Música e celebração
Na primeira vez que vi A música segundo Tom Jobim, o documentário de Dora Jobim (neta do homem) e Nelson Pereira dos Santos, embarquei de tal maneira no fluxo encantatório da música que não consegui prestar atenção à estrutura narrativa do filme, sua organização interna, suas estratégias de edição.
Foi preciso ver uma segunda vez, em DVD, parando de quando em quando para fazer anotações. Tudo isso para chegar a uma conclusão que já estava contida no letreiro final do filme, uma frase do próprio Tom Jobim: “A linguagem musical basta”. Ao que parece, foi esse o princípio que norteou os diretores desse documentário sem locução, sem entrevistas, sem textos explicativos.
Mas há inteligência e sensibilidade nessa colagem aparentemente “natural” de sons e imagens. Às vezes organizam-se em sequência várias interpretações de uma mesma canção, por cantores e músicos de diferentes países. Um exemplo: Tom cantando “Desafinado” ao violão, no Steve Allen Show, em 1964, é seguido por Ella Fitzgerald interpretando a mesma música em 1963, e por fim por Sammy Davis Jr., que leva ao extremo o scating vocal esboçado por Ella, reduzindo o canto a sílabas onomatopaicas.
Momentos epifânicos
Ou então “Garota de Ipanema”, o tema mais repetido no documentário, tocado e cantado em diversos idiomas até desembocar no antológico dueto entre Tom e Frank Sinatra em 1967, um dos momentos epifânicos do filme. (Há outros: Elis e Tom gravando “Águas de março”; Chico Buarque e Tom Jobim ouvindo as vaias a “Sabiá”, cantada por Cynara e Cybele no Festival Internacional da Canção de 1968; e sobretudo a sequência final, de que se falará mais abaixo.)
Mas essa ideia das várias versões de uma música não se converte jamais numa camisa de força, pois outros métodos de associação regem tanto a sucessão dos números musicais como a justaposição entre som e imagem enquanto dura cada um desses números (geralmente apresentados na íntegra).
Um exemplo: quando Agostinho dos Santos canta “A felicidade”, cuja letra fala do carnaval em contraste com as agruras do cotidiano, vemos imagens de bondes e trens superlotados no Rio dos anos 50. Outro: ao som da “Sinfonia de Brasília”, imagens fixas mostram Tom e Vinicius, Tom e Oscar Niemeyer, a capital em construção, a orquestra ensaiando, um rascunho da partitura etc.
Se nos casos citados a associação da música com seu referencial externo é direta, quase óbvia, há conexões mais sutis, como a bela passagem em que Nara Leão canta “Dindi” (com Menescal ao violão) entre discretas inserções de fotos de Tom Jobim andando de bote, pescando, caminhando na praia com o violão. De algum modo, isso tudo se harmoniza à perfeição.
Há, a meu ver, um elo um tanto frouxo nessa corrente. Já perto do final, a enfiada de canções (quase um pot-pourri) interpretadas pela Banda Nova, com Tom ao piano e suas backing vocals, em arranjos mais standard, soa redundante.
Mas isso é compensado amplamente por um último rasgo de gênio dos realizadores: a sequência do desfile da Mangueira em que Tom Jobim foi homenageado. Em vez do som festivo da escola de samba, o que ouvimos, salvo engano, é a grandiosa e melancólica “Saudade do Brasil”, uma composição sinfônica que atesta a dívida do compositor com seu mestre soberano Villa-Lobos.
O grande ausente
Em meio à plêiade de cantores e músicos excepcionais (de Erroll Garner a Milton Nascimento, de Dizzy Gillespie a Henri Salvador, de Sinatra a Judy Garland), o espectador esperto sentirá falta de um, talvez aquele que mais e melhor cantou Jobim: João Gilberto.
A explicação para essa ausência gritante, segundo consta, é que está sendo realizado um documentário sobre o cantor, e os produtores têm exclusividade sobre as imagens de suas performances. Mesmo assim, custava ceder umazinha para o filme de Dora Jobim e Nelson Pereira?
De todo modo, quase como numa brincadeira de “onde está Wally”, é possível ver João Gilberto na tela, logo no início do longa, acompanhando Elizeth Cardoso discretamente ao violão, numa cena do filme Pista de grama (1958), de Haroldo Costa. Só para registrar, aqui vai um breve fragmento, um pouco fora de sincronia:
Cabe uma última informação. A música segundo Tom Jobim é apenas metade de um díptico dedicado por Nelson Pereira dos Santos ao compositor. A outra metade, que trata da vida de Jobim, também está pronta, mas – absurdamente – ainda não encontrou distribuidor interessado.
E assim, como quem não quer nada, Nelson Pereira, que já documentou Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, além de ter adaptado Graciliano Ramos, Jorge Amado, Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa, vai construindo seu gigantesco painel da cultura brasileira do século XX.
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