30 janeiro 2013
O que precisa ficar bem entendido é o seguinte: o que
merece crédito na obra cinematográfica não é o que se "diz" no filme, mas, sim,
"como"o filme diz. E este se expressa por meio de sua linguagem específica,
assim como na literatura o escritor se expressa por um conjunto de palavras que
formam frases, orações e períodos. A expressão daquele que escreve se dá através
da sintaxe. E o cinema também tem uma sintaxe que se cristaliza pelo
relacionamento dos planos, das cenas, das sequências. Assim, os elementos
básicos da linguagem cinematográfica, os chamados elementos determinantes, podem
ser assim considerados: a planificação (os diversos tipos de planos - geral, de
conjunto, americano, médio, close up...), os movimentos de câmera
(travelling, panorâmica, na mão...) e a angulação (plongée,
contre-plongée...). E a montagem, existindo também os elementos
componentes, mas não determinantes (fotografia, intérpretes,
cenografia...).
É necessário, para uma melhor compreensão de um filme,
aprender a reconhecer a linguagem do cinema e a captar qualquer mínima
manifestação sua. Importa mais estar atento ao comportamento que a câmera adota
em relação a determinado personagem do que seguir o seu comportamento na tela. É
mais importante a verificação dos sinais efetuados pela câmera referente ao
personagem do que tentar entender o que este está a fazer no desenvolvimento da
história. A câmera dificilmente renuncia a uma opinião sua, mesmo quando parece
estar silenciosa e perfeitamente alheada. Os modos que dispõe para "qualificar"
a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente
compreensíveis.
Outro exemplo está em Frenesi (Frenzy,
1972), penúltimo filme de Alfred Hitchcock, um cineasta inventor de fórmulas, um
artista da mise-en-scène, cujos significados muitas vezes emergem do
comportamento da câmera e, por extensão, do uso que faz da linguagem
cinematográfica. Assim, em Frenzy,
o movimento aparentemente vagabundo da câmera tem a função de indicar a atitude
moral assumida pelo autor - no caso o mestre Hitch - relativamente à matéria
tratada. Numa cena dessa obra exponencial, uma mulher (Anna Massey, a namorada
do falso culpado Jon Finch) é assassinada em seu apartamento pelo hóspede (Barry
Foster, o estrangulador que o espectador já conhece) ocasional que ela própria
convidara confiando na sua extrema simpatia.
A câmera acompanha os dois quando se dirigem ao prédio
onde ela mora - o público já pressente o pior, pois ciente de que o homem é um
assassino perigoso, mas, entrando neste, a máquina de filmar abandona os dois "à
sua própria sorte", pois começa a recuar lentamente, sai do edifício e se detém
apenas quando o exterior deste fica enquadrado num plano geral. Todo o movimento
se procede através de um movimento de câmera chamado travelling, a
princípio "para frente" e, quando do recuo, "para trás". O grito da pobre moça é
abafado pelos ruídos do bairro popular onde se localiza uma feira muito
barulhenta. Que outra coisa pretende dizer Hitchcock com este travelling em
derrière se não que o Mal está entre nós e que opera das maneiras mais
insuspeitas? Trata-se, na verdade, de um caso em que a "metafísica" do autor
recorre, para se manifestar, à "física" de uma óbvia escolha
estilística.
Hitchcock procura também, com seu humor negro, "brincar"
com o espectador, que sabe ser um sado-masoquista e adoraria, no caso,
presenciar o estrangulamento da mulher pelo perverso homicida. A significação,
por conseguinte, se faz pela linguagem, pelo "comportamento" da câmera em
relação ao personagem. Se neste exemplo, a significação decorre de um movimento
de câmera, em outro, desse mesmo filme, ela advém pela montagem na seqüência na
qual o estrangulador procura, dentre muitos sacos cheios de batatas, aquele no
qual se encontra o cadáver da mulher que matara no apartamento a fim de lhe
tirar um broche de suas mãos, as quais, no momento da agonia, agarram o objeto.
A manipulação de Hitch é tal que o espectador torce para que o brutal
homicida encontre, tal a sua aflição - e a aflição provocada pela montagem, pela
'mise-en-scène', o broche que o denunciaria como criminoso.
Em O
Açougueiro (Le Boucher, 1969), de Claude Chabrol - um discípulo de
Hitchcock e autor, com Eric Rohmer, de um livro importante sobre o diretor de
Vertigo -,há uma cena na qual o protagonista - um carniceiro que se sabe
torturado pela mania homicida - confessa o seu afeto à ignara professora da
aldeia - ele é Jean Yanne, ela, Stéphane Audran, naquela época companheira do
diretor. A declaração tem lugar num bosque onde os dois se deslocaram para
colher cogumelos. A atmosfera seria das mais tranquilizantes, não fora passar-se
- durante o colóquio entre ambos - algo que não pode deixar de alarmar o
espectador atento. E esse algo não se refere ao comportamento das personagens -
que continuam a dialogar num cenário idílico - mas, precisamente, ao
comportamento da câmera. Esta última, quase inadvertidamente, começa a
deslocar-se lateralmente até o primeiro plano de um tronco de árvore se interpor
entre ela - a câmera - e o par, escondendo o homem cujas palavras, contudo,
continua-se a ouvir. A vista é desimpedida com a saída do tronco do campo da
visão, mas pouco depois desaparece novamente quando o movimento se repete em
sentido contrário, conduzindo a câmera à posição inicial. Eis um caso em que um
simples travelling se encarrega de denunciar ao espectador a atitude
reticente da personagem, 'encobrindo-a' da vista no momento em que 'se revela'
ao ouvido. Denúncia essa dirigida ao público e não, infelizmente, à desventurada
professora, que se manterá por um bom pedaço na ignorância das verdadeiras
intenções do carniceiro degolador.
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