O advento de um lapso ‘psicossemântico’
Descobri uma coisa incrível depois de 28 anos de análise: desejo e vontade não significam a mesma coisa. Quer dizer, eu já sabia disso, ou já soube, nos momentos em que a razão prevaleceu sobre a emoção, ou quando a questão se traduzia por essas duas palavras (razão e emoção) — que costumam ser tratadas como arquirrivais só reconciliáveis via autoajuda.
Mas, no resto do tempo, quando a emoção esteve no controle (o oposto de “sob controle”...), o desejo e a vontade sempre se confundiram, ou melhor, uniram-se, como se fossem sinônimos absolutos, necessários, e não apenas eventuais. Que desvios — ou avanços — isso provocou no caminho percorrido até aqui, é assunto para muitas sessões, ou motivo para meditações no Himalaia.
Enquanto isso, vou falando desse persistente lapso psicossemântico com um monte de gente, inclusive com o economista, humanista e hedonista Carlos Lessa, durante um recente almoço no Centro. Ele respondeu, com um sorriso de caipirinha de maracujá:
— Desejo e vontade? Uai, mas não são sinônimos, não?
Juntos, eu e Lessa, ao nos descobrirmos parceiros de distorção afeto-cognitiva, rememoramos as diferenças entre os sentidos dos significantes, num colóquio ruidoso.
Mais tarde, consultei o dicionário, instância primeira, mas não última, do conhecimento, deixando de lado as exceções e procurando um mínimo múltiplo comum que me permitisse essa despretensiosa dissertação.
Rememorando: o desejo está irremediavelmente atado aos anseios imediatos, aos impulsos, às aspirações uterinas e uretrais, à fisiologia (não confundir com fisiologismo, que está no domínio da vontade, mesmo quando é alimentado pelo desejo).
Deseja-se o poder, a comida, a bebida, o gozo, a vertigem, a completude, a vida, a morte, o pico, o buraco, a satisfação máxima de uma imposição dos sentidos, o atendimento de uma emergência nem sempre exequível, que não cessa diante da razão, que só atende ao pulso, aos humores, aos rumores sussurrados (ou saussurrados?) pelo inconsciente.
Já a vontade envolve a escolha, a alternativa, o dizer “sim” ou “não” ao desejo, em vista das circunstâncias e da previsão das consequências, envolvendo, sempre, uma decisão, ainda que a decisão seja a de não decidir nada e adiar o exercício da escolha, mesmo indefinidamente, até o dia de ir para a tumba, cálculo final.
O desejo não é moral nem imoral, embora seja tantas vezes classificado como tal: ele é, sempre, necessariamente, amoral: envolve uma ética instintiva, “pura”, pré-civilizacional, sem consciência do risco, ligada diretamente às esferas não verbalizáveis da máquina mental, mais afeita à força da ancestralidade que ao aprendizado de vida.
A vontade, mesmo quando é imoral, envolve um cálculo e algum nível de consciência dos dilemas éticos inerentes (ainda que enunciados pelo “outro” ou pelas leis), que servirão à estratégia para que perdure e procrie o projeto, ou se desista dele em nome de algum patrimônio, físico ou etéreo. Em outras palavras, tirar o seu da reta ou engolir sapo estão no plano da vontade, a não ser quando o desejo de humilhação seja o motivo de se experimentá-la voluntariamente.
O desejo é infantil, livre de amarras, mas é escravo incônscio de si próprio: ele pode variar, conviver com outros desejos, inclusive deopostos, mas cada desejo é uno, plano achatado, monofônico, não permite cisão, é anterior — e, portanto, imune, ao ego —, lá onde ele estiver e por mais sublimado que esteja.
A vontade é adulta: livre apenas no sentido do arbítrio. Em pessoas consideradas sãs e socializadas, ela instala a matemática no seio da emoção, submete-se ao teste, põe-se à prova, aceita a polifonia e a complexidade, expressa tecnicamente ou na base da intuição, solitariamente ou com ajuda profissional ou de toda sorte de palpiteiros.
O desejo é a pauta da vontade. Sem o desejo, a vontade não existe, é um copo (ou um corpo?) vazio, inerte, morto. Ao passo que, com ou sem a vontade, o desejo nunca cessa, ele prescinde da vontade.
Sem a vontade em seu caminho, o desejo impera, jorra aos borbotões. Numa esfera utópica, esse transbordamento pode ocorrer num escopo “moral”, através de um pacto circunscrito a um local ou momento. Mas pode também vir à luz na obra do psicopata, que, em relação ao destruidor “saudável” (o que sente culpa, tem consciência mas se corrompe e corrompe mesmo assim, por vontade própria) tem a favor de si, ao menos em teoria, o atenuante da enfermidade, até prova em contrário.
Com a vontade em dia, o desejo também existe, persiste, procura seu caminho, escoa. É rio rumo a algum mar. Se ficar represado, o desejo vai dar o ar da graça (ou da desgraça) no palco da vontade: através de disfarces, representações, máscaras, desfigurações. Se o acúmulo de desejo for excessivo, a vontade, como um dique fragilizado, pode ruir, resultando em todo o tipo de convulsão, individual ou coletiva.
O desejo é sempre infiel e desleal. Destrói para possibilitar a reconstrução. O desejo alimenta a paixão. Quando ele se extingue, a paixão se apaga e se volta para outro alvo. A vontade, então, intervém, age em nome do amor. E volta a agir em nome da paixão, quando o amor oprime: então a vontade pesquisa (se necessário, cientificamente), procura, escava o território árido em busca da fonte que secou.
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A Guerra das Malvinas é desejo. A campanha contra Hitler é vontade. E Hiroshima?
http://sergyovitro.blogspot.com/
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