Nelson Rodrigues, 100 anos, nosso Dickens do subúrbio
3janNelson Rodrigues (1912-1980) mostrou aos brasileiros como era o Brasil, em linguagem simples e direta. Ninguém mais fez isso tão bem como ele.
No ano em que completaria 100 anos – depois de intensa relação de amor e ódio com a intelectualidade brasileira — a obra de Nelson conquista certa unanimidade, a mesma que ele, ironicamente, considerava burra.
——-Na noite de 28 de dezembro de 1943, a nata da elite intelectual carioca — embaixadores, escritores, poetas e jornalistas — lotou o Teatro Municipal do Rio de Janeiro para assistir à estreia de Vestido de Noiva. O autor, o então jovem dramaturgo Nelson Rodrigues, de 31 anos, passou todo o tempo na antecâmara de um camarote, apavorado, ora de frente, ora de costas para o palco, a úlcera pegando fogo. Ao término do primeiro ato, duas palmas foram ouvidas. “Estou frito”, pensou Nelson. Acabou o segundo ato e as palmas minguaram. Nem as irmãs do autor aplaudiram. Ao fim do último ato, o pano caiu, e com ele um silêncio esmagador. Algumas palmas foram ouvidas, e outras, e mais, aumentando até o teatro ser tomado por um estrondo de aplausos frenéticos que ecoou por minutos.
Nos dias seguintes, Nelson foi acolhido por aquela elite intelectual. O poeta Manuel Bandeira e os críticos Álvaro Lins e Décio de Almeida Prado, que conheciam o texto, já haviam feito elogios públicos antes da estreia. Gilberto Freyre, Augusto Frederico Schmidt e Guilherme Figueiredo logo engrossaram o coro de admiradores. Mesmerizados com o que viram — um show de 132 efeitos de luz, 140 mudanças de cenas e 32 personagens conduzidos pelo diretor polonês Ziembinski —, Otto Maria Carpeaux, Carlos Drummond de Andrade e Alceu Amoroso Lima juntaram-se àqueles que passaram a ver em Nelson a grande novidade do teatro brasileiro.
Era isso e mais. Com Vestido de Noiva, Nelson Rodrigues entrava para o clube dos pensadores brasileiros, pertencente a uma geração — a dos anos 30 — que achava importante decifrar o país. Nos anos anteriores ao seu primeiro sucesso nos palcos surgiram as três obras magnas dessa corrente: Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda, e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior. Nelson viu-se nesse time atacando em duas frentes por muito tempo desprezadas pelos estudiosos, pela distância que guardavam do mundo acadêmico: a crônica de jornal e o teatro.
Em ambos os casos, interessava-lhe menos o estilo rebuscado do ensaio e mais a linguagem direta das ruas. Pode-se dizer que Nelson fez a crônica de seu tempo mesmo quando escreveu teatro. Nas duas formas, ele teve o mérito de resumir, de forma acessível, o Brasil para os brasileiros. Mas será que ele próprio se levava a sério como pensador das coisas brasileiras? A crítica de teatro Barbara Heliodora acha que sim. “Ele levava sua obra muito a sério, e ela revela que ele tinha, mesmo que não verbalizados, certos princípios dominantes para sua visão das coisas”, diz.
O jornal como princípio de tudo
Nelson é resultado da sucessão de revezes que marcou sua vida pessoal e do jornalismo que praticou desde cedo. Fumava quatro maços de cigarro ordinário por dia. Ficou tuberculoso aos 23 anos. Era cardíaco, enxergava muito mal e cultivou uma úlcera durante quase toda a vida. Foi repórter policial, editorialista político, cronista esportivo e autor de folhetins, crônicas, contos, romances, novelas e peças teatrais. Começou a escrever teatro premido pela falta de dinheiro, mas logo foi tomado de ambição literária. A partir de então, seu objetivo passou a ser o reconhecimento dos grandes intelectuais da época — que ele atingiu ainda jovem, no episódio descrito no início desta reportagem.
Nelson sempre esteve no jornal — e o jornal, em sua época, era o ponto de encontro dos intelectuais. Suas colunas e crônicas misturavam literatura, colunismo social, crítica literária e comentários políticos. Fustigava seus desafetos publicamente. Até Otto Lara Resende, de quem era amigo e admirador, foi alvo da sanha rodrigueana. De acordo com Victor Hugo Adler Pereira, professor de literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o jornalismo não somente atraía uma parcela da intelectualidade que desejava interferir nos rumos da vida pública, como também oferecia possibilidades de ganho aos jovens intelectuais. “Durante os anos 50 e 60 pode-se reconhecer que a consagração pública de alguns poetas e escritores de peso, como Drummond, Cecília Meireles e até mesmo Clarice Lispector, deveu-se, em parte, à atuação nos jornais como cronistas”, afirma. Segundo o dramaturgo Caco Coelho, que coligiu num livro os primeiros escritos do autor, Nelson não via diferença entre literatura e jornalismo — e naquela época ela, de fato, quase não existia.
Como era o Brasil de Nelson?
O que torna a obra de Nelson relevante para entender o país em seu tempo é que ele buscou o chamado “Brasil profundo” no subúrbio carioca. A chamada literatura regionalista, contemporânea dos grandes ensaístas Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior — e que também tentava, a seu modo, “explicar” o país —, se debruçava sobre o Brasil rural. Nelson era eminentemente urbano. A partir de A Falecida (1953) surge no teatro uma parcela da sociedade quase invisível na produção cultural nacional: a classe média, até então só focalizada por Lima Barreto. Para Fábio de Souza Andrade, professor de literatura da USP, Nelson tinha faro e pena de caricaturista e, em suas mãos, o subúrbio do Rio sobrevive à pesada estilização por trás do moralismo histriônico. “Nelson Rodrigues tinha alguma coisa de vitoriano deslocado, de Dickens da Pavuna, sem demérito para nenhum dos dois. A atualização de arquétipos míticos e uma linguagem sensível às imagens fazem do seu teatro coisa difícil de igualar”, diz.
