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sábado, 8 de setembro de 2012

Nunca mais 20 anos na Bahia

 

Ronaldo Werneck

 


Terrível é saber que nunca mais terei vinte anos nem o corpo intacto como na Bahia de 64. Vinte anos, eu pleno e pronto para todos os prazeres, tabálcoois & tabarizes. Leia-se cigarro, cerveja & Tabariz: a diabólica boate daquela ladeira por trás do Cine Guarany, aquela ali que o Jorge Amado vai retomar mais tarde — o “Novo Tabariz” de seus futuros romances. Tabariz era sinônimo de “vadiar”, como fazia o Vadinho da Dona Flor. Vão-se as virtudes vem a vida, varal de vícios. A Bahia, pelo menos a “minha” Bahia, cheirava a acarajé & sexo, exatamente como Maria Bethânia diria certa vez da lambreta, aquele marisco que a gente entornava com a cerveja da madrugada na Ladeira do Pelourinho: “dá um tesão dos diabos!”. Difícil conciliar futebol e farra. E, antes de qualquer coisa, em 64, como ainda hoje, a Bahia já era uma farra só, imensa e permanente.

“Temos que dormir pelo menos umas quatro horas por noite, Ronaldo. É preciso conservar o corpo pras mulheres”. Sábias essas palavras de Antônio, da jovem turma do cinema baiano dos anos 60, o pessoal com quem eu andava na época. O Antônio que nós chamávamos de “Antônio das Mortes”, brincando com o filme do Glauber. O nosso Antônio das Mortes disse sua histórica frase no exato momento em que o crítico Alberto Silva adentrava a Cantina da Lua, a cara idem, em plena madrugada do Terreiro de Jesus. Há três noites/dias sem dormir, Alberto parecia um zumbi, com uns bons cinco quilos a menos que seu normal, que já não era muito, ele que até hoje conserva sua magreza baiana e bastante.

Nosso crítico predileto encostou-se solene ao balcão do botequim, pediu a clássica batida de limão, e disse que vinha de um aniversário de criança, onde subira numa cadeira e fizera um veemente discurso contra os milicos que tomaram o poder depois da quartelada de abril. Um espanto, o Alberto. Sóbrio, sempre foi cordato e simpaticíssimo. Bêbado, um revolucionário romântico e, por isso mesmo, eterno. Lembro de outra madrugada baiana, logo no início daquele abril de 64, dia 2, talvez dia 3, nós dois voltando pra casa: eu e Alberto trôpegos ali pela Rua Chile, vizinhanças do Elevador Lacerda. No Centro da Bahia, o sol já ensolarando todas as cores dia adentro – vermelho-amarelo-azul-verde-azul – lá pelas bandas do mar, por trás do Forte de São Marcelo.

Vício de jornalistas, mesmo bêbados compramos nosso jornal. Continuamos a andar, quer dizer, a tropegar, quando Alberto começa a gritar as manchetes do jornal que lia: “Milicos não duram muito!”. “Jango resiste no Sul!”. “Brizolla pronto para derrubar a quartelada!”. Os baianos que iam pro trabalho àquela hora, quer dizer, uns dois ou três, os baianos, aqueles entes manemolentes, voltavam-se estarrecidos, não acreditando, mas querendo acreditar, nas manchetes inventadas pelo Alberto. Tomamos nosso ônibus rindo muito, a alma lavada. Que maravilha! Melhor, que coisa mais porreta, como dizem os bons baianos. Realmente, Antônio das Mortes tinha razão: a gente precisa dormir pelo menos umas boas quatro horas (aliás, nem carece de quatro horas: dormir com as “boas” já basta) antes de se aventurar em qualquer aniversário de criança.
 

Pois é, como podem perceber, era preciso dormir bem mais do que isso pra se ficar sob as traves, à espera dos intermináveis tirambaços dos baianos de todas as estirpes e que tentavam me estirpar a qualquer custo da posição de guarda-valas, onde aliás, estava eu perenemente metido – nas invioláveis valas da noite em vão. Era muita noite pra pouco dia: não havia tempo pro futebol na Bahia. Mesmo assim, o time da AABB, comigo sob as traves, ganhou a grande maioria das partidas do início do campeonato e estávamos inclusive seriamente cotados para ir a São Paulo representar a Bahia na disputa do Torneio de Futebol de Salão Bancário. Mas pode um jovem goleiro resistir aos acenos da noite? Depois eu conto.

Jornal Olé nº 17/16 a 31de abril de 1998

Do livro Há Controvérsias 1

Editora Arte Paubrasil, São Paulo, 2009

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