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domingo, 7 de abril de 2013

Chico, sonhos e cidade, labirintos e jogos de espelhos

       


Acho que já escrevi por aqui minha impressão de que as duas maiores fontes de inspiração para o Chico Buarque hoje são a cidade e suas implicações, em primeiro lugar, e em segundo seus sonhos. Chico, que sempre fora um observador atento do mundo, de alguns anos para cá, coincidindo com uma absoluta maturidade estilística, renunciou, talvez por desencanto ou convencimento de sua inutilidade pela experiência, a qualquer tipo de militância que sua música pudesse ter, passando a apenas descrever agudamente o que vê. Este olhar se volta para fora ao cantar o Rio de Janeiro, e para dentro ao falar de suas influências, como em Paratodos; rever fatos da juventude com os olhos maduros ou tratar do próprio tema do envelhecimento, como em A foto da capa e Tempo e artista; emular os labirintos da memória como em Barafunda; ou contar as experiências absolutamente pessoais, vividas efetivamente ou não, de Sonhos sonhos são e Outros sonhos.
Chico já contou em entrevistas de seu incômodo em perceber que seu público a cada dia está menos interessado em suas novas composições, e prefere que ele repita as antigas. Como se lhe dissesse: esta é legal, mas toca Quem te viu, quem te vê. A este respeito, ele teve também um sonho, que envolve Bolero Blues, intrincada parceria com o baixista Jorge Helder, melodia tortuosa e dificílima de cantar, que recebeu letra que é meio reminiscência de juventude, meio sonho também. O que Chico relata é o seguinte: um show em que ele cantasse apenas e unicamente Bolero Blues, inúmeras vezes. A platéia a princípio estranharia, mais tarde iria aderindo, aprendendo a canção e acompanhando, até que, por fim, a aclamaria, chamando Chico de volta ao palco para um bis em que ela seria mais uma vez repetida, agora acompanhada em coro por um público que, finalmente, seria conquistado ainda que quase à força, pelos novos caminhos da canção de Helder e Chico.
Bolero Blues – Chico conta o sonho e canta a música

Bolero Blues – desconstrução: Chico comenta a canção, apresenta a letra para Jorge Helder e a cantam pela primeira vez

Este desejo expresso por Chico de que o público acompanhe a estilização de sua obra é também a consciência de quem faz uma arte que já está estabelecida, que não tem mais grandes novidades a apresentar – nas suas palavras, O que eu posso é refazer da melhor maneira possível o que já fiz. Daí vem um burilamento que poderia chegar a um parnasianismo sem foco ou uma poesia atemática, não fosse Chico por natureza um cronista do cotidiano, tendo isso também entranhado em seu estilo.
Muito já se falou e falará sobre a polêmica sensação de (pau, pedra,) fim de caminho do formato canção, e das novas vertentes musicais que apontam possibilidades de direção, e se estas possibilidades ainda se configuram canção etc. (entre outros lugares, neste artigo referencial de Fernando de Barros e Silva, ponto de partida deste post.) O que Chico faz é, dentro destes parâmetros estritos da correlação melodia/harmonia/letra a se completarem em sentido, parâmetros estabelecidos em última instância por Tom Jobim, mostrar a cada vez que ainda há possibilidades a serem descobertas, sutilezas crescentes a serem percebidas. E faz isso sem perder o pé com a realidade, ao contrário, pondo tudo isto a serviço do olhar.
Carioca

A crônica de Carioca mostra isso. A interação fina destes três elementos em uma obra una consegue efeitos sutis e extraordinários, a serem percebidos pelo ouvinte de forma subreptícia, tanto em se tratando de versos específicos quanto da própria estrutura da composição. Em inúmeros momentos a melodia de Carioca ilustra o que a letra diz,e vice-versa. A começar pelo pregão do vendedor de tapioca, cantado já em notas agudas na abertura. Outro efeito conseguido é do povaréu sonâmbulo ambulando que nem muamba em notas conjuntas que se repetem sem padrão exato, como alguém que troca as pernas.
Mas o verso que vejo como a obra-prima em se tratando desta relação tripla formando novos significados é O Homem da Gávea criou asas. Primeiro pelo verso em si com seu desdobramento de sentidos, extrapolando os saltadores de asa delta da Pedra da Gávea para completar uma implícita linha evolutiva darwiniana – o Homo Habilis inventou como usar ferramentas, o Homo Erectus passou a andar de pé e o Homo Gaveas… paralelamente, a melodia segue uma linha ascendente que termina exatamente na nota aguda inicial, que vai continuar na menção ao voo da gaivota, iniciando a repetição melódica, em que homem corre e se joga no vazio para, como a gaivota vadia, voar nas mesmas notas agudas, planando no alto da sétima maior do acorde, sustentado pelo vento.
Por outro lado, Carioca é o acompanhamento de um dia típico da cidade, feito por Chico de sua janela lírica, digamos assim (o clip da canção é exatamente ilustração disto, pondo Chico atrás de uma hipotética vidraça espelhada na esquina das ruas Sete de Setembro e Ramalho Ortigão, no centro do Rio, assistindo o dia passar sem ser visto e divertindo-se com isso. Mas a canção, diversamente, passa-se na orla.) Acompanhando o dia declinante, após a primeira repetição do tema (exatamente a do homem da Gávea/gaivota) na sétima maior, as seguintes se iniciam e notas cada vez mais graves dentro do mesmo acorde, como o sol que se aproxima da crista das montanhas, descrito na terceira estrofe que se inicia na sexta maior, um tom abaixo, até a noite que já se anuncia na última, iniciada na quinta do acorde, dois tons abaixo da nota inicial.
Suburbio

