Pesquisar este blog

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

CONFESSO QUE VIVI



Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim. A intermitência do sonho nos permite suportar os dias de trabalho. Muitas de minhas lembranças se toldaram ao evocá-las, viraram pó como um cristal irremediavelmente ferido.As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época.Talvez não vivi em mim mesmo, talvez vivi a vida dos outros. Do que deixei escrito nestas páginas se desprenderão sempre - como nos arvoredos de outono e como no tempo das vinhas – as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta.


A TIMIDEZ


A VERDADE é que vivi muitos de meus primeiros anos, e talvez de
meus segundos e de meus terceiros, como uma espécie de surdomudo. 

Ritualmente vestido de negro desde muito jovem, como se vestiam
os verdadeiros poetas do século passado, tinha uma vaga impressão
de não estar tão mal de aspecto. Porém, em vez de me aproximar
das moças, certo de que tartamudearia ou enrubesceria diante delas,
preferia passar ao largo e distanciar-me, mostrando um desinteresse
que estava muito longe de sentir. Todas eram um grande mistério
para mim. Queria morrer abrasado nessa fogueira secreta, me afogar
nesse poço de profundidade enigmática, mas não me atrevia a atirar-me
no fogo ou na água. E como não encontrava ninguém que
me desse um empurrão, passava pelas margens da fascinação sem
olhar sequer e muito menos sorrir.
 

A timidez é uma condição estranha da alma, uma categoria e
uma dimensão que se abre para a solidão. Também é um sofrimento
inseparável, como se a gente tivesse duas epidermes e a segunda
pele interior se irritasse e se contraísse diante da vida. Entre as
estruturações do homem, esta qualidade ou este defeito são parte
do amálgama que vai fundamentando, numa longa circunstância, a
perpetuidade do ser.
Meu excessivo acanhamento, meu ensimesmamento prolongado
durou mais que o necessário. Quando cheguei à capital fiz aos poucos amigos e
amigas. Quanto menos importância me concediam, mais
facilmente lhes dava minha amizade. Não tinha nesse tempo grande
curiosidade pelo gênero humano. Não posso chegar a conhecer todas
as pessoas deste mundo, me dizia. Mesmo assim surgia em certos
meios uma curiosidade pálida por este novo poeta de pouco mais de
16 anos, rapaz reticente e solitário, a quem viam chegar e partir sem
dar bom dia nem se despedir. Além do que, eu vestia uma longa
capa espanhola que me fazia parecer um espantalho. Ninguém suspeitava que minha
vistosa indumentária era diretamente produzida por minha pobreza.
Entre as pessoas que me procuravam estavam dois grandes esnobes da
época: Pilo Yaflez e sua mulher Mina. Encarnavam o exemplo perfeito da bela
ociosidade em que eu gostaria de viver, mais
distante que um sonho. Pela primeira vez entrei numa casa com calefação, luzes
suaves, poltronas confortáveis, paredes repletas de livros
cujas lombadas multicores significavam uma primavera inacessível.
Os Yanez me convidaram muitas vezes, gentis e discretos, sem fazer
caso de minhas diversas camadas de mutismo e isolamento. Voltava
contente de sua casa, eles o notavam e voltavam a me convidar.
Naquela casa vi pela primeira vez quadros cubistas e entre eles
um Juan Gris. Disseram-me que Juan Gris havia sido amigo da família em Paris.
Porém o que mais me chamou a atenção foi o pijama de
meu amigo. Aproveitava toda ocasião para olhá-lo de soslaio, com
admiração intensa. Estávamos no inverno e aquele era um pijama de
fazenda grossa, como de tecido de bilhar, mas de um azul ultramarino.
Eu não concebia então outros pijamas que não fossem os listados
como os de uniforme dos presos. O de Pilo Yaüez fugia de todos os
padrões. Sua fazenda espessa e seu azul resplandecente excitavam
a inveja de um poeta pobre que vivia nos subúrbios de Santiago. Porém, em
verdade, jamais em cinqüenta anos encontrei um pijama como
aquele.
Perdi de vista os Yaüez por muitos anos. Ela abandonou o marido,
abandonando igualmente as luminárias suaves e as poltronas excelentes, pelo
acrobata de um circo russo que passou por Santiago.
Mais tarde vendeu entradas, da Austrália às Ilhas Britânicas, para
colaborar com as exibições do acrobata que a deslumbrou. Por fim
foi Rosacruz ou algo parecido num acampamento mistico do sul da
França.
Quanto a Pilo Yaüez, o marido, mudou de nome para Juan Emar e se converteu com o tempo em um escritor poderoso e secreto.
Fomos amigos toda a vida. Silencioso e gentil, porém pobre, assim
morreu. Seus numerosos livros ainda não foram publicados mas sua
germinação é certa.
Finalizarei sobre Pilo Yanez ou Juan Emar (e voltarei à minha
timidez) recordando que, durante a época estudantil, meu amigo Pilo
se empenhou em apresentar-me a seu pai. "Conseguirá para ti uma
viagem à Europa com toda certeza", disse. Nessa época todos os
poetas e pintores latino-americanos tinham os olhos fixos em Paris.
O pai de Pilo era uma pessoa muito importante, um senador. Vivia  numa
dessas casas enormes e feias, numa rua perto da praça principal e do
palácio da presidência, sem dúvida o lugar onde ele teria preferido viver.
Meus amigos ficaram na ante-sala, depois de despojar-me de minha
capa para que eu parecesse mais normal. Abriram-me a porta da sala
do senador e a fecharam às minhas costas. Era uma sala imensa,
talvez em outros tempos um grande salão de recepções, mas estava
vazia. Só lá no fundo, no extremo do aposento, debaixo de um
abajur de pé, distingui uma poltrona com o senador em cima. As
páginas do jornal que lia ocultavam-no totalmente como um biombo.
Ao dar o primeiro passo sobre o assoalho polido e criminosamente
encerado, resvalei como um esquiador. Minha velocidade crescia vertiginosamente.
Freava para me deter e somente lograva dar
solavancos e cair várias vezes. Minha última queda foi justamente
aos pés do senador que me observava agora com olhos frios, sem
soltar o jornal.
Consegui sentar-me em uma cadeirinha a seu lado. O grande homem me
examinou com um olhar de entomologista fatigado a quem
trouxessem um exemplar que já conhece de memória, uma aranha
inofensiva. Perguntou-me vagamente por meus projetos. Eu, depois
da queda, era ainda mais tímido e menos eloqüente do que de costume.
Não sei o que lhe disse. Ao cabo de vinte minutos me estendeu
uma mão pequenina em sinal de despedida. Pensei ouvi-lo prometer,
com uma voz muito suave, que me daria notícias suas. Depois voltou
a tomar seu jornal e empreendi o regresso, através do perigoso piso,
exagerando nas precauções que deveria ter tido quando entrei. É
claro que nunca o senador, pai de meu amigo, me procurou. Por
outro lado, uma revolta militar, estúpida e reacionária por certo o
fez saltar mais tarde de seu assento juntamente com seu jornal interminável.
Confesso que me alegrei.


Dedicado a outro PABLO, meu filho, que herdou o nome do grande poeta/escritor/político chileno e também a timidez, no dia do seu aniversário...Amo ambos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário