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quarta-feira, 2 de maio de 2012

“Vivemos num território de boçais”

 

postado por Tatiana Mendonça @ 10:06 AM
2 de maio de 2012
Ronaldo Jacobina
Foto: Fernando Vivas | Ag. A TARDE


Na faculdade de medicina, ele era chamado de Josanildo Dias de Lacerda. Nascido em Monte Horebe, na Paraíba, há 59 anos, o paraibano mais baiano de que se tem notícia é conhecido pela alcunha de Nildão. Jornalista, publicitário, escritor, designer, cartunista, animador, poeta e bon-vivant, já escreveu 15 livros. Para quem trocou a anatomia pelas letras, não tem do que se queixar. Longe dele. Até hoje comemora a mudança de rumo. Tanto que, mesmo tendo conquistado prêmios importantes, como o do Festival de Cannes, o Oscar da publicidade, prefere ficar na varanda da charmosa cobertura onde vive, no Rio Vermelho. É de lá, de onde mira o skyline da cidade, que se inspira para as deliciosas criações. Não à toa, a cidade que adotou há 45 anos foi o principal suporte para a sua arte. Seja no traço, seja na palavra. Ao contrário da maioria dos humoristas, escolheu o caminho da delicadeza para fazer os outros rirem.
Em Me segura que eu vou dar um traço, você diz que este é o primeiro livro baiano sem prefácio de Jorge Amado. Parece que ele não gostou.
Não, ele não gostou. Às vezes eu tenho medo de as pessoas não entenderem a piada. Outra dia, vinha descendo a ladeira aqui de casa, no dia das eleições, e vinha um homem com cara de mau puxando dois cavalos, sem sela, pelo cabresto. Eu não me contive e disse: vai botar para arrotar? Ele disse: “Não, vou não”. Se não entendesse, poderia me dar uma porrada, mas vi que ali tinha uma situação. Há situações em que é complicado se conter. Mas é como respirar, quando você vê já fez a piada. O humor é muito forte. Eu sempre digo que, quando você é pequeno, ou você é forte, ou malvado, ou engraçado, ou vai tomar porrada.
E você optou por ser engraçado?
Claro, não sou forte, não sou malvado, não queria tomar porrada, então decidi ser engraçado.
Você já foi inconveniente?
Não, ainda não. Tem pessoas que dizem para os meus amigos que nunca sabem quando estou falando sério. Isso é ótimo, porque eu nunca estou falando sério.
Nada que está me dizendo aqui é sério?
Não. E pode não ser verdade também. Por que tem que ser?
Isso já aconteceu?
Mesmo num ambiente muito sério, eu já chego brincando. Talvez seja até uma defesa, porque tenho uma sensibilidade muito aguçada. Às vezes, as coisas são muito graves e eu capto. Chego a um lugar e já sei onde fico, porque capto onde tem uma densidade de energia. Outro dia fui a um candomblé de caboclo, no dia 2 de julho, na casa de um babalu que é irmão de Jota Cunha, eu nunca tinha ido lá. Cheguei e falei: tem uma coisa nessa sala muito forte, então decidi ficar na janela. Na hora em que cheguei à janela, a mulher que estava no lugar de onde eu saí baixou o santo. Então eu tenho essa coisa.
Você tem essa coisa da religiosidade?
Não. Tenho da fé, de acreditar nas coisas, nas pessoas. Acho a religião uma maneira de aplacar a solidão. Nós a inventamos para sair dessa profunda solidão em que vivemos. Agora tenho fé, tanto que fiz uma camiseta usando o logotipo da GE.

