Como se fora brincadeira de roda
Um dia sem chuva em Visconde de Mauá no verão é algo praticamente impossível de acontecer.
No início dos anos 80, para chegar àquele povoado localizado na divisa entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro era necessário encarar mais de 30 quilômetros de uma estrada de terra repleta de buracos do tamanho de um automóvel. E um garoto, ainda bem novo, passava todo o mês de janeiro por lá.
Um dia choveu mais que o normal. Pouco antes do almoço, uma correria para a sala. A pequena televisão, cheia de chuvisco e em preto e branco anunciava um plantão jornalístico. Seria mais alguma notícia de desabamento por conta das chuvas?
Elis Regina estava morta. O dia: 19 de janeiro de 1982.
A causa mortis ainda era desconhecida. E isso era o que menos importava. No dia seguinte, uma multidão acompanhou o féretro entre o Teatro Bandeirantes, onde Elis realizou alguns de seus shows mais memoráveis, até o túmulo 2.199, quadra 7, setor 5 do cemitério do Morumbi.
Elis Regina virava História. Era, afinal, a melhor cantora do Brasil em todos os tempos?
Pergunta dificílima para ser respondida por um país que gerou tantas grandes cantoras.
Dificílima e inútil.
Alguém pode até argumentar que Elis Regina não foi a melhor cantora do Brasil. Mas poucos vão discordar que Elis foi a cantora brasileira que mais se preocupou em colocar a Arte acima de tudo.
Desde os tempos em que, de nervosismo, espargia sangue pelo nariz antes de se apresentar no “Clube do Guri”, programa da Rádio Farroupilha, até a sua última apresentação, na turnê “Trem azul”, que aconteceu no dia 11 de dezembro de 1981, no hotel Rio Palace, na Praia de Copacabana.
Em 1974, quando Elis Regina completou dez anos no elenco da Philips, a gravadora queria presenteá-la.
A cantora poderia escolher qualquer carro, viagem ao exterior, um apartamento com vista para o mar… Não. Elis escolheu um presente do qual não abriria mão: um álbum gravado em parceria com Antônio Carlos Jobim.
Não foi fácil convencer o maestro. Dez anos antes, o nome de Elis havia sido cogitado para cantar no álbum “Pobre menina rica”, de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra. O arranjador do disco reprovou a cantora. “Esta gaúcha é muito caipira. Ainda está cheirando a churrasco”, disse.
O arranjador era Tom Jobim.
Mas, dez anos depois, o maestro hesitou em gravar o álbum com Elis Regina não por causa do cheiro da picanha, que certamente não estava mais entranhado no corpo da cantora. Quando o produtor Aloysio de Oliveira comunicou a Tom o desejo da cantora gaúcha, o maestro respondeu: “Mas… Mas… Espera um pouquinho… Um disco com Élis [era assim que Tom a chamava] Regina, a maior cantora do Brasil… Não sei… Não sei… É muita responsabilidade… Ou irresponsabilidade??”
O disco “Elis & Tom” saiu. A gravação de “Águas de março” é o dueto mais importante da história da Música Popular Brasileira. E esse foi o presente pelos dez anos de Elis Regina na gravadora Philips.
Pouco antes, em agosto de 1973, já no auge da fama, Elis trocou os grandes teatros e casas de espetáculos e colocou a sua banda dentro de um ônibus para cantar no Circuito Universitário do interior de São Paulo, Santa Catarina e Paraná.
Quarenta e cinco dias e 39 shows, todos eles em cidades diferentes, e organizados pelos centros acadêmicos das Universidades.
Em seu brilhante livro de memórias “Solo”, Cesar Camargo Mariano descreve a rotina: “Quando chegávamos a uma cidade, nos sentíamos como um circo mambembe, com muito orgulho. Terminado cada espetáculo, recebíamos o público, íamos jantar, depois desmontávamos tudo e seguíamos para a próxima cidade. Quando dava, dormíamos em algum hotel da cidade; caso contrário, seguíamos viagem, logo após a desmontagem, e dormíamos no ônibus.”
