publicado em colunistas
Faço das crônicas que redijo um meu Muro das Lamentações, mas está difícil lamentar. Ao lerem-nas, os amigos declaram certa perplexidade, reclamam que ando muito amargo, assim, de secar roseiras. Alguns reclamam do humor negro, da ironia excedente, do palavrório chulo e de suposto mau gosto.
Outros suspeitam estaria eu padecendo de algum tipo de transtorno do humor, quem sabe, depressão, síndrome do pânico, histeria, frescura, pití... Então me indicam médicos, psicólogos, benzedeiras, uísques, chás, hinos, livros de autoajuda, templos, gurus, casas da luz vermelha e até masturbação. Cada qual tem o Muro das Lamentações que merece.
Muros. Quero então falar dos muros. Causou a maior excitação no seio daquela família o fato de Benzinho (codinome do bancário Alcebíades) ter traído a esposa. “Mas logo o Benzinho?!” era o que mais se ouvia nos comentários a respeito da flagrante escapulida. “Eu bem que desconfiava dele”, alguém alfinetou. “Acreditem, estes homens sonsos são os piores”, diagnosticaram as mulheres já calejadas no assunto.
Um dia me perguntaram se eu já tinha pulado o muro e eu disse “sim, sim, várias vezes”. Mal supunha que a expressão “pular o muro” não se referia às minhas peraltices da infância, quando invadia o quintal da casa da Dona Elza para furtar mangas ou resgatar a bola de cobertão desastrosamente chutada às alturas. Carecia fugir em tempo do cão doberman e de Dona Elza.
Em cidades interioranas, vocês sabem, as estórias maledicentes correm a vários giga-baites. Antes do advento da televisão e da internet, tecnologia que concebeu os amiguinhos virtuais e engendrou orgasmos via escaipe, a velocidade das fofocas era bem maior. Era uma época em que as pessoas arrastavam bancos e cadeiras para as calçadas a fim de se sentarem em roda, apreciarem a movimentação dos transeuntes (povo em transe?), das bicicletas e dos pouquíssimos carros, além de comentarem sobre a vida alheia, episódios que certamente não lhe diziam respeito, mas garantia conversas acaloradas até altas horas.
Será que poderíamos deduzir: “bons tempos aqueles, quando vizinhos se visitavam e a criançada brincava no meio da rua”? Na boa, caro leitor: quando foi a última vez que você foi tomar café na casa do seu vizinho? Nem precisa responder. Eu já sei. Você sequer imagina o nome dele, não é mesmo? Sabe que é um advogado, que a esposa dele tem lúpus, e que o filho mais velho é homossexual (aliás, “bicha”, como você prefere dizer, para acentuar o preconceito e a ignorância).
Em Pau Grande, por exemplo, (Não debochem! Pau Grande existe sim, não fica localizado entreascoxas, mas, no Estado do Rio de Janeiro), dizem as más línguas que, se uma mulher está “dando mais do que chuchu no muro”, é porque está copulando além da média (quem concebe este tipo de estatística?), certamente com vários parceiros diferentes, não necessariamente ao mesmo tempo.
Quando uma pessoa está indecisa ou prefere não manifestar seu ponto de vista, diz-se que ele está em cima do muro. O relativismo dos fatos mais uma vez nos surpreende, pois tudo é uma questão de ótica. O que será pior: ficar em cima do muro (indecisão), na frente dele (paredão de fuzilamento) ou atrás (manicômio judicial)?
No início dos anos 80, o filme “The Wall” (O Muro), ópera-roque dirigida por Alan Parker e baseada no disco homônimo da banda inglesa Pink Floyd, fez estrondoso sucesso. Na trama, um muro virtual construído pelo protagonista Pink retratava, mais do que a dureza do tijolo e do concreto (ingredientes básicos para se edificar um muro), os percalços da vida, a educação infantil repressora e a selvageria da guerra. As cenas de crianças sem rosto marchando robotizadas até caírem dentro de um enorme moedor de carne são instigantes.
Na história há muros vergonhosos de todos os naipes. Como aqueles que mantinham os judeus aprisionados em guetos durante o delírio hitleriano da Segunda Guerra. Ou o Muro de Berlim que partia ao meio a Alemanha, transformado em entulho ao final dos anos 80. E agora mesmo, enquanto escrevo este texto, placas monumentais de concreto são levantadas por Israel para repelir os palestinos na Cisjordânia. De que vale tanta história se não aprendemos com ela?
E há também os muros com grife, muros milenares famosos, como a Muralha da China, edificada para coibir o acesso dos invasores. Prefiro muito mais os muros ordinários, como aquele da casa da Dona Elza, a vizinha nervosa que rasgava com canivete nossas desgastadas bolas de cobertão, e no qual, certa feita, alguém pichou “Valéria é puta”.
Da janela do quarto, escondido como sói ocorre aos covardes, eu assistia impassível a Valéria, em prantos, tentando retirar com escovão e detergente os infames dizeres pichados por um desafeto. Ela não conseguiu apagar a pichação e eu jamais apaguei da memória aquela cena tão doída. Valéria não era puta, mas uma adolescente de 13 anos aprendendo a sofrer de (des)amor com os homens.
Nota-se que muros são obstáculos sólidos com múltiplas serventias: cercar, proteger, organizar, esconder, aprisionar, difamar pessoas, derrubar governos, grafitar obras de arte e até escrever poesia. Sobre os mesmos os homens instalam pregos, cacos de garrafa, concertinas e cabos elétricos para ferir invasores, proteger patrimônios. E qual muro nos protegerá de calhordas como aquele que fez Valéria chorar de vergonha?
Recentemente, a prisão de um suposto bandido do colarinho branco dentro de um condomínio de luxo da cidade agitou a sociedade. Não entendi tanta euforia. Por ventura alguém supunha fossem os abonados que residem intra-muros baluartes da honestidade e da decência?
Sabe-se que estes nichos de luxo jamais ficam imunes aos abusos e às transgressões, porquanto habitados por gente. Da mesma forma, ali dentro violam-se as leis de trânsito, executam-se pequenos delitos, maridos surram suas mulheres com certa privacidade e os desordeiros deseducados importunam a vizinhança com os altíssimos decibéis de música ruim.
Quando eu me mudei para um destes condomínios (sim, eu também imaginei que pudesse fugir da violência urbana refugiando-me numa redoma), uma das primeiras e mais estarrecedoras cenas que presenciei foi um garoto de 12 anos dirigindo um automóvel. Com cuidado, persegui o veículo até que ele fosse abandonado numa esquina e o moleque batesse em disparada para casa.
Na portentosa mansão rolava uma festa. Visivelmente inebriada, a mãe do aprendiz da delinquência pediu a mim mil desculpas, implorou que o fato não fosse denunciado às esferas legais e garantiu que aquela era “a primeira vez na vida” que o seu filho dirigia um automóvel. “Crianças fazem traquinagens, o senhor sabe... Um momento de vacilo da gente e pronto: eles aprontam...”.
Então percebi que os muros não eram tão relevantes quanto eu supunha, ao ponto de recear pulá-los. Por onde andará Valéria?
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