Há pessoas que, por passar três vezes mais tempo no trabalho que em casa, apreciam ficar em casa fazendo nada. Nada contra. É bom mesmo procurar curtir seu lar de vez em quando. Observar os cantos dos móveis empoeirados ou as novas rachaduras nas paredes enquanto pensa nada, faz nada... Nada...
Nesses momentos de ócio puro e simples é que você começa a perceber os trejeitos mais simples das pessoas, as manias loucas, os feitos repetitivos, automáticos e inconscientes de nosso corpo. Eu abro a geladeira para pensar. Ou para continuar sem pensar mesmo. Andando pela casa sem rumo, a cozinha passa a ser parada oficial de cinco em cinco minutos.
Não, não chego a pegar nada (não tem nada mesmo), mas é o ato indispensável de abrir a geladeira, receber o frescorzinho, olhar a lâmpada interna acesa por alguns segundos e fechá-la em seguida, sem saber porque a abri. Até voltar lá e fazer novamente.
Essas andadas pela casa é que impressiona. Pode ser um apartamento de quatro metros por seis, mas a gente ainda acha como andar dentro de casa, e olhar a janela, e abrir a porta para ver a rua, e olhar os cantos do banheiro, e abrir a geladeira...
E você caminha pelado, ou no mínimo, em roupas íntimas, com aquela sensação de liberdade e reconhecimento na área, observando tudo ao redor. Nada melhor que ficar, assim, em casa, fazendo absolutamente nada. Se jogar no sofá, encoxar o travesseiro. Tudo, menos fazer qualquer tipo de fritura, claro!
Fazendo nada, assistimos televisão por no máximo vinte minutos, antes de sermos acometidos pelo tédio. Acompanhados, sexo, claro! Sozinhos, banheiro, óbvio. Depois, um banho. Daqueles que há tempos você não toma. De ficar sentado no chão do banheiro sentindo a água escorrer (de preferência gelada, em um dia bem quente). Dança um pouco com a música alta do vizinho.
Homens checam se está tudo nos conformes e rir até engasgar com a água depois de soltar um pum no chuveiro e ouvir o eco dentro do Box (ou observar as bolhinhas na banheira). Mulheres fazem o exame de mama que há tempos não dava tempo de fazer, fazem as pernas e o bigodinho, ainda que não esteja na época (afinal, quando haverá tempo novamente?) e sentam em um banquinho dando um longo tratamento nos cabelos, há muito, maltratados.
Ao secar-se, privada, mas antes, descarga. Duas coisas: primeiro, ninguém gosta de usar a privada depois de um banho. Parece anti-natural. Segundo, que mania louca é essa que temos? Nós só usamos a água da privada se estiver branquinha. Sem nada. Limpa. A gente vai urinar, muitas vezes de longe, mas onde quer que estejamos não o fazemos antes de dar descarga.
Não sei o porquê, mas queremos exclusividade. Ninguém pode ter estado ali antes de nós. Queremos ver a água mudando de coloração aos poucos e, ao fim, dizermos ‘obra minha’. Se for número dois e não tem água, aí complica mesmo. A pessoa vai, preocupada com a prisão de ventre ou com o chicotinho, mas reza fervorosamente para que nada ‘respingue’, quase chorando.
A mania é contra todas as políticas ambientais. Na França, um dos ministros recomendou “se não for sólido, deixe lá”, se referindo à economia de água. Dizem que no banheiro da casa dele, uma privada passou quase dois meses sem descarga. Isso me leva a várias conclusões.
Primeiro, a família do mesmo tem rolhas anatômicas de dissolução intestinal. Segundo, a política de visitas na casa da família era bem interessante. “Posso usar o banheiro?”, “Qual o número?”, “Ahn?”, “Dependendo do que for fazer, te encaminho para o banheiro ‘encarregado’. O dos fundos, número dois. Ao lado do quarto da esquerda, número um. E o de lá de cima, número três e afins”, “Ahn?”, “Você sabe, muitos ficam excitados na casa alheia. E ainda pode rolar maquiagem, depilação, coisas assim”. Terceiro, oh, povo porco!
Sai, se troca, tenta arrumar as gavetas do quarto. Desiste na segunda, mas acha antigos álbuns de retratos com fotos que gostaria de esquecer, mas adora rever. Decide atualizar a agenda telefônica. Começa a listar. Muitos números. Não, decide tomar sorvete. Para que lista, não é? Lembra do frio e vai limpar o filtro do ar-condicionado. Agora já tirou, tem que limpar mesmo. Tenta fazê-lo na máquina de lavar e sem sucesso, vai à mão mesmo. Aproveita para lavar os sapatos que estão jogados no canto. Sem tirar o cadarço mesmo para não perder tempo.
Decide ir ver os vizinhos, que há tempos não encontra. Não estão. Pensa em como é bom ter vizinhos. Vizinhos e seus simpáticos cães e crianças, sempre silenciosos. Chega à conclusão que é impressionante como todos se juntam na derrota. Se um vendaval passou destruindo tudo ou o mar destruiu suas casas, todos se juntam, vivem juntos, choram juntos, rezam. Irmãos em tragédia. Basta que um deles ganhe na loteria e saia gritando para seus ‘irmãos’ “estou rico! Estou rico!” para ouvir, segundos depois “perdeu, playboy. Passa!”.
Volta para casa. Destino certo: internet. Ninguém online. Todos trabalhando. Que vida cruel! Decide procurar algo para comprar, mesmo com pouco dinheiro. Cd? Dvd? Não, João vende a três reais, não vale. Já sei! Diploma! Qual vai ser dessa vez? Letras. Afinal, é só saber ler mesmo, não é? Ótimo. Emitido em três dias com certificado do MEC.
Tira a roupa. Começa a andar pela casa. Abre a geladeira. Olha pela janela para o interior dos apartamentos de frente. Não, ninguém fazendo sexo. Liga a televisão. Nada. Desiste em dois minutos. Liga o som. Ninguém para dançar. Deixa. Pensa “Que merda estar em casa com nada para fazer”.
Vai ao quarto. Cama convidativa. Esqueceu o condicionador de ar ligado. Deita na cama e lembra do trabalho. “De volta à escravidão amanhã. O atestado vai expirar”. Abraça o travesseiro e muda de idéia. “Tão bom ficar em casa fazendo nada”. E dorme. Luxo que há tempos não se permitia. Melhor aproveitar, pode ser sonho... Silêncio!
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