Caetano Veloso - Francis
Tropicalistas
são referência.
Francis não
emplacou nem
uma frase
no “NYT”
são referência.
Francis não
emplacou nem
uma frase
no “NYT”
Incrível. Como é que o Paulo Francis escreveu que Mick Jagger tinha me respondido que era tolerante com latino-americanos — e ainda pôs um “sic”? Perguntei a Mick de sua tolerância com jovens. Ele fez uma cara safada e respondeu que era tolerante, “especialmente na Colômbia”. Bem, a cara safada foi dirigida ao dono da casa, Julio Santo Domingo, um colombiano que, amigo de Walter Salles, tinha emprestado o apartamento nova-iorquino para a entrevista. Walter era o diretor. Mas quem me convidou para ajudar na conversa com Jagger foi Roberto D’Ávila. Sinceramente, pensei que a cara maliciosa de Mick sugeria sexo: Julio era muito bonito. Mas Waltinho me disse que não (claro): sugeria droga. Colômbia nos anos 1980, você sabe. Mas Francis precisava dizer que Jagger nos humilhara e que eu não tinha sido valente o suficiente para revidar o golpe: ele queria que o leitor aderisse ao rancor contra mim, e para isso apelava ao fácil nacionalismo ressentido. D’Ávila, comigo, chiou do que Francis escrevera e disse que ia responder de público. Nunca vi tal resposta.
Eu não guardei o artigo. Reli agora. Na altura, li a bordo de um avião a caminho da Europa
para uma turnê longa. Mostrei a Guilherme Araújo. Rimos, protestamos, e eu, como sempre, tentei sem sucesso dormir no voo. Cheguei a Lisboa exausto e no dia seguinte já estava num palco. No fim da excursão o assunto já era algo remoto. De volta ao Brasil, percebi que não era tão remoto assim. Demonstrei minha indignação caracterizando Francis como bicha travada. Ele respondeu. Primeiro: que eu devia ser infeliz, pois usava como xingamento minha própria condição. Comentei, numa entrevista, que Francis não entendia nada de bicha. Depois: “Fiz uma crítica cultural a Caetano e ele responde com ofensas: puro Brasil.” E eu: Francis é quem me ofendeu, e eu fiz, em resposta, uma crítica cultural à figura dele: “bicha travada” era análise de tipo encontradiço em sua geração. Ele preferiu não entender que o núcleo pejorativo era “travada”, não “bicha”.
Li outros textos do livro antes desse. Queria sentir o artigo em meio ao que ele escrevia então. Escrevendo sobre mim ele me mostrou demais os defeitos de caráter que se podia notar em quase todo o resto. Por exemplo, ele descreve minha música como fusão ineditamente bem-sucedida de ritmos brasileiros com bebop e cool jazz. Numa frase, ele finge que conhece muito bem o que desconhece. E termina sendo injusto com Tom Jobim. Ninguém fez melhor do que Jobim o que ele descreve. Em outro trecho, ele corrige Deus e o mundo que dizem que Mick imita sotaque cockney: seria sotaque londrino, cockney “é outra coisa”. Que outra coisa? Cockney é o dialeto popular de Londres. Por muito tempo significou simplesmente “de Londres”. Dizer que rock não é música era lugar-comum. Francis faz de conta que eu não sabia. Eu não era (e não estava ali) como jornalista. A certa altura ele afirma que sou melhor compositor do que Jagger, mas pergunta por que eu não fiz “Citadel”, cantada por soldados no Vietnã. A resposta simples seria: porque o Brasil não invadiu o Vietnã.
A força de dominação da cultura anglófona é assunto que pervade tudo. Ninguém mais esmagado por essa força do que o próprio Francis. Ficava no Rio sonhando que conversava no Algonquin. Fez esforço para desprovincianizar o ambiente cultural brasileiro. Tema também meu. Desde sempre. Mas eu não tive oportunidade de bater cabeça para ele. Simplesmente não calhou, no ritmo de sucessão de gerações, de termos um encontro amigável. Glauber, que o arrasou na Bahia, cooptou- o aqui. O Algoquinho carioca grilou com o surgimento de minha geração: Millôr contra Chico, “Pasquim” contra “baihunos”. Zé Agrippino, em 1968, achava Francis um atraso de vida. Seus esforços de aggiornamento me atingiram em Santo Amaro, em 1959, na revista “Senhor”. Devo muito a Francis.
Passou parte da juventude em Nova York: natural que visse em mim o tabaréu. Ele percebia que entendo mal o inglês falado. Algo da crítica seria utilizável. Até por mim. Mas o que há de bebop ou cool em “Tropicália”, “É proibido proibir” ou “Nine out of ten”? E ele me descreve talvez com imagens já então velhas da paródia de grupo que foi Doces Bárbaros. Depois da entrevista, Marina Schiano fez um jantar para mim, com Mick, Bianca, Jerry Hall, Warhol. Este me perguntou se eu não o queria para fazer a capa do meu novo disco. Era “Uns”. Respondi que já tinha capa (de Oscar Ramos), em que apareço de cabelo curto e terno. Mick Jagger nunca teve cabelo curto. O fato de ele ser inglês encandeia Francis. Jovens paulistanos com veleidades de gênios da crítica o seguiriam como cães alemães.
No artigo sobre mim ele está dando adeus às agressões a Roberto Campos e acenando pela última vez para quem chora com frases como “adular os privilegiados”. Dois anos depois ele saudava Campos como um guerreiro. Um pouco mais e ele louvava Collor por ser “bonito e branco”.
Mas o retrato de Jango, as análises que juntam Schumpeter e Lenin, a ligeireza com que narra as conversas de Golbery com Ênio Silveira, toda essa competência periodística compensa o desconforto da prosa de seus romances, embora não dê para justificar as tiradas racistas. Sou vítima de uma delas. Ele escreveu que o Rio começou a decair quando Bethânia substituiu Nara no Opinião e, com ela, “veio essa gente”.
Tropicalistas são referência. Francis não emplacou nem uma frase no “NYT”.
O Globo
A Tarde/BA
17/06/2012
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