domingo, 22 de julho de 2012
Poesia em tempos de boemia literária
Um texto precioso
escrito por FLORISVALDO MATTOS
ASSUNTO:
Resumo de conferência pronunciada por Florisvaldo
Mattos, durante o seminário “Memórias Cruzadas da Cidade do Salvador”, promovido
pela Fundação Pedro Calmon, sendo moderador seu presidente, o historiador
Ubiratan Castro, em 18 de julho de 2012, no auditório da Biblioteca Pública do
Estado da Bahia, nos Barris, na parte circunscrita ao tema A Cidade da Boemia, tendo como foco “a
boemia literária e o entrelaçamento da vida intelectual, mundana e
universitária, que incubaram intensamente gerações de intelectuais
transformadores e movimentos de vanguarda, na Salvador dos anos
50”.
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Houve
um tempo nesta Cidade do Salvador em que, mais que uma forma de convívio entre
amigos, as tertúlias eram um refúgio de que se valia a boemia literária, para
fruir o intercâmbio cordial de ideias, que muitas vezes, desaguava em desafio,
em torneios de emulação, quando não de contenda rude, açulando a curiosidade de
uma audiência, que as acompanhava avidamente, de perto ou à distância. E nelas
muito de criação literária e artística se divulgava, para depois ganhar o mundo.
Essa distração intelectual com o tempo se esvaneceu, perdeu a antiga feição de
urbanidade, para quase completamente sumir das práticas culturais, passando a
compor um vasto anedotário. Em 1958, já não se falava mais dessa espécie de
concurso civilizado, mas ocorreu que, num bar da Rua da Ajuda, no curso de uma
tertúlia boêmia, que reunia poetas, literatos e jornalistas, dois sonetos
deixariam de ser remotos estados de ânimo e sutileza mental, para cumprir um
trajeto que pertence a todos os que viajam pelo terreno dos
símbolos.
A
partir dos anos 1940, quando profundas alterações ocorrem na ordem social e
econômica, com fortes reflexos na cultura, a Bahia, que era a terra do “já foi”,
toma outra configuração demográfica e urbana, impulsionada pela descoberta do
petróleo no Recôncavo e a conseqüente deflagração de um processo de
industrialização modernizador, livrando-a da dependência do comércio
agroexportador, que tinha seu vigor centrado no cacau; nova dinâmica advinda das
transformações no sistema de transporte rodoviário e aeroviário torna mais
rápida a relação entre o Sul rico e o Nordeste, aproximando centros de consumo e
fornecimento de bens e mercadorias; por fim, ocorrem mudanças no panorama
cultural, desde a gestão liberal de Anísio Teixeira na Secretaria da Educação e
Cultura, no Governo Mangabeira (1947-1951), acentuadas pela revolução que o
reitorado de Edgar Santos imprimirá na Universidade da Bahia, nos anos 1950,
criando novas escolas de arte e institutos especializados, além de reformular
unidades já existentes.
Tais
sucessos vão se refletir diretamente no desenvolvimento da Cidade do Salvador,
que, cansada e envergonhada do velho perfil provinciano, começa então a
sonhar-se cosmopolita. Num primeiro momento, as letras e as artes entram em
agitação, na ânsia de se libertar das amarras do conservadorismo imperante, com
a presença de jovens artistas plásticos (Mário Cravo Júnior, Carlos Bastos,
Carybé, Jenner Augusto), ficcionistas e poetas (Vasconcelos Maia, José Pedreira,
Wilson Rocha, Jair Gramacho), espraiando-se para outros campos (arquitetura,
mundanismo e até na política), com os ventos liberais que soprava a Constituição
de 1946. O entrelaçamento entre a vida intelectual mundana e universitária faz
surgir, com tinturas existencialistas, o primeiro pouso aconchegante da boemia
literária na cidade, o Bar Anjo Azul, na Rua do Cabeça, que se tornaria
doravante um emblema, um marco no gênero. Era a vibrante presença da Geração
Caderno da Bahia, empenhada em fazer vingar o ideário estético do modernismo,
cuja adoção plena o academicismo rotundo e insensível travara por dois
decênios.
