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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Borges e Neruda: o gênio além da ideologia

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Algumas tentativas da percepção para transcender o conflito entre a lucidez e a sombra nas obras de dois nomes decisivos da literatura
 


De perto somos todos normais: de esquerda, de direita, de centro, alienados. De longe, quando a persona é vista em sua inteireza, que só pode ser expressada pelo talento de cada um, o bicho pega. Jorge Luis Borges e Pablo Neruda causam desconforto quando se fala neles. Um porque apoiou a ditadura argentina, outro porque foi ministro do governo de Salvador Allende. Essa maldição que persegue o gênio nos afasta da essência de suas obras. Neste ensaio, alguns pontos focais do trabalho inumerável de dois mestres da literatura universal. Um exercício de ver com os olhos livres e deixar de lado o que é datado e perecível, mesmo que o talento se expresse às vezes sob a ótica contaminada por convicções ideológicas. Fica no ar a pergunta: é possível uma obra transcender suas fontes mesmo quando não havia intenção de transcendência?
Próximo demais da luz
Iluminado pelas leituras de toda uma vida, Jorge Luis Borges descobre o essencial quando finalmente é empurrado para a sombra. A cegueira, dura presença aos 70 anos de idade, o deixa só diante da fonte que alimenta os clássicos — sua paixão explícita, uma rede tecida desde Virgílio a Kipling.
Nesse ambiente onde as palavras são desmascaradas — porque revelam-se desnecessárias — o escritor transforma-se no oculto veio que pacientemente garimpou nas bibliotecas, e que faiscava nos olhos de uma leitura privilegiada — árvore generosa de onde brotaram seus livros.
Memória, então torna-se esquecimento, a literatura transmuta-se em vida e a poesia é a alta gávea que anuncia a descoberta. Em “Elogio da Sombra”, não é a treva que ofusca a obra, mas um outro sol, imaginário antes, real agora, quando tudo vira linguagem. Inclusive o que não pode ser alcançado pelo poema, apenas sugerido, como os volumes submersos para sempre no alto das prateleiras.
Ao desistir de tudo, o escritor emerge como personagem, abandonando os leitores à própria sorte. Não foge, se encontra. Não trava, desanda. Não morre, eterniza-se. Aproveita para fazer um inventário, que passa por He­ráclito, Zeus, Buenos Aires, Joyce, Israel, o pampa — todos cenários que somem na neblina depois da última linha.
Mas fingir-se de morto não era seu objetivo. Sua intenção de identificar-se com a matéria-prima que o envolveu o tempo todo, é sincera. Retira-se da casa onde habitou para um lugar mais profundo, menos visível, mas indestrutível: é de lá que fluem os materiais forjados pelo gênio. A humildade diante do absoluto pode ser encarada como mais um jogo de sua predileção, mas o que salta à vista é a sobriedade inspirada pela presença da morte.
Esse é o seu destino: vazar o corpo fechado da razão para nele transparecer a loucura. Não o desatino dos doidos, mas a ardente lucidez da sabedoria.
Borges aproximou-se demais da luz e, aparentemente, recusou-se a tocá-la. Virou os olhos para o outro lado e nesse movimento, conquistou o definitivo espaço dos mestres. Ele nos conduz pela mão e, na beira do abismo, desaparece.
Ficamos, então, reduzidos ao pó de suas palavras, que ressoam como um sussurro, a ecoar a suprema ironia dos deuses. O livro não passa de uma armadilha. O que temos na mão é pura paisagem, rede que abraça a pedra na praia, e nos enreda, sugerindo afogamento. Quem, de sã consciência, teimará em escapar desse laço?
Cultura popular
Em “O Informe de Brodie”, coletânea de contos, o olhar “es­trangeiro” de Jorge Luis Borges sobre seu próprio povo denuncia suas convicções sobre a cultura popular. Admirador da poesia gauchesca, obra de advogados e jornalistas de Buenos Aires e Mon­tevidéu, ele descobre que os mitos do pampa não passam de uma nostalgia urbana. Fica, portanto, à vontade para abordar, sem concessões, as margens de uma nacionalidade mestiça, da capital e do interior da Argentina, onde recria, a seu modo, narrativas que todos teimam em lembrar.
Sem pactuar com o derramamento emocional que o cerca, o aço de sua escrita é temperada pelo calor da barbárie pingando sangue. Não há heróis para saudar, a não ser a experiência repassada pelas gerações, onde sobressai a traição, o crime, o ciúme e a falta de importância das personagens. É como se navegasse a favor da corrente de episódios e lendas que seu interesse acumulou, mas com a originalidade de uma linguagem sem raízes.
