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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Com qualquer dez mil réis e uma negra se faz um vatapá?

 

“Décadas depois do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, finalmente a era das empregadas domésticas está chegando ao fim no Brasil. As moças pobres querem estudar para seguir outra profissão, já não têm como horizonte apenas dedicarem suas vidas às vidas de outras gentes. Não querem ser mais ‘praticamente da família’, como se dizia, querem ter suas próprias famílias. Tampouco almejam que suas filhas herdem o serviço, trabalhando para os filhos dos patrões, como acontecia antigamente. ‘A família dela está na nossa família há anos’: quantas vezes ouvi isso? Acabou.
Mas vejam o que se dá. Em vez de dizermos ‘adeus, queridas, obrigada por tudo’ e tentarmos descobrir outra maneira de cuidar da casa e criar nossos filhos, o que se vê são narizes torcidos. Fala-se das moças que não querem mais dormir no emprego porque estudam à noite como ‘esnobes sem causa’. Ironiza-se a empregada que ’se acha melhor do que a patroa’, a que sente saudade de sua terra e quer ir embora, a ‘estudante-de-direito’. Acusa-se toda uma categoria de estar fazendo guerra de classes dentro de casa, roubando as patroas. Por último: como antes se importava do Nordeste, agora importam-se criadas do Paraguai.
Em termos familiares, construímos nossas vidas com a ilusão de que teríamos empregadas domésticas para sempre. No Brasil, ao contrário de outros países, as crianças passam um tempo mínimo na escola. Em casa, ensinamos nossos filhos – e eu mesma me penitencio por isso – a não fazerem qualquer tarefa doméstica. Há quem se gabe de, na cozinha, ser incapaz de fritar um ovo. Mas, sem as empregadas, já não somos como a garota do anúncio antigo da batedeira Walita, toda sorridente porque, depois, vai ter quem limpe a bagunça. Órfãs, não sabemos o que fazer daqui para a frente.
Para começo de conversa, não há maneira mais digna de se lidar com esta realidade do que aceitar que nossas empregadas estão subindo na vida. Sem chororô, com orgulho: é mais uma etapa que superamos do subdesenvolvimento. O que temos de fazer é modificar a maneira como vivemos até agora – exigindo escolas integrais e semi-integrais para nossos filhos, por exemplo. Também é preciso, mais do que nunca, que homens e mulheres, adultos e crianças, ajudem nas tarefas do lar, lembrando que as divisões por gênero foram abolidas há muito. Não nos resta outra saída a não ser simplificar nosso modo de morar, de viver – e de comer. Chegou a hora de aprender a mexer o vatapá.”
Trecho de As garotas Walita órfãs, artigo de Cynara Menezes
O título do post remete à canção Vatapá, de Dorival Caymmi
 
 

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