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sábado, 10 de dezembro de 2011

De laços, de seios, sábados e tormentas

Caio Fernando Abreu


Paris – Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre sábado, igual em Paris, Porto Alegre ou Cingapura. Sempre no ar aquela expectativa – pizza, cinema ou beijo, não importa – de uma gota de mel para o domingo. Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse laço. Nunca tem. Mas desta vez – explosão! Como diria Clarice Lispector – ah, desta vez sim, bem grande no alto da última página: BRÉSIL. Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete fazer nada, acendi um cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns 10 minutos, absolutamente natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem fôlego, morto de sede e saudade.

Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio histórico da humanidade. Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, América do Sul. Um seio amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror que minha forma mais eficiente de reproduzi-lo é repetir sua síntese aqui assim numa única linha para que fique bem claro e medonho e irrecusável na sua hediondez que ofende a todos nós.

Canibalismo em Olinda.

Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os bêbados fazem muito, embora tenha passado dos 40 e, hoje, só bebi café e vitamina C. Dobro o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia. Capricho na pronúncia ao pedir a conta, para que não suspeitem de onde venho e saio de fininho. Ando sem rumo por Alesia até me atrasar para a entrevista. Eva Louzon, apaixonada pelo Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do sol, da energia bruta da terra – axé! Axé – que-aqui-não-tem! -, de Machado e Rubem F. e Lygia Fagundes e Hilda Hilst e muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto, cascatas, araras, essas praias murmurantes aonde a lua vem brincar e futuro resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por brasilidades histéricas, fumo demais. No metrô um punk antigo demi-moicano ameaça com navalha quem não dá dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre funciona. Desabo no Marrais de tardezinha.

Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma antologia de contos gay organizada por David Leavitt. Podia visitar sem aviso Betty Milan, que mora na esquina, telefonar para qualquer um, em português, assistir Jeanne La Poucelle, Sandrine Bonnaire como meu ídolo de infância, Joana D’Arc na versão de Erico Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais, ruas cheias demais. Quero voltar para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir sem sonhos. Alguma coisa me falta, desesperadamente.

Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O dia é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não tenho agora, um país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me jogar no Sena, me embriagar alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em frente.


A placa (Gracias, Ricardo Costi)
Quai de Bourbon, número 19. Uma placa diz que ali viveu Camille Claudel. Mais abaixo, esta frase dela – “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) – escrita exatamente há 108 anos. Mas já vivi isso, penso, por que outra vez? Quero acender uma vela pela alma de Camille, a multidão de japoneses barra a entrada da Notre-Dame. Amanhã, amanhã sem falta em Saint-Germain de Prés. Volto pelos túneis cheios de namorados. O sábado, o mel. O Brasil me falta e dói como dizem doer a ausência de um membro amputado, o seio no lixo, o tormento e a tormenta nas esquinas de Pernety, eu repito e repito o horror que ofende a todos nós:

Canibalismo em Olinda.

E no entanto eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.

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