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domingo, 24 de março de 2013

Antes que o diabo saiba que você está morto

 




Philip Seymour Hoffman e Albert Finney
Sidney Lumet nunca foi um autor na expressão da palavra, mas um artesão admirável que faz filmes melhores do que muitos considerados autorais. É, na verdade, um grande cineasta, um homem de cinema com todas as letras, dotado de um pulso surpreendente na direção de suas obras. Antes que o diabo saiba que você está morto surpreende pela força dramática, pelo manejo exemplar dos elementos da linguagem cinematográfica, e sempre a se afastar de maneirismos inúteis, de virtuoses para se mostrar (a exemplo de Feliz Natal, de Selton Mello, que poderia ser um bom filme não fossem os maneirismos virtuosísticos que tentam, claramente, mostrar que o autor sabe fazer cinema).
Lumet entende de economia dramática, possui um sentido de espetáculo acima da média, sabe cortar no momento certo, é excepcional na condução dos atores em cena, há, nele, uma concepção rígida do conceito de duração da tomada, uma intuição precisa de quando a câmara deve se movimentar em função exclusivamente dramática e da necessidade do fomento da fabulação. Um filme de Lumet, além do mais, oferece o prazer do cinema, coisa rara na crise balística da cinematografia atual.
O que faz um artista (sim, Lumet é um artista) de idade provecta estar mais antenado do que os seus contemporâneos? Em Antes que o diabo saiba que você está morto, Lumet, sobre realizar um filme que, como sempre, é uma análise da sociedade americana, do american way of life, de acentos trágicos impressionantes, oferece uma lição exemplar de como o tempo cinematográfico pode estar à disposição do enriquecimento dramático, a lembrar O grande golpe/The killing, de Stanley Kubrick, mas com logística própria e maturidade suficiente para que não se possa pensar em plágio.
O tempo em Antes que o diabo saiba que você está morto é pulverizado e desconstruído em função de dar ao filme força de expressão e fazê-lo, com isso, produzir mais sentido.
Lumet, pioneiro das filmagens in loco em Hollywood, tem, como de hábito, a ação de seu filme em Nova York. Philip Seymour Hoffman (o grande ator oscarizado por Capote, um dos grandes do cinema atual) vê sua carreira de executivo de uma empresa imobiliária a desmoronar, principalmente quando vem a saber da visita de auditores cuja vistoria pode comprometê-lo, e, além do mais, está viciadíssimo em drogas pesadas.
Decide, então, convencer o irmão (Ethan Hawke no melhor desempenho de sua carreira), que também tem graves problemas financeiros e vive num completodolce far niente (divorciado, sua filha está sob a guarda da ex-mulher e tem dívida atrasada da pensão alimentícia), a assaltar a joalheira de seus pais.
A princípio, um assalto fácil, pois eles conhecem bem todo o funcionamento do lugar. Mas na hora da ação, quando esperavam encontrar uma idosa funcionária, esta, por impedimento, é substituída pela mãe deles, que acaba morrendo pelas mãos de um terceiro cúmplice, que entra na loja enquanto Hawke espera no carro. O pai, Albert Finney, desesperado com a morte da esposa, tenta se vingar, sem saber que se encontra à caça dos próprios filhos.
Os acidentes de percurso são vários e conduzem a trama a um clima de tragédia, que Lumet constrói com a sua habitual competência narrativa. Há momentos dramáticos dilacerantes, a exemplo do diálogo entre pai e filho, Finney e Hoffman, e o clímax final regido com um crescendo trágico que coloca o filme bem acima da média do gênero.
Aliás, a julgar Lumet (e o livro que escreveu sobre o fazer cinema é obrigatório:Fazendo Filmes/Making Movies), vem a constatação de que a indústria pode muito bem produzir filmes de envergadura sem que venham obrigatoriamente de autores. Muitos artesãos, por competentes, dinâmicos, verdadeiros, estão acima de muitos autores de ocasião e, por que não dizer, cultores da aporrinhação.
É o tempo cinematográfico que rege a construção dramática de Before the devil knows you're dead. Uma mesma situação é vista sob os diversos pontos de vistas dos personagens, como no referido O grande golpe, de Kubrick, permitindo a Lumet, com isso, uma maior riqueza na observação dos momentos dramáticos e dando a perceber certas nuanças comportamentais dos personagens, principalmente o de Philip Seymour Hoffman.
À guisa de exemplo, há um plano no qual Marisa Tomei, no dia do enterro da mãe assassinada, vai à janela observar Hoffman e Finney a conversar no jardim. Em outro plano, já sob outro ponto de vista, ela é vista de fora, a contemplar, de dentro, a conversação.
Sidney Lumet (1924) vem da geração da televisão dos anos 50, que muito contribuiu para o revigoramento da linguagem cinematográfica do cinema americano. Depois de realizar vários seriados e adaptações teatrais para o veículo televisivo, estreou, e em grande estilo, no cinema, com 12 homens e uma sentença (12 angry men, 1957), com Henry Fonda e grande elenco, um filme de tribunal que se passa rigorosamente, por quase duas horas, dentro de uma sala do júri.
A crítica, porém, ainda que se lhe reconheça os méritos, diz que Sidney Lumet tem uma filmografia com altos e baixos, irregular. Sim, mas apenas por ter proporcionado aos cinéfilos de todo o mundo obras do quilate deste Antes que o diabo saiba que você está mortoO veredito (The verdict, 1982), com grande interpretação de Paul Newman e James Mason, A colina dos homens perdidos(The Hill, 1966), talvez o melhor desempenho de Sean Connery neste filme árido, difícil e de denúncia, Chamada para um morto (The Deadly Affair, 1966), thriller absorvente com James Mason, Simone Signoret, Harriet Anderson (sim, a bergmaniana Harriet de Mônica e o desejo), Maximilian Schell, Serpico (1973), com Al Pacino, e, ainda com este, Um dia de cão (Dog day afternoon, 1975), A manhã seguinte (The morning after, 1986), com Jeff Bridges e Jane Fonda, sobre o sofrimento dos alcoólatras, Um estranho entre nós (A stranger among us, 1992), com Melanie Griffith, Limite de segurança (Fail-safe, 1964, com Henry Fonda, alerta impressionante sobre a ameaça nuclear, um Dr. Fantástico levado a sério), entre tantos outros, a sua irregularidade é muito bem vinda.
Que todos os cineastas fossem assim tão irregulares como este fantástico Sidney Lumet!
 

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