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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

sonho desfeito






No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho?

Entretanto a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar; e assim três, quatro vezes sucessivas.

Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro. Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.

Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez, que, sentado, de frente para a janela por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: "Meu Deus, seus olhos estão esverdeando":

Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro: inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível, como um lento bailado.spacca_braga2.jpg (17305 bytes)

Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?

Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.

Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos. O homem fez um grande embrulho de jornal; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.

E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre acabara; alguém viera e batera à porta, e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo o recibo de uma carta registrada, e quando o telefone bateu foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre — senti que ela me disse isso num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza onde entretanto ainda havia uma inútil, resignada esperança.


Texto extraído do livro "Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha", Publifolha – SP, 2001, pág. 132.

Ilustração: Spacca

João Spacca de Oliveira (1964), nasceu em 1964, em São Paulo (SP), é cartunista e ilustrador. Fez "storyboards" para filmes publicitários no começo da carreira, depois, entre 1985 e 1995, criou charges políticas para o jornal "Folha de São Paulo" e ilustrou o suplemento infantil "Folhinha" por dois anos. Escreveu histórias em quadrinhos para as revistas "Níquel Náusea" e "Front", e também trabalhou com animação. Atualmente faz charges para a versão on-line do "Observatório da Imprensa" e para publicações empresariais. Ilustrou , para a "Companhia das Letrinhas", "O Mário que não era de Andrade", de Luciana Sandroni; "O jogo da parlenda", de Heloísa Prieto; "A reunião dos planetas", de Marcelo Oliveira; e "Vice-versa ao contrário", de vários autores. Escreveu e ilustrou "Santô e os pais da aviação — A jornada de Santos-Dumont e de outros homens que queriam voar" (vencedor do prêmio HQMIX 2006 nas categorias Desenhista Nacional, Edição Especial Nacional e Roteirista Nacional); "Debret em viagem histórica e quadrinhesca ao Brasil", e "D. João Carioca — A corte portuguesa chega ao Brasil (1808 - 1821)", publicados pela Cia. das Letras. Em 2005, Spacca recebeu o primeiro prêmio de charge no Salão Internacional de Humor de Piracicaba.


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