É preciso
fazer a distinção entre cancionista e neo-sereia. Enquanto o primeiro "tem um
controle de atividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na
melodia, distraidamente, como se para isso não despendesse qualquer esforço
(...) é um gesticulador sinuoso com uma perícia intuitiva muitas vezes
metaforizada com a figura do malandro, do apaixonado, o gozador, do oportunista,
do lírico, mas sempre um gesticulador que manobra sua oralidade, e cativa,
melodicamente, a confiança do ouvinte" (TATIT: 1996, p. 9), a neo-sereia se
utiliza das configurações do cancionista para situar o ouvinte no mundo.
Ou seja, de
forma perigosamente reducionista, mas absolutamente verificável, podemos dizer
que toda neo-sereia é cancionista em ação, mas nem todo cancionista é neo-sereia
posto que para ser esta aquele depende do sujeito cancional gerado da
aproximação entre quem canta e quem ouve. Dito de outro modo, a neo-sereia está
quando o sujeito cancional - a entidade concreta e invisível resultado da
fruição e do entendimento do ouvinte - se materializa. Assim sendo, fica claro
que a preocupação neste trabalho é com a maneira de cantar e suas
consequências.
E isso não
tem nada de metafísico, ou muito pouco. "É sobre nossos sentidos, e unicamente
sobre eles, que a música age diretamente (mesmo no canto vocal, existe 'um
charme anterior ao da expressão')", anota Claude Lévi-Strauss em Olhar Escutar Ler (1997, p. 73). A
neo-sereia é a voz que canta o ouvinte de dentro e por trás da entoação do
cancionista. Esta voz carrega a mitologia do ouvinte que se reconhece plasmado
no modo charmoso de dizer do cancionista. São as relações estabelecidas e
equalizadas pelo cancionista entre o ouvinte e o mundo ao redor o que
proporcionam a permanência do canto sirênico: tão individual quanto efêmero,
pois depende do instante-já da escuta. É assim que a semântica contida na letra
de uma canção, pensada pelo compositor, pode expandir seus significados.
A canção
sirênica equilibra, não necessariamente sem dor para quem ouve, os
acontecimentos que a precederam e aqueles que a seguem. O contato com o canto
sirênico entoado pelo cancionista promovido à neo-sereia faz o ouvinte se
reencontrar com o ritmo de sua existência. E isso ignora o "bom" e o "mau"
gosto, bem como ignora o pensamento que diz que um ouvido treinado, refinado e
sensível prescinde das palavras. Ora, se são as palavras vocalizadas por alguém
o que afirma a existência deste alguém - irmão do ouvinte no mundo, porque se
reconhece naqueles sentimentos performatizados na voz, "há como que um
sentimento de solidariedade com o momento passional vivido" (TATIT: 1986, p. 26)
- como desprezá-las e fazer desse desprezo um sintoma de sensibilidade
superior?
As palavras
não enfraquecem a universalidade da linguagem musical, posto que é no ritmo, tal
e qual pensado por Octávio Paz, dado a elas, pela voz de alguém, que aqui
chamamos neo-sereia, mais do que aquilo que elas dizem, que reside a eficácia do
despertar das sensações. "A melodia entoativa é o tesouro óbvio e secreto do
cancionista", anota Tatit (1996, p. 11). "A melodia do meu samba põe você no
lugar", canta Caetano Veloso. No laço tecido entre as palavras e seus sons -
equilibrados na voz sirênica - mora o êxito da comunicação.
A comunicação
é resultado do pacto entre locutor (destinador) e ouvinte (destinatário). Esse
pacto rege a premissa de que aquela maneira de dizer do destinador é a que
melhor diz o desejo do ouvinte. Este sabe que aquele "é um fingidor / Finge tão
completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente".
"Eu minto,
mas mina voz não mente", canta Maria Bethânia. "Mesmo que os cantores sejam
falsos como eu / Serão bonitas, não importa / São bonitas as canções", canta
Chico Buarque. É a neo-sereia quem mente sentir o que de fato sente, pelo
ouvinte, para enredar este na sedução. O ouvinte, sempre carente de mentiras
sinceras que lhe estimulem verdades, encontra na credibilidade entoativa do
cancionista o canto sirênico necessário.
Tomando como
exemplo a canção "Choro bandido", de Edu Lobo e Chico Buarque (Na carreira, 2012), cujos versos
iniciais já foram aqui citados - "Mesmo que os cantores sejam falsos como eu /
Serão bonitas, não importa / São bonitas as canções" -, podemos identificar o
mecanismo da passionalização como elemento persuasivo utilizado pelo cancionista
de choro bandido, desonesto, fingido.
"Ao investir
na continuidade melódica, no prolongamento das vogais, o autor está modalizando
todo o percurso da canção com o /ser/ e com os estados passivos da paixão (é
necessário o pleonasmo). (...) A dominância da passionalização desvia a tensão
para o nível psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a
sonoridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua. A tensão de
emissão mais aguda e prolongada das notas convida o ouvinte para uma inação.
Sugere, antes, uma vivência introspectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão
que, em geral, já vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a
passionalização melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas pela
desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo" (TATIT:
1996, p. 22-23).
