A Muito deste domingo discute o fortalecimento do Carnaval sem cordas em Salvador. Leia a íntegra da entrevista com o compositor Walter Queiroz, um dos fundadores do Bloco do Jacu (1964-1984), que saía às ruas com o lema “Não tem corda porque tem coração”.
Como o senhor vê esse movimento de grandes estrelas saírem sem cordas no Carnaval?
Se isso não for uma atuação só para angariar simpatia e tudo continuar como dantes no reino de Abrantes… É simplesmente lamentável. Não creio numa mudança significativa no Carnaval da Bahia sem algumas atitudes básicas: 1. o povo de Salvador, organizadamente, através de suas entidades representativas, protestar decisivamente quanto à agressão que esse modelo de Carnaval comete contra a cidade. 2. a atuação do Ministério Público do Trabalho acabando com absurdos como a instituição dos cordeiros, que ferem o direito administrativo, quando são guindados à condição de parapoliciais. 3. consciência do poder público de que ele não pode continuar concordando com a usurpação do espaço público pelos blocos de trio, que transformaram o Carnaval de Salvador num balcão de negócios para a auferição de lucros e outros dividendos, com o lamentável apoio de artistas outrora compromissados com a causa popular. Vai ser caco para todo lado, mas essa é minha obrigação moral, eu não posso ficar calado.
Para o senhor, qual é o marco que dá início a esse modelo de “usurpação”?
Esse modelo perverso começa quando o trio passou a ter voz. O olho-gordo capitalista, das multinacionais, começou a investir no Carnaval e o folião foi virando, paulatinamente, massa de manobra. É preciso lembrar com muita veemência que esse modelo de Carnaval não é só uma discussão de boa ou má folia. Ele contribui e fortalece o rancor social num momento em que Salvador vive graves dificuldades, só não vê quem não quer. E sobretudo comete o maior dos atentados, vai liquidando todos os valores eternos da folia, como a música de Carnaval, a cordialidade, a fantasia, a diversidade, a pluralidade, tudo que fez do Carnaval de Salvador o maior Carnaval de participação do mundo. Hoje isso é mentira. O Carnaval de Salvador é um carnaval falido, descendo a ladeira. Um Carnaval feito para turistas entediados. Há mais de vinte anos venho sendo uma das vozes discordantes desse modelo e sempre me provocam dizendo que faço o diagnóstico, mas não aponto soluções. E tenho isso com muita clareza: sou absolutamente favorável a que sejam devolvidos os circuitos Dodô e Osmar à espontaneidade popular, para que o Carnaval da Bahia refloresça, renasça das suas próprias entranhas criativas e você possa ver de novo dezenas de manifestações convivendo juntas sem uma ameaçar a outra, manifestações essas que foram liquidadas pelo som predador do trio elétrico, que um dia já foi um revolucionário agente do Carnaval e hoje é um reacionário ator da folia.
Houve um momento em que as cordas não existiram no Carnaval de Salvador?
Nos primórdios do Carnaval de rua sempre houve corda, eram os chamados cordões. Mas eram cordões aglutinadores para o bloco não se dispersar. Não era para segregar ninguém. É diferente da corda que sustenta o privilégio para fazer grana. Essa corda é imoral. Porque nesse afã ela divide o Carnaval em dois tipos: o folião de elite e o folião de segunda classe, que se chama bandeirosamente de pipoca. O Jacu é contemporâneo d’Os Internacionais, do Barão, d’Os Corujas e todos saíam com corda. Até os blocos de índio saíam com corda. É uma cultura muito difícil de desentranhar nessa cidade. A gente não sabe por que uma cidade tão festeira, tão amigável, tão amorosa, adora essa coisa da segregação. Tinha um bloco chamado Mordomia onde as pessoas exibiam seus uísques dentro da corda. Não quero ser a palmatória do mundo, quero deixar bem claro isso, mas não estou falando à toa. Falo em nome de milhares de pessoas dessa cidade que não têm voz, que são obrigadas a sair de suas casas, são obrigadas a ficar exiladas porque um grupo de espertalhões resolveu fazer um modelo de Carnaval que interessa a quem? Esses números falaciosos do Carnaval nunca foram auditados. Ninguém sabe quanto é que a Bahia ganha realmente.
Por que o Jacu parou de desfilar?