No rumo das lendas repassadas de boca a boca, obedece a mapas bem demarcados de suas leituras prediletas, livre das obsessões que ocuparam vasto espaço do seus contemporâneos. Ele sabe que a literatura tradicional não se opõe às novidades da vanguarda, já que é “feita de um conjunto secular de aventuras”. Insiste nessa matriz, consciente da sua infinita capacidade de encantamento.
Desse movimento que flui eternamente, porque realimentado pela memória e por ouvidos sempre atentos dispersos em todas as rodas e confidências, ele aponta para uma cultura que precisa se descobrir para mudar. Haverá saída para um universo onde o assassinato é permitido pelo cinismo da guerra? Sim, se o escritor conseguir despertar o horror ao descrever a cena.
A chave dessa ética cevada na solidão é a viagem hipnótica que a civilização desenvolve ao coração da crueldade: não haverá remissão se a ordem da escrita não dominar o caos da oralidade. Mas essa ordem já nasce, em Borges, contaminada pelos fantasmas de generais, damas, duelos, degolas. É co­mo se houvesse uma rendição, mas sem desonra. É a única vitória possível por um autor especializado em calamidades.
O truque é abrir mão do papel principal, mas não da autoria da trama. A Argentina, assim, transforma-se em puro Borges, o que não deixa de ser uma extrema ironia deste platino com os olhos voltados para a Inglaterra, que no deserto cultivou-se cosmopolita e foi um bibliotecário encerrado numa geografia ágrafa.
Épico insurgente
Neruda perdeu a terra e tenta recuperá-la por meio da poesia. Mas o que aparece no livro “Donde Nasce A Chuva” (tradução de Carlos Nejar), primeiro dos cinco volumes do seu “Memorial de Ilha Negra”, escrito aos 60 anos, não é apenas o Chile (e por extensão, a América Latina), mas principalmente a destruição da sua identidade pessoal. O poeta se debruça sobre sua infância, sobre sua cidade, e reconstitui esse processo de destruição para se redescobrir e recuperar o fio, apesar de saber que nunca será o mesmo e que está condenado, como todos, a uma viagem sem volta. No seu caso, essa viagem o levaria ao breve tempo de esperança no governo Allende e depois à morte, nos dias terríveis de setembro de 1973.
É por isso que Neruda não deixou, como herança, apenas uma descrição de sua terra, mas sua caminhada, sua tentativa de humanizar o homem destruído pela pressão social, sua vontade de recompor o mundo à imagem pura das matas de Temuco, onde “do machado e da chuva foi crescendo a cidade madeireira recém-cortada como nova estrela com gotas de resina”.
O livro é sobre a descoberta do mundo, os primeiros passos do poeta, suas revelações por meio da dor, sua passagem para novos estados de consciência que, ao mesmo tempo, o afastavam de suas raízes. Esse mundo nasce da cidade madeireira, da descoberta emocionada dos pais, da experiência de terror e lucidez nas matas e no mar, da adolescência tímida que descobriu o sexo, o colégio, o livro, e o levou à poesia, ao medo na capital e à rotina na pensão da rua Maruri.
Pelos olhos de Neruda passeiam as assombrações do seu Tio Genaro que veio das montanhas, as paisagens da terra — como nos poemas “Lago dos Cisnes” e “A Terra Austral” — e do povo, como em “A Injustiça” e “O Trem Noturno”. E, principalmente, a mudança do seu rosto, como neste trecho de “O Menino Perdido”: “E de repente apareceu em meu rosto um rosto de estrangeiro e era também eu mes­mo: era eu que crescia, eras tu que crescias, era tudo, e mudamos e nunca mais soubemos quem éramos, e às vezes recordamos aquele que viveu em nós e lhe pedimos algo, talvez que nos recorde, que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos com sua língua, mas desde as horas consumidas nos olha e não nos reconhece”.
Talvez só a poesia possa redimir o exílio, pois joga com a memória afetiva, redescobrindo o clima dos acontecimentos e as dimensões do homem nas suas viagens pelo furacão. Recompõe assim a história pessoal de uma coletividade, procura um rosto que permaneça e reine acima da perda, do eterno sentimento de derrota, dos foragidos que trocam de mundo também por que são empurrados, e não somente por sua sede de aventura. Neruda, apesar de eterno passageiro desse trem que nunca para, procura a memória social por meio de sua existência individual, recuperando a terra perdida e cumprindo seu destino de poeta e cidadão do mundo.