Por falar nisso, você criou a série de santos “geneticamente modificados”, brincou com o logotipo de marcas fortes. Isso teve alguma implicação?
Já recebi processo. A história dos santos, que criei em parceria com Renato (da Silveira), acabou indo parar no Terra Magazine, do Bob Fernandes, que foi meu colega na Facom (Faculdade de Comunicação). Ele ligou e me perguntou se eu tinha alguma novidade, porque ele estava inaugurando o portal. Eu falei da coleção São será o Benedito, ele gostou, mas disse que teria de pedir autorização à Telefônica, na Espanha, porque a coisa era muito forte. Me ligou de volta dizendo que publicaria apenas 11. Foi um arerê. As pessoas gostaram ou odiaram, até que uma empresa, com sede em Sorocaba (SP), moveu um processo contra a gente. Quando fazia cartum na rua, brinquei com a freira: “Irmã Dulce tem conta na Suíça”, aquilo foi considerado blasfêmia. Acho que você pode brincar, mas tem gente que não entende. Teve também o “Kremlim não compensa”, que eu previ (risos). Tem essa coisa de ser um pouco Madame Beatriz.
Teve o caso do leite Ninho. Como foi?
No livro de grafite, eu coloquei: “Pô, mãe, leite ninho outra vez”. Aí a agenda Tribo publicou sem a minha autorização. Entrei com um processo e eles tiveram de me pagar uma grana boa. Uma semana depois, a Nestlé os obrigou, na Justiça, a colocarem uma tarja em cima do cartum. Eles já tinham rodado 80 mil exemplares (risos).
É fácil desagradar fazendo humor?
Pois é. A gente vive uma fase de muita brutalidade. Eu tenho duas filhas e fico com medo que alguém as provoque e que elas reajam, que tomem um tapa ou até um tiro. Fico deprimido com toda essa brutalidade. Essa relação com o ter e perder a essência do ser, a gente não resolveu, né? Você quer consumir e ponto. Isso está fazendo com que a humanidade perca o senso de humor. Vivemos hoje num território de boçais.
E o humor é para divertir.
Pois é, mas as pessoas não têm mais sensibilidade. Você brinca, mas está arriscado a levar um tiro. Mas eu não desisto. Eu tenho colocado muita coisa no Facebook, que considero um espelho da sociedade.
É isso que leva as pessoas a adotarem a irritante conduta politicamente correta?
Mas ninguém é 100% politicamente correto. A gente se segura para não dizer as coisas.
Essa onda politicamente correta inibe?
A mim, não. A minha maneira de trabalhar é mais doce, eu vou com suavidade. Não que eu tenha medo, mas é porque é o meu estilo.

É por isso que você não trabalha muito com os políticos?
As outras pessoas já fazem isso, e, como tem esse belíssimo território a desbravar, que é o da delicadeza, o da leveza, então por que não usar? E eu percebo que isso é da minha alma, da minha natureza. É aquela lógica lá de gente lesa gera gente lesa (risos).
O seu trabalho passeia por diversas linguagens. Qual você prefere?
A do momento, porque eu, quando larguei tudo, inclusive um curso de medicina, fui fazer jornalismo, até descobrir que queria mesmo era ser cartunista, talvez fazer um livro ou uma exposição por ano. Depois percebi que podia ser designer gráfico, tanto que quando comecei a escrever Poesia remédio contra azia eu dizia que não era poeta, que escorreguei na poesia, que aquilo era um acidente. Na realidade, eu estou nesse acidente até hoje (risos).
Você está criando um estilo novo?
Eu pretenderia. Não sei se estou criando um estilo novo, mas quero criar. Tenho percebido que já influencio pessoas, sobretudo nos textos curtos. Outro dia, um garoto lançou um livro com uma poética um pouco parecida com a minha. Também vi um rapaz que lançou um livro de cartuns um pouco parecido com as minha linguagens, então, na realidade, isso é muito legal, até porque eu também fui influenciado. Pelo Jaguar, pelo Ziraldo…
Você gosta de trabalhar com códigos, com mensagens cifradas, por quê?
Porque é um desafio, é um processo associativo, o ser humano está associando o tempo todo, então no humor também é assim.

A escolha por lançar livros em formatos mínimos é porque você acha que as pessoas não leem mais?
É a lógica japonesa: menos é mais. No tamanho, você é econômico, eles são fáceis de transportar, vão no bolso ou na bolsa. Eu tenho uma dificuldade enorme em dar forma à ideia. Então eu deixo fermentando, depois vou tirando, deixando só a essência. Quando fica só essa essência, e ela é compreensível, é porque está bom. Se, além disso, é poético e tem rima, melhor ainda.

http://revistamuito.atarde.uol.com.br/?p=7945

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