A crônica a seguir foi escrita por Rosiska Darcy de Oliveira e publicada
originalmente no jornal O Globo em 21/01/12. Fala sobre novas e modernas formas de envelhecer. A
conferir.
Com seu cabelo cinza, rugas novas e os mesmos
olhos verdes, cantando madrigais para a moça de cabelo de abóbora, Chico Buarque
de Holanda vai bater de frente com as patrulhas do senso comum.
Elas torcem o nariz para mais essa audácia do
trovador. O casal cinza e cor de abóbora segue seu caminho e tomara que ele
continue cantando "eu sou tão feliz com ela" sem encontrar resposta ao "que será
que dá dentro da gente que não devia".
Afinal, é o olhar estrangeiro que nos faz
estrangeiros a nós mesmos e cria os interditos que balizam o que supostamente é
ou deixa de ser adequado a uma faixa etária. O olhar alheio é mais cruel que a
decadência das formas. É ele que mina a autoimagem, que nos constitui como
velhos, desconhece e, de certa forma, proíbe a verdade de um corpo sujeito à
impiedade dos anos sem que envelheça o alumbramento diante da vida.
Proust, que de gente entendia como ninguém,
descreve o envelhecer como o mais abstrato dos sentimentos humanos. O príncipe
Fabrizio Salinas, o Leopardo criado por Tommasi di Lampedusa, não ouvia o
barulho dos grãos de areia que escorrem na ampulheta. Não fora o entorno e seus
espelhos, netos que nascem, amigos que morrem, não fosse o tempo "um senhor tão
bonito quanto a cara do meu filho", segundo Caetano, quem por si mesmo, se
perceberia envelhecer? Morreríamos nos acreditando jovens como sempre
fomos.
A vida sobrepõe uma série de experiências que
não se anulam, ao contrário, se mesclam e compõem uma identidade. O idoso não
anula dentro de si a criança e o adolescente, todos reais e atuais, fantasmas
saudosos de um corpo que os acolhia, hoje inquilinos de uma pele em que não se
reconhecem. E, se é verdade que o envelhecer é um fato e uma foto, é também
verdade que quem não se reconhece na foto, se reconhece na memória e no frescor
das emoções que persistem. É assim que, vulcânica, a adolescência pode brotar em
um homem ou mulher de meia-idade, fazendo projetos que mal cabem em uma vida
inteira.
Essa doce liberdade de se reinventar a cada dia
poderia prescindir do esforço patético de camuflar com cirurgias de botoxes -
obras na casa demolida - a inexorável escultura do tempo. O medo pânico de
envelhecer, que fez da cirurgia estética um próspero campo da medicina e de uma
vendedora de cosméticos a mais rica mulher do mundo, se explica justamente pela
depreciação cultural e social que o avançar na idade provoca.
Ninguém quer parecer idoso, já que ser idoso
está associado a uma sequência de perdas que começam com a da beleza e a da
saúde. Verdadeira até então, essa depreciação vai sendo desmedida por uma
saudável evolução das mentalidades: a velhice não é mais o que era antes. Nem é
mais quando era antes. Os dois ritos de passagem que a anunciavam, o fim do
trabalho e da libido, estão ambos, perdendo autoridade. Quem se aposenta
continua a viver em um mundo irreconhecível que propõe novos interesses e
atividades. A curiosidade se aguça na medida em que se é desafiado por bem mais
que o tradicional choque de gerações com seus conflitos e desentendimentos. Uma
verdadeira mudança de era nos leva de roldão, oferecendo-nos ao mesmo tempo o
privilégio e o susto de dela participar.
A libido, seja por uma maior liberalização dos
costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira
idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor.
Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que
envelhece. Envelhecer como sinônimo de decadência deixou de ser uma profecia que
se autorrealiza. Sem, no entanto, impedir a lucidez sobre o desfecho.
"Meu tempo é curto e o tempo dela sobra",
lamenta-se o trovador, que não ignora a traição que nosso corpo nos reserva.
Nosso melhor amigo, que conhecemos melhor que nossa própria alma, companheiro
dos maiores prazeres, um dia nos trairá, adverte o imperador Adriano em suas
memórias escritas por Marguerite Yourcecar.
Todos os corpos são traidores. Essa traição,
incontornável, que não é segredo para ninguém, não justifica transformar nossos
dias em sala de espera, espectadores conformados e passivos da degradação das
células e dos projetos de futuro, aguardando o dia da traição. Chico, à beira
dos setenta anos, criando com brilho, ora literatura, ora música, cantando um
novo amor, é a quintessência desse fenômeno, um tempo da vida que não se parece
em nada com o que um dia se chamou de velhice. Esse tempo ainda não encontrou
seu nome. Por enquanto podemos chamá-lo apenas de vida.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora.
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