Em sua visão do subúrbio, Nelson incorporou até Sigmund Freud, o que era extremamente ousado para a época. “Nelson, mesmo sem dominar em profundidade as lições psicanalíticas, tinha do assunto aquela informação genérica, acervo de todo cidadão de conhecimento mediano, que autorizava a tratar de incesto e assuntos familiares”, afirma o crítico Sábato Magaldi. Foi por causa disso que uma peça como Álbum de Família (1945), que levou o incesto para os palcos e inaugurou, nas palavras do próprio Nelson, a fase do “teatro desagradável”, causou tanto escândalo e foi proibida por duas décadas. A influência freudiana também está em Anjo Negro (1947), na relação incestuosa entre a jovem Ana Maria e seu pai presumido, o negro Ismael; e em Senhora dos Afogados (1947), na paixão de Moema pelo próprio pai. O mesmo vale para Vestido de Noiva, em que duas personagens mortas, Alaíde e Clessi, enunciam com liberdade — justamente porque mortas — o plano do inconsciente.
O Brasil de Nelson era, assim, cosmopolita, de temática urbana e ligado às idéias de seu tempo. Mas havia mais. Como bom cronista, ele resumiria o país numa frase de efeito que hoje é um slogan sobre o Brasil tão citado quanto o “país do homem cordial”, de Sérgio Buarque, ou o “país das idéias fora do lugar”, de Roberto Schwarz — um dos muitos críticos das posições políticas do autor durante o regime militar. Nelson é autor da expressão “complexo de vira-latas”, que surgiu durante a cobertura da Copa do Mundo de futebol, em 1958. A epopeia do Brasil em busca de seu primeiro título mundial parece feita sob medida para um manual de sociologia — ou para ilustrar o livro Casa Grande & Senzala.
Oito anos antes, o Brasil havia perdido a Copa do Mundo para o Uruguai, derrota atribuída na época a dois jogadores, por acaso, negros — o goleiro Barbosa e o lateral Bigode. Na Copa de 1958, coincidência ou não, o Brasil definiu um time titular com dez jogadores brancos e um único negro — o botafoguense Didi, inegavelmente o grande craque do país na época. No banco, nas primeiras partidas, ficaram o mulato Garrincha e o negro Pelé. Quando os dois entraram em campo, a partir do terceiro jogo, o time passou a ganhar todos os jogos e conquistou o título. Uma fábula destinada a ilustrar a obra de Gilberto Freyre, para quem o Brasil, no futuro, deixaria de considerar a mestiçagem uma desvantagem para glorificá-la, orgulhando-se deste traço da identidade nacional. Nas suas crônicas, Nelson fez, por meio do futebol, com que o país se orgulhasse de ser um caldeirão de raças. Nesse ponto, é interessante notar que seu irmão, Mário Filho, uma figura estelar na crônica esportiva, é autor do clássico O Negro no Futebol Brasileiro (1947).
Por que não temos mais um cronista como ele
Uma explicação possível é que o ambiente cultural no Brasil mudou bastante. Na época de Nelson, as circunstâncias eram bem diferentes das que vivemos hoje.
• O Brasil era pequeno, tudo acontecia no Rio de Janeiro. Nos anos 30, a então capital federal contava com pouco mais de 2 milhões de habitantes, e era ali que circulavam todas as discussões sobre a formação de um ideário nacional. Além disso, estava em curso na época um projeto urbanístico que expandiu os subúrbios cariocas, levando sua cultura — as modinhas, as serestas de violão, os cordões carnavalescos, o reisado, as brigas de galo — para o centro, para o universo da elite intelectual, e foi desse universo que Nelson extraiu a atmosfera de suas obras.
• A imprensa escrita tinha uma tremenda influência no meio intelectual. Hoje a força do jornal é relativamente menor. Ganharam prestígio as universidades, que passaram a ser as instituições de produção e intercâmbio de conhecimento. Surgiram também outros meios de comunicação — as revistas, a TV e depois a internet. No que se refere à internet, não deixa de ser curioso que os blogs tenham desenvolvido novos formatos de crônica, baseadas quase sempre num certo intimismo confessional.
• No mundo globalizado, os intelectuais não têm mais a pretensão de resumir o país em ideias básicas. Nunca mais surgiram ensaístas — ou cronistas, ou dramaturgos — com a pretensão de decifrar a alma brasileira simplesmente porque hoje ninguém mais busca isso.
Tudo isso é verdade, mas nenhuma dessas razões oculta a evidência mais simples de todas — a de que gênios são mesmo raros. Por enquanto, embora inúmeros talentos do jornalismo e do teatro tenham surgido, nenhum deles suplantou o artista múltiplo que foi Nelson Rodrigues. Na história do pensamento brasileiro, Nelson já foi pulha, já foi santo. Mas, como ele escreveu certa vez, “o gênio, não sei por quê, é mais difícil do que o santo ou o pulha”.
Uma versão deste texto foi publicada originalmente na revista Bravo! em julho de 2007
http://epimenta.wordpress.com/2012/01/03/nelson-rodrigues-100-anos-nosso-dickens-do-suburbio/
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