É
nessa atmosfera de sonho e esperanças que desembarco em Salvador, em fevereiro
de 1952, numa noite de Segunda-Feira Gorda de Carnaval, vindo de Itabuna, para
estudar no paradigmático Colégio da Bahia e depois cursar universidade. E é a
partir da Faculdade de Direito, já publicando poesia na revista Ângulos, que venho integrar o grupo
nuclear de jovens, adiante dito Geração Mapa, que borbulhava entre o sucesso e o
escândalo com as apresentações de seus espetáculos de poesia dramatizada no
auditório do Colégio da Bahia, rotulados de Jogralescas, por volta de 1956/57.
Glauber Rocha à frente, e já se insinuando líder, por lá transitava uma
irrequieta malta de declamadores composta de poetas, artistas plásticos,
teatrólogos, cineastas, atores e futuros jornalistas (Fernando da Rocha Peres,
João Carlos Teixeira Gomes, Paulo Gil Soares, Calasans Neto, Sante Scaldaferri,
Ângelo Roberto, Fernando Rocha, Carlos Anísio Melhor, Fred Souza Castro, Antônio
Guerra Lima, Anecy Rocha, lembro alguns).
Associei-me
ao grupo e me engajei na saga de seus projetos editoriais e artísticos, numa
vasta gama de ações, envolvendo literatura, teatro, cinema, artes plásticas e
jornalismo. E logo começariam a surgir, em caudal, livros com o selo das Edições
Macunaíma; os projetos cinematográficos da Iemanjá Filmes; pinturas, esculturas
e gravuras em galerias de arte; peças levadas no espaço da jovem Escola de
Teatro; e, logo também, uma revista, a Mapa, e o inesquecível SDN, o suplemento
literário dominical editado pelo Diário de Notícias, de Assis Chateaubriand,
rematavam um vertiginoso leque de aspirações inovadoras. Aos nomes citados, vale
lembrar outros aderentes, como eu, Myriam Fraga, João Ubaldo Ribeiro, Sônia
Coutinho, David Salles, Valdeloir Rego.
Como
então os tempos de franca liberdade se casavam com a vida boêmia, febris
cogitações e intensos debates exigiam que a geografia da cordialidade se
estendesse por diversos pontos de encontro, que se tornariam habituais. Eram os
mais freqüentados: a Sorveteria Cubana, ainda hoje lá na parte alta do Elevador
Lacerda; o Restaurante Cacique, na Praça Castro Alves, mas ainda à época chamada
de Largo do Teatro; o Anjo Azul e o Restaurante Porto do Moreira, ambos na Rua
do Cabeça, o Bar Brasil, o Chez Bernard, novidade que se instalara no terraço do
Edifício Themis, na Praça da Sé; e, às vezes, o Colón, na Piedade. E, nos fins
de noite, com tudo fechado, Zé do Esquife, um tabuleiro de iguarias várias, que
se oferecia à boemia junto à estátua de Castro Alves.
A
noite era realmente criança e aconselhava outros pousos e outros desempenhos, a
começar pelas casas de mulherio, como o “Meia-três”, na Ladeira da Montanha, as
casas de “China”, “Maria da Vovó” e “Cymara”; gafieiras (Churrascaria Ide,
Metrô, Rumba Dancing, Belvedere); inaugurais boates (Carijó, XK Bar, Manhattan,
Pigalle e, para os mais abonados, o Cassino Tabaris). Fora disso e das cantinas
de faculdade, os encontros se davam nas sessões dominicais do Clube de Cinema da
Bahia, capitaneadas pelo advogado trabalhista Walter da Silveira, salas de
espera dos cinemas, portas de livraria e “hall” de faculdades. A cidade
tranqüila era assim intensivamente vivida, dia e noite, varando as
madrugadas.
Volto
ao começo, à história dos dois sonetos nascidos de uma longínqua tertúlia
literária, no lusco-fusco de um bar, em anos de boemia e jornalismo romântico.
Narro a excentricidade. Noite de primavera, dias depois do surgimento do “Jornal
da Bahia”, na Rua Virgílio Damásio, nº 3, uma transversal da Rua Chile, numa das
mesas de tampo de mármore do Bar Nogueira, então um dos mais concorridos da Rua
da Ajuda, vizinho ao famoso Café das Meninas, amigos estão sentados, dois deles
poetas e dois tarimbados jornalistas. Os poetas éramos eu, um mero iniciante, na
poesia como na imprensa, e Jair Gramacho, já um dos mais prestigiados membros da
Geração Caderno da Bahia, na qual disputava fama com poeta Wilson Rocha, ambos
ícones do modernismo na Bahia. Os dois jornalistas eram Ariovaldo Matos,
romancista e autor de “Corta Braço”, ficção pioneira inspirada numa invasão de
terras ocorrida no bairro da Liberdade, e o contista e cronista Flávio Costa,
este subsecretário de Redação, aquele experiente Chefe de Reportagem do novo
jornal.