Ficamos vinte anos na avenida e não satisfeitos – nós somos guerreiros do Carnaval, foliões verdadeiros – fizemos mais de 18 anos de “Chegando Bonito – Associação Etílica, Sentimental e Carnavalesca”. O nome é lindo. Conseguimos trazer grandes personalidades do Brasil para a avenida. É brincadeira você botar um João Ubaldo Ribeiro na avenida na frente do Chiclete, tendo que parar Bell (Marques) no grito, e a gente conseguir? Então são 45 anos fazendo Carnaval. Eu tenho direito de falar e bradar, tenho. Adoro Carnaval. O último argumento que resta a eles, que é um argumento patético, é me chamar de velho. Sou mais jovem que todos eles juntos. Aí dizem que o Jacu deu pra trás por falta de visão empresarial. Não, o Jacu não deu pra trás. O Jacu está vivo no coração das pessoas que amam o Carnaval da Bahia. E era uma equação muito simples. Não tinha nada de melhor nem pior, apenas não separava. Todo mundo podia brincar. Tinha Erasmo Carlos, tinha Pelé, tinha Fafá de Belém. Estou citando os famosos, mas não tinha nenhum apreço maior por eles serem famosos. O que o Jacu mais prezava era justamente o pé no chão, todo mundo igual. O Jacu acabou porque os espaços foram diminuindo e o barulho do predador venceu o barulho acústico. Nossa banda não era mais escutada. O Campo Grande chegou a ser um caldeirão sonoro que se você botasse um sueco desavisado, ele ficava doidinho. A gente adorava por isso, porque Carnaval é isso mesmo. A beleza do Carnaval é porque há um contrato coletivo de consciência alterada. Todo mundo concorda em ficar doido. Aí aquilo fica lindo. Essa consciência é sobretudo fortalecida com a alegria enorme do fraterno e do coletivo. “Quero me perder de mão em mão / Quero ser ninguém na multidão”. Essa sensação de você se perder é maravilhosa, é uma coisa linda. Se apaixonar no Carnaval? Não tem coisa igual! Quando ouvi “já beijei um, já beijei dois, já beijei três”, falei: tomara que dê sapinho na sua boca para você deixar de ser idiota. Seu espaço feminino invadido por qualquer garoto bêbado? Isso ser celebrado como um valor? Isso é uma vergonha, pô. Se apaixona, meu amor, vai viver um amor de Carnaval para você ver que coisa linda.
É curioso que alguns blocos afro também compartilhem dessa lógica das cordas.
Até os blocos afro usam corda, se submetem a comer as migalhas da festa. Não têm a coragem de parar os tambores na avenida e exigir seus direitos. Queria ver se o Ilê parasse, se todos os outros parassem, se essa situação não ia mudar… Mas eles aceitam.
http://revistamuito.atarde.com.br/
Como o senhor vê esse movimento de grandes estrelas saírem sem cordas no Carnaval?
Se isso não for uma atuação só para angariar simpatia e tudo continuar como dantes no reino de Abrantes… É simplesmente lamentável. Não creio numa mudança significativa no Carnaval da Bahia sem algumas atitudes básicas: 1. o povo de Salvador, organizadamente, através de suas entidades representativas, protestar decisivamente quanto à agressão que esse modelo de Carnaval comete contra a cidade. 2. a atuação do Ministério Público do Trabalho acabando com absurdos como a instituição dos cordeiros, que ferem o direito administrativo, quando são guindados à condição de parapoliciais. 3. consciência do poder público de que ele não pode continuar concordando com a usurpação do espaço público pelos blocos de trio, que transformaram o Carnaval de Salvador num balcão de negócios para a auferição de lucros e outros dividendos, com o lamentável apoio de artistas outrora compromissados com a causa popular. Vai ser caco para todo lado, mas essa é minha obrigação moral, eu não posso ficar calado.
Para o senhor, qual é o marco que dá início a esse modelo de “usurpação”?
Esse modelo perverso começa quando o trio passou a ter voz. O olho-gordo capitalista, das multinacionais, começou a investir no Carnaval e o folião foi virando, paulatinamente, massa de manobra. É preciso lembrar com muita veemência que esse modelo de Carnaval não é só uma discussão de boa ou má folia. Ele contribui e fortalece o rancor social num momento em que Salvador vive graves dificuldades, só não vê quem não quer. E sobretudo comete o maior dos atentados, vai liquidando todos os valores eternos da folia, como a música de Carnaval, a cordialidade, a fantasia, a diversidade, a pluralidade, tudo que fez do Carnaval de Salvador o maior Carnaval de participação do mundo. Hoje isso é mentira. O Carnaval de Salvador é um carnaval falido, descendo a ladeira. Um Carnaval feito para turistas entediados. Há mais de vinte anos venho sendo uma das vozes discordantes desse modelo e sempre me provocam dizendo que faço o diagnóstico, mas não aponto soluções. E tenho isso com muita clareza: sou absolutamente favorável a que sejam devolvidos os circuitos Dodô e Osmar à espontaneidade popular, para que o Carnaval da Bahia refloresça, renasça das suas próprias entranhas criativas e você possa ver de novo dezenas de manifestações convivendo juntas sem uma ameaçar a outra, manifestações essas que foram liquidadas pelo som predador do trio elétrico, que um dia já foi um revolucionário agente do Carnaval e hoje é um reacionário ator da folia.
