Philip Seymour Hoffman e
Albert Finney
Sidney
Lumet nunca foi um autor na expressão da palavra, mas um artesão admirável que
faz filmes melhores do que muitos considerados autorais. É, na verdade, um
grande cineasta, um homem de cinema com todas as letras, dotado de um pulso
surpreendente na direção de suas obras. Antes
que o diabo saiba que você está morto surpreende pela força dramática, pelo
manejo exemplar dos elementos da linguagem cinematográfica, e sempre a se
afastar de maneirismos inúteis, de virtuoses para se mostrar (a exemplo de Feliz
Natal, de Selton Mello, que poderia ser um bom filme não fossem os
maneirismos virtuosísticos que tentam, claramente, mostrar que o autor sabe
fazer cinema).
Lumet
entende de economia dramática, possui um sentido de espetáculo acima da média,
sabe cortar no momento certo, é excepcional na condução dos atores em cena, há,
nele, uma concepção rígida do conceito de duração da tomada, uma intuição
precisa de quando a câmara deve se movimentar em função exclusivamente dramática
e da necessidade do fomento da fabulação. Um filme de Lumet, além do mais,
oferece o prazer do cinema, coisa rara na crise balística da cinematografia
atual.
O
que faz um artista (sim, Lumet é um artista) de idade provecta estar mais
antenado do que os seus contemporâneos? Em Antes
que o diabo saiba que você está morto, Lumet, sobre realizar um filme que,
como sempre, é uma análise da sociedade americana, do american
way of life, de acentos trágicos impressionantes, oferece uma lição exemplar
de como o tempo cinematográfico pode estar à disposição do enriquecimento
dramático, a lembrar O
grande golpe/The killing, de Stanley Kubrick, mas com logística própria e
maturidade suficiente para que não se possa pensar em plágio.
O
tempo em Antes
que o diabo saiba que você está morto é pulverizado e desconstruído em
função de dar ao filme força de expressão e fazê-lo, com isso, produzir mais
sentido.
Lumet,
pioneiro das filmagens in
loco em Hollywood, tem, como de hábito, a ação de seu filme em Nova York.
Philip Seymour Hoffman (o grande ator oscarizado por Capote, um dos grandes do
cinema atual) vê sua carreira de executivo de uma empresa imobiliária a
desmoronar, principalmente quando vem a saber da visita de auditores cuja
vistoria pode comprometê-lo, e, além do mais, está viciadíssimo em drogas
pesadas.
Decide,
então, convencer o irmão (Ethan Hawke no melhor desempenho de sua carreira), que
também tem graves problemas financeiros e vive num completodolce
far niente (divorciado, sua filha está sob a guarda da ex-mulher e tem
dívida atrasada da pensão alimentícia), a assaltar a joalheira de seus
pais.
A
princípio, um assalto fácil, pois eles conhecem bem todo o funcionamento do
lugar. Mas na hora da ação, quando esperavam encontrar uma idosa funcionária,
esta, por impedimento, é substituída pela mãe deles, que acaba morrendo pelas
mãos de um terceiro cúmplice, que entra na loja enquanto Hawke espera no carro.
O pai, Albert Finney, desesperado com a morte da esposa, tenta se vingar, sem
saber que se encontra à caça dos próprios filhos.
Os
acidentes de percurso são vários e conduzem a trama a um clima de tragédia, que
Lumet constrói com a sua habitual competência narrativa. Há momentos dramáticos
dilacerantes, a exemplo do diálogo entre pai e filho, Finney e Hoffman, e o
clímax final regido com um crescendo trágico que coloca o filme bem acima da
média do gênero.
Aliás,
a julgar Lumet (e o livro que escreveu sobre o fazer cinema é obrigatório:Fazendo
Filmes/Making Movies), vem a constatação de que a indústria pode muito bem
produzir filmes de envergadura sem que venham obrigatoriamente de autores.
Muitos artesãos, por competentes, dinâmicos, verdadeiros, estão acima de muitos
autores de ocasião e, por que não dizer, cultores da aporrinhação.
É
o tempo cinematográfico que rege a construção dramática de Before
the devil knows you're dead. Uma mesma situação é vista sob os diversos
pontos de vistas dos personagens, como no referido O grande golpe, de Kubrick,
permitindo a Lumet, com isso, uma maior riqueza na observação dos momentos
dramáticos e dando a perceber certas nuanças comportamentais dos personagens,
principalmente o de Philip Seymour Hoffman.
À
guisa de exemplo, há um plano no qual Marisa Tomei, no dia do enterro da mãe
assassinada, vai à janela observar Hoffman e Finney a conversar no jardim. Em
outro plano, já sob outro ponto de vista, ela é vista de fora, a contemplar, de
dentro, a conversação.
Sidney
Lumet (1924) vem da geração da televisão dos anos 50, que muito contribuiu para
o revigoramento da linguagem cinematográfica do cinema americano. Depois de
realizar vários seriados e adaptações teatrais para o veículo televisivo,
estreou, e em grande estilo, no cinema, com 12
homens e uma sentença (12
angry men, 1957), com Henry Fonda e grande elenco, um filme de tribunal que
se passa rigorosamente, por quase duas horas, dentro de uma sala do
júri.
A
crítica, porém, ainda que se lhe reconheça os méritos, diz que Sidney Lumet tem
uma filmografia com altos e baixos, irregular. Sim, mas apenas por ter
proporcionado aos cinéfilos de todo o mundo obras do quilate deste Antes
que o diabo saiba que você está morto, O
veredito (The
verdict, 1982), com grande interpretação de Paul Newman e James Mason, A
colina dos homens perdidos(The
Hill, 1966), talvez o melhor desempenho de Sean Connery neste filme árido,
difícil e de denúncia, Chamada
para um morto (The
Deadly Affair, 1966), thriller absorvente com James Mason, Simone Signoret,
Harriet Anderson (sim, a bergmaniana Harriet de Mônica
e o desejo), Maximilian Schell, Serpico (1973),
com Al Pacino, e, ainda com este, Um
dia de cão (Dog
day afternoon, 1975), A
manhã seguinte (The
morning after, 1986), com Jeff Bridges e Jane Fonda, sobre o sofrimento dos
alcoólatras, Um
estranho entre nós (A
stranger among us, 1992), com Melanie Griffith, Limite
de segurança (Fail-safe,
1964, com Henry Fonda, alerta impressionante sobre a ameaça nuclear, um Dr.
Fantástico levado a sério), entre tantos outros, a sua irregularidade é
muito bem vinda.
Que
todos os cineastas fossem assim tão irregulares como este fantástico Sidney
Lumet!
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