Se Chico afirma que a música de Tom Jobim o modelou e hoje está ainda mais presente no que faz, então podemos concluir que Subúrbio está para Carioca assim como o Samba de uma nota só está para Desafinado. São as duas faces da moeda harmonia/melodia, mas neste caso também são as duas faces da mesma cidade, uma solar, outra sombria. E Chico segue a lição da música de Tom, criada no e para o cenário de Carioca, para cantar o outro lado aproximando-se da música que é feita para além do formato em que atua. O rap, tido por alguns como sucedâneo da canção ou no mínimo de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos, nas palavras do Chico. O rap, uma das vozes que desafinou o coro dos contentes do consenso da MPB, uma voz particularmente forte por representar uma parcela da população que não costuma ter voz.
Já comentei aqui no blog como Chico se aproxima do universo do rap sem sair do seu, ao fazer um rap/embolada em Ode aos ratos, parceria com Edu Lobo (filho de Tom Jobim nas palavras do próprio). Aqui o estratagema é outro, pois se trata, como a letra define, de um choro-canção. Chico consegue novamente unir mundos diversos. Arthur Nestrovski aponta na aula-show O fim da canção, na Rádio Batuta (link aí à direita) que Chico transpõe o cromatismo típico deste gênero da melodia para a harmonia, fazendo uma condução de baixo ascendente por semitons enquanto a melodia se fixa em apenas duas notas alternadas. Melodia inicial tipicamente jobiniana (Insensatez, por exemplo), mas que de acordo com Luiz Tatit também é a mais próxima da entonação falada (A melodia em linha reta do Samba de uma nota só, apesar do paralelo, tem outras intenções que não a procura da naturalidade. No entanto, justamente no verso Fala na língua do rap Chico recorre à melodia reta, conseguindo um efeito diverso de Tom, mas ambos radicalizando a melodia ao quase negá-la), assim como os versos de comprimentos irregulares também se aproximam do falado, da acentuação quebrada do rap. Enquanto a harmonia afasta-se e avança no caminho jobiniano que Chico percorre, a melodia, sem deixar de ter a referência típica da bossa-nova em que a harmonia se move sob a melodia, aproxima-se o quanto pode do canto falado microtonal do rap, da língua das ruas.
A sequência de convocações de bairros encontra paralelo nas que são feitas no rap juntando as comunidades. A citação de Águas de Março acompanhada de um palavrão traça um paralelo que lembra o significado original da sub-urbe: também aqui o caminho também tem seu fim, mas se em Tom trata-se do limite onde começa a natureza, aqui trata-se do lugar onde a civilização, em seu sentido estrito, perde a força, esvanece; onde a cidade termina. O que era uma elegia converte-se em amargor. Aos versos Cidade Maravilhosa / És minha seguem-se Desbanca a outra / A tal que abusa / De ser tão maravilhosa. Chico chama o outro lado da cidade, lado que admite implicitamente não ser o seu, de labirinto, onde ele se perde e anda em roda. Um labirinto como a melodia de Bolero Blues, onde ele também se perde nos versos E a Barão da Torre e a Vinícius de Moraes / São de repente estranhas ruas, mas principalmente se perde nas vielas da melodia de Jorge Helder. Chico continuamente re-conhece seu lugar e seu tempo, e continuamente busca ser re-conhecido por seu público, reconstruindo os labirintos da cidade e da memória em suas canções. Quer falar de nós e de seus sonhos. Que às vezes se confundem e são o mesmo.

http://tuliovillaca.wordpress.com/
 

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