A história de Neruda, por sorte, é a história do povo. Nascido da chuva, da madeira, do pão e do vinho, ele é capaz de se identificar com os movimentos da terra e do tempo, retratando a aventura numa época de dispersão e miséria. Por ter descoberto a identificação do seu destino com o destino do Chile, pode-se dizer que Neruda, como todos os grandes poetas, é a pátria procurada pelos abandonados, pelos que foram varridos da sua terra, tanto pelo tempo como pela guerra. Felizmente, a tradução de Carlos Nejar conserva essa mágica experiência, por meio de um bom senso criativo, sem pretensões e exato. E há a vantagem de ser uma edição bilíngue, onde Nejar mostra-se útil até o fim.
O animal ferido da palavra
Poesia é a palavra diante da morte, a distância de um braço entre o poeta e seu destino. A tensão permanente do poema é a visão desse desenlace e é disso que se alimenta a sua eternidade. É por isso que o poeta sobrevive, não porque lute para ficar vivo, mas porque escreve sabendo que vai morrer. Quando, enfim, a última batalha desce sobre seu corpo em brasa, a obra grita, como condenada.
Pablo Neruda, morto há quase 40 anos, encarna esse animal que cruza todas as fronteiras e regressa à pátria para ser assassinado. Está na moda hoje destruir o mito para celebrar a exposição das vísceras, compensação de um tempo onde triunfa a indiferença. Assim, o vazio é confundido com virtude para privilegiar os “erros” de Neruda, como um poema para Stálin, por exemplo. Mas o que é datado, no poeta, morre com ele. O que permanece é o crepúsculo enrolado aos seus pés e a solidão, como um túnel.
Não é apenas a sua lírica que cresce quanto mais nos distanciamos do réquiem de 21 de setembro de 1973. Assoma a pátria, sua metáfora extrema: na hora em que morria , era o Chile que estava sendo devorado. Pois não bastava matar o presidente, era preciso também eliminar a esperança. Neruda entendeu que tinha chegado a sua hora. E acabou-se, puxando a toalha no momento em que os tiranos comemoravam a vitória.
Do seu engajamento fica essa encarnação do povo e terra, o lirismo épico de sua caminhada, a manutenção do mito, não restrito ao seu país. Ele pertencia a uma raça quase extinta, aquela que sumiu do mapa porque o mundo mudou de estilo. Já foi longe a época em que as nações cultivavam seu poeta, que recitava versos na praça e traçava biografias andarilhas.
Ele alimentava assim a multidão faminta de história, ainda presa a palavras hoje mortas, como atávico, mártir, telúrico. Era um artista popular da palavra, mas a mensagem que ele inventou para a rápida passagem do tempo atraiu a atenção dos lobos. Minaram então sua sorte trazida do berço, desmoralizaram seu andar partido, imitaram seu timbre, roubaram-lhe a voz. Pablo Neruda é a expressão maior desse romantismo tardio, desse último suspiro da imaginação emocionada, que morre nos braços do povo ao som da metralha.
Hoje, quando o Chile é visto pela sua performance econômica, seu perfil de tigre, lembramos o comportamento dos chacais. As manifestações nos aniversários do golpe de 1973 não podem prescindir da visita ao túmulo do poeta, gritar seu verbo em praça pública. Para o Brasil, retalhado numa guerra interminável — exatamente porque adiamos todos os desenlaces — ele inspira o tom de eternidade, que nos escapa. Estamos presos demais à pressa, à ilusão eterna do presente.
Muitos poetas apostam no supérfluo, no fugaz, no palavrão — ainda iludidos de que é possível “chocar” alguém com gestos ou palavras, não fôssemos nós observadores permanentes das chacinas. A poesia brasileira costuma ficar dividida entre o mimetismo nerudiano e o espólio da demolição con­cretista, entre a pomposidade inútil e o falso vanguardismo. Estamos mergulhados demais no horror para enxergar a poesia.
É nesse túnel que deve se desenhar o poema ainda em silêncio, como um animal ferido. A longa cicatrização imobiliza o gesto, enquanto a palavra estilhaça nos vidros de uma nação que derrapou. Nesse exílio obrigatório, a morte de Neruda abre uma trilha. Ele identificou-se com a grandeza e a tragédia chilena e tornou-se o mais caro patrimônio do país. Precisamos deixar que ele nos toque com os dedos longos da palavra.
Não podemos entretanto, mergulhar no equívoco de endeusá-lo, nem nos deixar enganar pela maior parte da sua obra póstuma. O que ele mesmo publicou já basta: “Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada”, “Con­fesso que Vivi”, As Mãos do Dia”, “Canto Geral”, entre outros livros iluminados.
 
 

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