Falava-se
de literatura, como sempre, quando de repente, coisa de boêmios, surge um
desafio, para saber-se qual dos dois poetas ali melhor escreveria um soneto. Não
sei de quem partiu a idéia, tampouco o grau do efeito etílico, que, indulgente,
o Ângelus da Igreja da Ajuda perto acalentava. Os dois poetas se entreolharam,
mediram o tamanho do repto, mas, feito o ajuste, bebericaram um pouco mais e se
foram. Dois dias após, tal como combinado, voltamos os quatro ao mesmo bar, cada
um dos poetas, empunhando a sua Excalibur verbal: eu, com o soneto intitulado "A
cabra", de cândida inspiração rural, composto no clássico formato petrarquiano,
com os catorze versos dispostos em dois quartetos e dois tercetos; ele, Jair
Gramacho, com suntuosa joia lavrada no modelo shakespereano, de três quartetos
integrados e um dístico, amplo de alusões panteístas e referências mitológicas;
ambos construídos em decassílabos de rimas entrelaçadas.
Cumprindo
o ritual e com a devida entonação, cada autor leu o seu soneto. Na postura de
juízes, depois de ouvi-los e cotejá-los, em silêncio, os dois jornalistas
concluíram sorridentes que os dois poemas mereciam publicação na edição
dominical do “Jornal da Bahia”. Dito e feito. Poucos dias depois, com verniz
gráfico de prestígio, os sonetos ocupavam as duas colunas do lado direito da
página literária, editada sob a batuta do historiador e cronista Luís Henrique
Dias Tavares, mas sem se referir ao embate que se travara no bar. Publicado,
cada soneto seria alvo de corporativista acolhida: o meu, com recitação e
elogios da presunçosa grei a que eu pertencia, enquanto o de Jair era bem mais
efusivamente louvado não apenas por nomes consagrados de sua
geração.
Em
1960, os dois poemas sairiam ainda na revista Ângulos (Nº 16), então prestigiosa
publicação do Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito, mas cada um
doravante com sorte diversa. “A cabra” iria compor o conjunto do meu primeiro
livro, Reverdor, saído em 1965 pelas
Edições Macunaíma, enquanto o primoroso soneto de Jair Gramacho, ao que sei,
permanece até hoje inédito em livro. São eles que agora abaixo reproduzo, vindo
em primeiro lugar o do meu saudoso e insigne êmulo.
SONETO
OITAVO DE ATALANTA EM CALIDÔNIA
JAIR GRAMACHO
Nesta
tarde o terreiro está vazio.
Distante
o laranjal se estende; a manga,
A
serra, o azul depois; tênue miçanga
De
açafrão tinge as fímbrias, o do estio
Único
resto. Esta tristeza é mais
Que a
da paisagem pobre e adormecente;
Talvez
por não ter rosas, não ter gente,
E a
solidão vagueie pelos currais.
Mas,
certo é que nesta hora, ressurrecto,
O
mito abandonado busca o luxo
Antigo
de existir; dispõe espectros
Que
em volta cirandeiam do repuxo...
Ah! Mais que basta para o instante magro
Galinhas ver – irmãs de Meleagro!
A CABRA
FLORISVALDO MATTOS
Talvez um lírio. Máquina
de alvura
sonora ao sopro neutro
dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és
já me tortura
guardar-te, olhos
pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar
contraditório
sobre lajedo o casco
azul polindo,
dominas suave clima em
promontório;
cabra: o capim ao sonho
preferindo.
Sulca-me perdurando nos
ouvidos,
laborado em marfim – luz
e presença
de reinos pastoris antes
servidos –
teu pelo residência da
ternura
onde fulguras na manhã
suspensa:
flor animal, sonora
arquitetura.
Florisvaldo Mattos é
poeta e jornalista; membro da Academia de Letras da Bahia; autor de livros de
poesia e ensaios.
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