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terça-feira, 10 de abril de 2012

Quando Uma Biscate Sofre…Maysa

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E a vida de biscate é só de risos e prazer e se dar bem com seu corpo? E nunca o vazio, uma lágrima, um querer que não cabe em si? Uma biscate sofre. E quando se dói, é coisa bonita de se ver. Ou de ouvir. Uma biscate se entrega, se mostra, se rasga. Uma biscate pulsa. Canta. A biscate de hoje é puro encanto em uma voz que ainda lateja em mim. Em dores de um amor que nunca é. Polêmica. Bonita. Bêbada. Solitária. Desejada. Talentosa. Desnuda. Emocional. Atrevida. Dionisíaca. Avançada. Forte. Agressiva. Indescritível. Incontornável. Insaciável. Uma biscate com olhos de abismo. Maysa cantou o que é, na minha opinião, a maior música-tema da biscatagem, Resposta:


Ninguém pode calar dentro em mim
Esta chama que não vai passar
É mais forte que eu
E não quero dela me afastar
Eu não posso explicar quando foi
E nem quando ela veio
E só digo o que penso, só faço o que gosto
E aquilo que creio
Se alguém não quiser entender
E falar, pois que fale
Eu não vou me importar com a maldade
De quem nada sabe
E se alguém interessa saber
Sou bem feliz assim
Muito mais do que quem já falou
Ou vai falar de mim
“Tenho medo apenas do que não depende de mim: amar e não ser amada, por exemplo.”
Eu cresci sabendo Maysa. Lembro do brilho no olho do meu pai quando ele falava dela. Ele era um apaixonado. Ele é. Não sozinho, claro. Manuel Bandeira escreveu: “Os olhos de Maysa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos”. São muitos os fãs de Maysa, sempre foram. Em 1958, por exemplo, não houve um só dia do ano em que pelo menos um órgão de imprensa do Rio de Janeiro ou São Paulo não trouxessem uma notícia sobre ela e, quando a televisão quase nem era ainda, ela comandava 2 programas semanais: um no Rio, outro em São Paulo (e não sou eu que digo, mas Lira Neto na espetacular biografia “Maysa – só numa multidão de amores”).
“Eu era uma assanhadinha dessas que não tem explicação”
Mas amor e devoção não era tudo que Maysa provocava. Porque ela não era bem comportada. Na verdade, sequer comportada, quanto mais bem. Menina, organizava e apostava em corridas de porcos, segundo ela, os únicos que não precisavam ser bem-comportados no internato religioso que frequentava – e do qual logo pediu aos pais pra ser retirada. Jogava futebol na rua com os meninos, neles batia e deles apanhava. Muito jovem, insistia pra aprender violão quando o instrumento ainda era relacionado com marginalidade, vagabundagem. Fumava e usava calças, sem pudor, desde a adolescência, em uma época que até mulheres adultas temiam o severo julgamento social sobre este assunto. Nas férias escolares viajava pra casa dos tios em Vitória. Pelo seu comportamento considerado ousado- tocar violão nas festas, tomar banho de mar sozinha e namorar todos e qualquer um que lhe interessasse – era considerada “má companhia” e sua prima era proibida de sair com ela. Fora de todos os tipos de padrão, com 14 anos media 1,60 e pesava 66 quilos. Era considerada gorda – ou “cheinha”, como diziam os mais delicados – mas isso não a impedia de conquistar quem lhe interessava. Casou-se com um homem acintosamente mais velho e, quando quis, desquitou-se (sim, não era divórcio e sim desquite nessa época). Divorciou-se do cara “bom partido” pra dedicar-se ao que gostava de fazer: cantar. E ganhar dinheiro com isso. Rompeu com os padrões e foi mal vista, mal interpretada, mal falada em uma rica sociedade que só acolhe transgressões fora das vistas do público. Trepava. Muito e com quem lhe apetecia. Colecionava frases ferinas. No meio do show de Eliseth Cardoso, sua amiga e namorada de um dos homens com quem Maysa se relacionou também (e, dizem, concomitantemente), Maysa levanta e diz: “meu maior desejo era ser homem, negro, pianista e bêbado. Como vocês sabem, não consegui ser homem nem negro nem pianista. Agora pretendo ser a Eliseth Cardoso”.
“Não gosto de nada pela metade, nada que é pouco me satisfaz.”
Esse comportamento próximo ao seu desejo, a honestidade de reconhecer-se frágil, aberta, perdida, rendeu comentários desfavoráveis e manchetes escandalosas. Investia intuitivamente contra os preconceitos: tomava banho nua em cachoeiras, brigava na rua com os homens com que se relacionava (as disputas com Bôscoli são famosas), bebia. Era depreciada pelos cabelos despenteados. Forte, ignorava displicentemente as críticas e continuava linda com seus cabelos contestadores já que na época as mulheres gastavam muito com perucas e laquês que limitavam suas atuações. Maysa era absolutamente contra as amarras. Maysa arriscava-se, entregava-se, intensamente fazia suas escolhas para a seguir repudiá-las.
“Nasci com essa marca. De não ser convencional. De quebrar as regras. De não seguir as leis”
Eu cresci sabendo Maysa. Sabendo que era possível ser forte e admirável mesmo quando se é incompleta. Cresci sabendo Maysa, sabendo sua falta. Sabendo seus misteriosos e doloridos olhos. Sabendo que ela amara demais e que morrera na pressa de se alcançar. Sabendo sua melancolia, seu timbre particular, sua vida peculiar. Cresci hipnotizada pelo risco. Pela velocidade que quase nos deixa na esquina de nossa própria vida. Cresci sabendo Maysa: sabendo que somos responsáveis pelas escolhas e que elas nos determinam tanto quanto nós a elas. Sabendo a coragem. A ousadia. Cresci sabendo que se podia deixar os cabelos despenteados e viver sem prestar contas aos padrões alheios. Cresci sabendo que dizer: “é porque meu amor por você é enorme demais” não impede de seguir adiante. Cresci sabendo que é preciso fazer o que se gosta e que mesmo isso não é o suficiente. Cresci sabendo Maysa: sua beleza, sua voz, suas músicas, mas, principalmente, sua liberdade. E sua dor. Porque não é fácil ser.
Eu cresci sabendo Maysa e, embora desconhecesse o termo, cresci sabendo-a biscate. Biscate! Dizia o jornal ao divulgar sua intensa vida amorosa. Biscate! Sussurravam quando deixou o filho aos cuidados do ex-marido. Biscate! Alardeavam noticiando com ênfase as bebedeiras, situações extremas e problemas pessoais. Biscate! Debochando do cabelo. Biscate, biscate, biscate por amar quem queria, por ficar sozinha, por beber muito em público, por dirigir sua própria carreira. Brilhantemente Biscate, digo eu, lendo sua auto-entrevista na Revista Manchete(1961):
“Mas você não bebe somente antes de entrar em cena, não é? Por que você bebe de modo geral?”
“Primeiro porque quero. Depois porque trabalho para pagar o que eu bebo. Finalmente, porque tenho senso de autocrítica. Muitas vezes reconheço-me insuportável e eu só suporto os insuportáveis bebendo.”
Uma Biscate sabe onde guarda sua dor…

http://biscatesocialclub.wordpress.com/2012/01/19/quando-uma-biscate-sofre-maysa/

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