rar­quia, já nos pare­cia um pouco tola. Embora com Mil­ton e o Clube da Esquina tenha­mos che­gado a uma modesta sín­tese e rea­tu­a­li­za­ção disso tudo. Ou seja, a uma solu­ção muito pecu­liar de psi­co­de­lia, con­tra­cul­tura e novas infor­ma­ções musi­cais àquela altura da pan­to­mima. E, como não podia dei­xar de ser, fun­dida a impul­sos polir­rít­mi­cos e meló­di­cos tra­di­ci­o­nais, arcai­cos, afri­ca­nos, índi­ge­nas, ibé­ri­cos: atu­a­lís­si­mos. Às simul­ta­nei­da­des e com­po­si­ti­vi­da­des que tanto nos atraem e nos for­mam. Assim, quando Mes­tre Antô­nio Car­los Jobim gra­vou Lô Bor­ges (“O Trem Azul”), em seu último álbum, no meado dos 90, bem sabia o quanto a home­na­gem prestava-se às estra­nhas inven­ções harmô­ni­cas do home­na­ge­ado ou da turma de Minas.
O resul­tado, antes disso, é que, já em plena década de 80, íamos a Ouro Preto, Mari­ana, Tira­den­tes, São João D’El Rey, Con­go­nhas, Sabará, Dia­man­tina como quem vai a Roma ou San­ti­ago de Com­pos­tela, Can­ter­bury ou Lour­des, ainda por conta dessa onda dos 70. Pedir a ben­ção e a conta dessa musi­ca­li­dade faceira e novi­da­dosa, que fun­dia gui­tar­ras elé­tri­cas a berim­baus, tam­bo­res cri­ou­los, coros de ciran­das, rabe­cas, caxi­xis e vio­las cai­pi­ras. Havia inu­si­ta­das orques­tra­ções. Havia senhas que não pre­ci­sá­va­mos glo­sar. Que enten­día­mos de ime­di­ato, tra­zía­mos de cor, como se tatu­a­das no espí­rito. Havia o giras­sol da cor dos cabe­los dela. A voz encan­ta­tó­ria de Mil­ton, (que depois tornar-se-á exces­siva, pre­ci­o­sista, dema­si­ado melí­flua, afe­tada, meio “étnica” ou rococó, após os radi­cais anos 70. E nos des­gos­tará defi­ni­ti­va­mente). Havia o senso de pau e corda (coi­sas acús­ti­cas + uma densa per­cus­são) des­ses três dis­cos fun­da­men­tais. Tudo isso meio que se per­deu na poeira de estre­las. E quase nin­guém se lem­bra mais daquele você que pare­cia comigo e não se acom­pa­nhava de um senhor. Mas antes disso, o cora­ção bateu sem medo,  e  buscou-se um cami­nho, feito  nuvem cigana, “pelas ruas capis­tra­nas de toda cor”:

I. Um Giras­sol da Cor de Seu Cabelo (com Lô Borges):

Este hino­zi­nho gera­ci­o­nal e intrans­fe­rí­vel em tom menor. Nenhuma como esta para der­re­ter o cora­ção das garo­tas àque­les tempos.

II. Cais (Com Mil­ton e Car­mi­nho, numa ver­são pos­te­rior, ten­dendo ligei­ra­mente ao fado)*
*Este ano, no ani­ver­sá­rio da cidade de For­ta­leza, 13 de Abril pas­sado, um dueto impro­vá­vel nos brin­dou com o show de encer­ra­mento da festa. Des­ta­que para “Cais”, can­ção ori­gi­nal­mente regis­trada no mesmo álbum do “Giras­sol…” acima, o opu­lento Clube da Esquina. Na ver­são abaixo, qua­tro déca­das depois, é ado­rá­vel a parte de Car­mi­nho e a dife­rença dos acen­tos. E é claro que Mil­ton, aos 70, não é mais o mesmo nosso Mil­ton dos anos 70, mas guarda vestígio):


III. Tudo Começa de Novo (com Nel­son Angelo e Joyce):

O fecho de um disco vene­rado pelos “ini­ci­a­dos” no Clube.

IV. Pai­xão e Fé (com Mil­ton Nas­ci­mento e os Cana­ri­nhos de Petrópolis)

De repente, Bach e os vio­lei­ros de Minas reu­ni­dos na mesma praça.

V. Cru­zada (com Beto Guedes):

Sinal de espe­rança e fra­ter­ni­dade na tra­ves­sia de deser­tos, des­ma­ze­los polí­ti­cos e ditadura.


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