Composta para
a peça O corsário do Rei (1985), de
Augusto Boal, "Choro bandido", ao ir revelando as estratégias do sujeito da
canção, portanto, metacanção, aponta alguns dos mecanismos de sedução utilizados
pela neo-sereia: o fingimento - "Mesmo que você feche os ouvidos / E as janelas
do vestido / Minha musa vai cair em tentação" - e a mirada retrospectiva da
história do gesto de cantar - "Quando um deus sonso e ladrão / Fez das tripas a
primeira lira / Que animou todos os sons / E daí nasceram as baladas / E os
arroubos de bandidos como eu".
A referência
ao deus grego Hermes é clara. Protetor dos ladrões, ele teria construído a
primeira lira, instrumento de acompanhamento rítmico-melódico da poesia e da
canção. Em um de seus Hinos, Homero assim descreve a ato: "Ajustou, na medida,
umas talas de cálamo exatas, / E, do dorso através e da pele, enfiou no quelônio
/ E, conforme pensava, uma pele de boi esticou / E dois braços extremos dispôs,
por travessa ajuntados. / Sete cordas de tripa de ovelha estendeu harmoniosas. /
Ao depois de fazê-lo, tomou do amorável brinquedo / E co’um plectro uma a uma
provou cada corda, aos seus dedos / Ressoava tremenda" (Hinos homéricos, UNB, 2003).
Aí estão as
tripas de que fala o sujeito da canção "Choro bandido". Mas ele vai além, pois,
se tomarmos a popular expressão de domínio público "fez das tripas coração",
entendemos que, falso, o que o sujeito da canção está tematizando é o fingimento
implícito em toda canção. Ele faz da dor do desejo (das tripas) de não ter o
outro o seu motor (coração) do canto. O engenho é complexo e bonito, feito para
sedutor o ouvinte. Ou seja, a referência ao deus quer significar o próprio
trabalho do artista: cancionista, poeta - sujeito da canção. Ele sabe que "a
beleza existe sozinha", como canta Arnaldo Antunes, e aponta para sua
intervenção de cantor como aquilo que, falseando sentimentos e sensações,
embeleza e assalta a vida do outro no tecido das palavras e da melodia na voz. É
assim que o sujeito da canção promove sua canção a canto de sereia.
O sujeito de
"Choro bandido" é lúcido e tematiza as peripécias de todo cancionista: a
malandragem necessária para equilibrar oral e vocal, palavra na melodia cujo
objetivo é a sedução, o roubo dos sentidos do ouvinte. Situação da qual nem
Ulisses escapou: "Mesmo que você feche os ouvidos / E as janelas do vestido, /
Minha musa, vai cair em tentação". Em Homero, na verdade, são os companheiros de
Ulisses quem têm os ouvidos tapados, porém, segundo o sujeito da canção,
contrariando Adorno, nem mesmos estes se mantiveram imunes ao canto das sereias
já que podiam imaginar. "Uma rodela de cera cortei com meu bronze afiado, / em
pedacinhos, e pus-me a amassá-los nos dedos possantes. / Amoleceu logo a cera,
por causa da força empregada / e do calor grande de Hélio, o senhor Hiperiônio
esplendente. / Sem exceção, depois disso, tapei os ouvidos dos sócios (...) fiz
sinal com os olhos aos sócios que as cordas / me relaxassem; mas eles remaram
bem mais ardorosos" (HOMERO: 2000, p. 214).
O canto
mavioso, que desvia o ouvinte da rota segura em direção à morte, está
concentrado nos versos: "E eis que menos sábios do que antes / Os seus lábios
ofegantes / Hão de se entregar assim: / Me leve até o fim. / Me leve até o fim".
Ou seja, embriago no enredo vocal, no jogo poético, caberá ao ouvinte pedir
mais, para ir mais fundo e até o fim. Versos como "Mesmo porque estou falando
grego / Com sua imaginação" reforçam a tese de Tatit de que em canção não
importante muito o que é dito, mas o modo - a gestualidade - do dizer.
Tomando ainda
como referência a mitologia grega para decifrar seus modos de bandido, de
jogador que dribla os empecilhos, o sujeito dirá: "Mesmo que você fuja de mim /
Por labirintos e alçapões, / Saiba que os poetas, como os cegos, / Podem ver na
escuridão", referindo-se ao labirinto de Dédalo e ao adivinho Tirésias. É
quando, semelhante ao adivinho, alcança verdades incompreensíveis (das musas) ao
homem comum, e traduz estas verdades para qualquer um, que o sujeito da canção,
invenção do cancionista, promove este a neo-sereia.
E vale
ressaltar que para o sujeito de "Choro bandido" a musa é o próprio outro-ouvinte
da canção. É deste que o sujeito astuto retira os elementos de sedução -
carências e excessos, devolvendo tudo de forma processada esteticamente,
fingida, sedutora. Só o fato de instituir o outro ao status de musa já se
configura como armadilha lançada.
Resumindo:
Chico Buarque é cancionista - o autor, o compositor e o entoador/destinador - de
"Choro bandido". E é neo-sereia quando sua voz, ao entrar no ouvido do ouvinte,
promove o surgimento do sujeito cancional e, consequentemente, como resultado do
embate entre esse sujeito e o ouvinte, o reposicionamento deste no mundo.
***
(Edu Lobo / Chico Buarque)
Mesmo que os cantores sejam falsos como
eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim
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