Houve um momento em que as cordas não existiram no Carnaval de Salvador?
Nos primórdios do Carnaval de rua sempre houve corda, eram os chamados cordões. Mas eram cordões aglutinadores para o bloco não se dispersar. Não era para segregar ninguém. É diferente da corda que sustenta o privilégio para fazer grana. Essa corda é imoral. Porque nesse afã ela divide o Carnaval em dois tipos: o folião de elite e o folião de segunda classe, que se chama bandeirosamente de pipoca. O Jacu é contemporâneo d’Os Internacionais, do Barão, d’Os Corujas e todos saíam com corda. Até os blocos de índio saíam com corda. É uma cultura muito difícil de desentranhar nessa cidade. A gente não sabe por que uma cidade tão festeira, tão amigável, tão amorosa, adora essa coisa da segregação. Tinha um bloco chamado Mordomia onde as pessoas exibiam seus uísques dentro da corda. Não quero ser a palmatória do mundo, quero deixar bem claro isso, mas não estou falando à toa. Falo em nome de milhares de pessoas dessa cidade que não têm voz, que são obrigadas a sair de suas casas, são obrigadas a ficar exiladas porque um grupo de espertalhões resolveu fazer um modelo de Carnaval que interessa a quem? Esses números falaciosos do Carnaval nunca foram auditados. Ninguém sabe quanto é que a Bahia ganha realmente.
Por que o Jacu parou de desfilar?
Ficamos vinte anos na avenida e não satisfeitos – nós somos guerreiros do Carnaval, foliões verdadeiros – fizemos mais de 18 anos de “Chegando Bonito – Associação Etílica, Sentimental e Carnavalesca”. O nome é lindo. Conseguimos trazer grandes personalidades do Brasil para a avenida. É brincadeira você botar um João Ubaldo Ribeiro na avenida na frente do Chiclete, tendo que parar Bell (Marques) no grito, e a gente conseguir? Então são 45 anos fazendo Carnaval. Eu tenho direito de falar e bradar, tenho. Adoro Carnaval. O último argumento que resta a eles, que é um argumento patético, é me chamar de velho. Sou mais jovem que todos eles juntos. Aí dizem que o Jacu deu pra trás por falta de visão empresarial. Não, o Jacu não deu pra trás. O Jacu está vivo no coração das pessoas que amam o Carnaval da Bahia. E era uma equação muito simples. Não tinha nada de melhor nem pior, apenas não separava. Todo mundo podia brincar. Tinha Erasmo Carlos, tinha Pelé, tinha Fafá de Belém. Estou citando os famosos, mas não tinha nenhum apreço maior por eles serem famosos. O que o Jacu mais prezava era justamente o pé no chão, todo mundo igual. O Jacu acabou porque os espaços foram diminuindo e o barulho do predador venceu o barulho acústico. Nossa banda não era mais escutada. O Campo Grande chegou a ser um caldeirão sonoro que se você botasse um sueco desavisado, ele ficava doidinho. A gente adorava por isso, porque Carnaval é isso mesmo. A beleza do Carnaval é porque há um contrato coletivo de consciência alterada. Todo mundo concorda em ficar doido. Aí aquilo fica lindo. Essa consciência é sobretudo fortalecida com a alegria enorme do fraterno e do coletivo. “Quero me perder de mão em mão / Quero ser ninguém na multidão”. Essa sensação de você se perder é maravilhosa, é uma coisa linda. Se apaixonar no Carnaval? Não tem coisa igual! Quando ouvi “já beijei um, já beijei dois, já beijei três”, falei: tomara que dê sapinho na sua boca para você deixar de ser idiota. Seu espaço feminino invadido por qualquer garoto bêbado? Isso ser celebrado como um valor? Isso é uma vergonha, pô. Se apaixona, meu amor, vai viver um amor de Carnaval para você ver que coisa linda.
É curioso que alguns blocos afro também compartilhem dessa lógica das cordas.
Até os blocos afro usam corda, se submetem a comer as migalhas da festa. Não têm a coragem de parar os tambores na avenida e exigir seus direitos. Queria ver se o Ilê parasse, se todos os outros parassem, se essa situação não ia mudar… Mas eles aceitam.
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