O espetáculo “Falso brilhante”, que estreou em dezembro de 1975 no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, representou o ápice da carreira de Elis Regina.
Foram 14 meses ininterruptos de temporada, com mais de 400 apresentações. Um sucesso merecido, tendo em vista a alta dose de risco injetada no projeto.
Elis queria fazer algo absolutamente diferente de tudo o que já havia realizado. Um roteiro que mostrasse ao público o começo, o meio e o fim da carreira de um artista. Todos os músicos da banda participariam, como verdadeiros atores em cena. Para investir no espetáculo, a cantora teve que liquidar todo o seu patrimônio. A fim de apresentar o melhor show possível, Elis e toda a sua banda enfrentaram cursos de balé, dança, maquiagem teatral, cenografia e de expressão corporal.
A Arte acima de tudo.
E mais acima ainda quando da montagem da turnê de “Saudade do Brasil”, em janeiro de 1980. A ideia do diretor Ademar Guerra era montar uma espécie de “A chorus line” tupiniquim, com onze bailarinos desconhecidos em cima do palco. Até anúncio no jornal foi publicado. Mais de 700 pessoas compareceram aos testes. E, assim, o inovador espetáculo “Saudade do Brasil” (registrado em álbum duplo gravado em estúdio) tomou forma. Além do corpo de balé, Cesar Camargo Mariano rodou São Paulo atrás de 13 músicos jovens para compor a banda.
Como não poderia deixar de ser, “Saudade do Brasil” foi mais um sucesso avassalador.
Um sucesso que também pode ser certificado nos ótimos álbuns que a cantora lançou; na quantidade de artistas novatos (como Belchior, João Bosco, Milton Nascimento, Ivan Lins e Gonzaguinha) que foram alçados ao estrelato através da voz de Elis; nos excelentes músicos que a cantora sempre fez questão de ter ao seu lado em cada um de seus trabalhos.
Existiram várias Elis.
A Elis iniciante, que arrebatou o Brasil com os seus braços rodando feito hélices durante “Arrastão”, no I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, em 1965.
A Elis que amou tão intensamente que casou com o seu “inimigo mortal” Ronaldo Bôscoli.
A Elis que deu chance a novos talentos, colocando um quase desconhecido Tim Maia para dividir os vocais de “These are the songs” com ela.
A Elis que gravou 24 álbuns (magistrais em sua maioria) em apenas 19 anos de carreira. A Elis que virava fera quando o assunto era amor; fera a ponto de jogar todos os LPs de Frank Sinatra que Ronaldo Bôscoli tanto venerava, tais quais “discos voadores”, ao mar de São Conrado, durante uma crise de ciúme.
A Elis que protestava contra a ditadura de forma inteligente; seja no arranjo “samba-fúnebre” de “É com esse que eu vou”, seja no hino da anistia “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc. A Elis que disse que o Brasil, durante o regime militar, era governado por “gorilas”.
Durante os testes para a escolha do corpo de balé para o espetáculo “Saudade do Brasil”, aconteceu um fato comovente, descrito no livro de Cesar Camargo Mariano.
Um dos finalistas foi reprovado na última etapa, depois de 40 dias de testes. A notícia da reprovação tinha que ser dada. O bailarino se ajoelhou e abaixou a cabeça. Chorou por mais de cinco minutos. Após enxugar cada gota de lágrima, disse: “Desculpem a minha reação. Este desabafo tem muito da tristeza de não continuar com vocês neste trabalho. Mas tem muito, mas muito mesmo, de agradecimento. Passei 40 dias convivendo com arte e aprendendo a ser gente. O que vocês me proporcionaram nenhuma escola do mundo vai me dar, nem em 40 anos.”
Pensando bem, Elis Regina proporcionou isso a todos nós, que tivemos a chance de ter contato com a sua obra.
Como se fora brincadeira de roda.
“Sempre disse para Elis, e vou morrer dizendo, que ela era a pessoa mais normal que já conheci. Anormal sou eu. Quem soube entender a genialidade dela passou por cima de tudo.”
(Cesar Camargo Mariano, em depoimento a Regina Echeverria, para o livro “Furacão Elis”)
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