RIO - No prefácio do livro “Mar Morto” (1936), Jorge Amado escreveu: “Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados (...). O povo de Iemanjá tem muito que contar”. Ele, que queria apenas relatar os causos de uma região do Nordeste brasileiro, acabou por retratar e construir a identidade de um país povoado por negras fogosas, brancas pudicas e elitistas, políticos, trabalhadores, meninos de rua, pescadores, bêbados, terreiros e mães de santo. As histórias de Amado, que foram escritas num ritmo quase ininterrupto entre os anos de 1931 e 1997, ajudaram a disseminar a cultura brasileira pelo mundo, impulsionaram a produção literária nos países africanos de língua portuguesa e, ainda hoje, contribuem para um entendimento mais amplo do que é ser brasileiro.
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Ao traçar as cores e cheiros do Brasil, Amado delineou os aspectos de um povo mestiço, religioso, que sobrevivia em meio à miséria e contrastava com as figuras idealizadas por José de Alencar e Gonçalves de Magalhães na prosa romântica do século XIX. O “jeitinho” e as manhas expressos nas letras de Amado podem ser interpretadas, segundo o crítico literário e colunista do GLOBO José Castello, como mitos de fundação do Brasil popular.
— Podemos ler as obra dele como mitos de fundação de um Brasil popular. Jorge faz parte de um grupo precioso de poucos e grandes homens, como Paulo Prado e Gilberto Freyre, que ajudaram a moldar a ideia moderna que temos do Brasil. Essa visão pode parecer um pouco datada porque o país mudou muito, principalmente nestes dez últimos anos, mas isso não exclui a grandeza e a riqueza dos tipos e imagens que ele criou — explica Castello.
O escritor e também colunista do GLOBO João Ubaldo Ribeiro, amigo e conterrâneo de Amado, concorda com o crítico. “Jorge Amado não escreveu livros, ele escreveu um país. Amado expandiu nossos horizontes, criou e formou leitores e aproximou-nos de nós mesmos” afirmou Ubaldo em uma conferência sobre a obra amadiana realizada há poucos dias na Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual Amado foi integrante de 1961 até a sua morte, em 1998.
Diferentemente de Ubaldo, Ana Maria Machado, presidente da ABL e autora de “Romântico, sedutor e anarquista — Como e por que ler Jorge Amado” (Objetiva) evita classificá-lo como descobridor ou inventor do Brasil. Ela prefere dizer — como Jorge afirmou em muitas entrevistas — que ele foi um grande contador de histórias.
— Ele levantou problemas sociais, criou discussões, mas não acho que ele tinha um projeto de criar um Brasil, o que importa são as obras dele, e o resultado está aí: um universo muito rico de histórias — diz Ana Maria, que destaca “Mar Morto” (1936) e “Jubiabá” (1935) como os melhores textos da primeira fase do autor, marcada por narrativas políticas.
Em 1954, Amado deixou de lado o discurso panfletário que permeou seus primeiros livros e aprofundou os temas da realidade do cotidiano brasileiro em sua literatura. A nova fase do escritor trouxe um país mais sensual em livros como “Gabriela, cravo e canela” (1958), mais despudorado em “Teresa Batista cansada de guerra” (1972) e, principalmente, mais místico.
O sincretismo religioso presente nos terreiros e nas ruas da Bahia se torna ainda mais representativo a partir de 1964, com a publicação de “Pastores da Noite” e “Tenda dos milagres” (1969). O doutor em Letras e professor da ECO-UFRJ Muniz Sodré observa que, ao incluir elementos religiosos em sua narrativa, Jorge complementa o imaginário a vida dos personagens baianos e afirma sua obra como espelho da vida da cidade.
— Considero o Jorge um explicador do Brasil. Ele parecia se perguntar o tempo todo: “Quem é o povo brasileiro?” O império português nos deu a nação, mas não deu o povo, que é o grande enigma nacional. Amado punha a liturgia da fé no centro da linguagem romanesca — explica Sodré.
Incluir elementos de luta política e do candomblé fez com que a literatura de Amado fosse lida com grande interesse nos países africanos de língua portuguesa, como explica o premiado escritor moçambicano Mia Couto.
— Ele falava de um Brasil que continha uma África dentro. É fácil identificar as cores e os cheiros da África nas páginas, nos personagens negros, mulatos. Ele foi fundamental para nos darmos conta de nós mesmos e observarmos as nossas danças, nosso erotismo, o nosso modo de comer e beber.
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