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domingo, 17 de novembro de 2013

O eu e suas memórias

Edição 2002 de 17 a 23 de novembro de 2013
Ensaio

A melhor ficção é sobre si mesmo, a autobiografia, nesta época em que biografia entrou em pauta como o paradoxo entre a livre expressão e a invasão da privacidade
Nei Duclós
Especial para o Jornal Opção
Autobiografia é invasão da própria privacidade. Não consentida, porque o personagem alvo — alguém que já fomos — quer permanecer oculto e é devassado pelo seu mais cruel inimigo, a consciência do já vivido, a longevidade que inflete sobre a inocência e sua perversidade. Mal que pertence à vida, não se trata de patrimônio pessoal, embora a viagem íntima a esse outro eu (considerado o legítimo, o verdadeiro) seja o veículo para que esse mal se revele. O objetivo, entre os grandes autores, não é lavar a estátua, mas extirpá-la e colocar no pedestal, provisório porque humano, alguém desconhecido dos leitores da obra do autor e até mesmo dele. Autobiografia é para pessoas que precisam escrever sobre si para redescobrir-se. Ou pelo menos para entender suas origens e os eventos que o transformaram numa criatura de rosto diverso.

Esse outro eu é uma criatura misteriosa, que contraria a imagem cristalizada do autor/personagem. É para pegar de volta sua humanidade, perdida na notoriedade e na interferência excessiva do mundo e do tempo, que o escritor se volta para o sujeito que existe em si e reclama um pouco de verdade. É essa viagem íntima que retoma o caminho que é a fonte da própria literatura, pois foi a partir da escassez humana da pessoa em formação que a arte encontrou insumos, subsídios e sentidos que a tornaram grande. Jean Paul Sartre e seu menino farsante de “As Palavras” talvez seja o melhor exemplo, mas há outro, igualmente encantador, como o outro eu de Erico Verissimo em “Solo de Clarineta”, que adverte: “Não esperem que estas memórias formem um documento histórico. Elas não têm a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus contemporâneos. É antes um livro sincero, que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos”.

Autobiografia corre o rico de ser um texto de não ficção, e, portanto, sem sabor e tão suspeito quanto um inventado. Mas as obras importantes desse gênero apontam exatamente o contrário: a graça existe porque trata-se de uma biografia não autorizada, uma literatura colada ao real mas dele distante ao mesmo tempo, já que não temos como resgatar o passado a não ser por seus vestígios, como nos ensinam algumas escolas historiográficas. O autor devassa quem foi ou é por meio da criação literária, uma aventura que nos empolga, como “A História da Minha Vida”, de Charles Chaplin. Esse livro mostra como o ex-garoto miserável de Londres um belo dia ao viajar de trem viu pela janela multidões que acenavam para o comboio. Sem atinar do que se tratava, ele ficou sabendo pela primeira vez que era idolatrado por sua arte. Para onde foi, ao longo do tempo, aquele ser que começou de uma mãe demente e acabou isolado na Suíça com sua jovem esposa e ninhada de muitos filhos? É o que ele conta na sua saga admirável, tão brilhante como qualquer outra de suas obras.

Uma autobiografia pode se prestar para um mergulho nos horrores do eu, como acontece na tetralogia de Hermilo Borba Filho, que de tão crua e terrível é apresentado pelo autor como seu único texto de ficção em que o narrador fala na primeira pessoa. Ele precisava dizer isso, pois entregou tudo. Hermilo devassa não apenas sua persona, mas a de tantos outros que conviveram com ele, como a do cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, que, além de obras nacionais como “Simão, o Caolho”, fez filmes considerados na Inglaterra. Qual é, portanto, o desafio de um trabalho desses: autor referência, celebração do ego? Humanizar o personagem que se desprendeu da vida pessoal para jogar-se num abismo de percepções coletivas normalmente distorcidas, é um esforço de nobres resultados.



Ao contrário da hagiografia autorreferente, de autoria tanto do biografado quando de seu biógrafo contratado, a autobiografia a que me refiro é uma viagem ao contrário da celebração de si mesmo. É antes uma radiografia cruel que funciona na medida da sinceridade do autor, como escritores de verdade tem grandeza porque não mentem, suas obras autobiográficas costumam ser momentos únicos da literatura. Seleciono algumas delas, a partir das memórias que guardei de suas leituras. Trata-se do meu gênero predileto. Arrisquei algo semelhante no meu romance “Universo Baldio”, que são dois momentos — uma vivencia na juventude e uma viagem à infância pelo veterano esvaziado de sentido. Longe de fazer comparações, serve para ilustrar minha preferência pelo gênero nesta época em que biografia entrou em pauta como o paradoxo entre a livre expressão e a invasão da privacidade.

Mais do que o divã, é a aventura do viver e sua crueza que devassam o perfil do autor que garante a sobrevivência da verdade por meio de uma arma rara, o talento. Seu principal personagem o desafia. Há a tentação de vê-lo vestido de perenidade, mas isso não sustenta um livro de quem passou a vida reportando a vida humana. No fundo é o fim do perene adiamento, pois toda obra literária é autobiográfica não assumida. O que foi feito de maneira fragmentada ao longo da obra agora está inteiro diante do autor.

Esse eu íntimo imola-se diante da transgressão consentida. O autor que depois da notoriedade procura preservar sua privacidade acaba entregando todas num texto inesquecível. Achamos que estamos próximos demais de nós mesmos. Ao escrever a autobiografia, o autor aborda o que mais desconhece, aquele núcleo de vida que o tempo acaba confundindo. O resultado fica sendo um descascar constante de camadas que encobrem uma personalidade mutante. A ideia é chegar no miolo, na matrioska primordial do jogo de louças. Mas se descobre que é tão minúscula que ela escapa pela reticência. O tema continua sendo um enigma, que a trajetória esclarecedora só tende a tornar mais intenso e complexo. Ao sairmos de um livro autobiográfico de um grande autor, nos perguntamos porque existem tantos equívocos sobre ele se o próprio está ali, aberto num leque supremo de amostragem definitiva. É que se trata de literatura, não de ciência. Como todos os outros personagens, o autor mostra seu avesso e preserva a imagem. Sartre é um farsante de nascença e um filósofo fundamental. Erico Verissimo é um homem franco, sincero e simples, mas quem o segura no corpo e na mente de Ana Terra?

São conjeturas alimentadas pela memória de leituras antigas. Esses livros me acompanham por toda a vida. São meus favoritos, dentro do espectro amplo da memorialística, que é mais diversa do que enfoque escolhido aqui. Talvez tudo não passe de um truque: revelar-se integralmente humano, com a escassez inerente à espécie, faz parte da lenda. Serve para entender a força com que tantos personagens ganham vida. Já que o autor é capaz de criar com tanta desenvoltura alguém que tem tudo para ser ele próprio, reinventando uma vida no rastro do vivido, tornando letra o que foi carne e fúria, então é possível tornar habitável todo um mundo imaginário, já que somos apenas memória. O presente se esfuma e ficamos com o passado de herança, a cada segundo.
Nei Duclós é escritor e jornalista.


Leia um trecho de “Solo de Clarineta”, de Erico Verissimo
“O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica e displicente em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, em uma linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes — alheias ou nossas, antigas ou recentes —, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado — e às vezes, inexplicavelmente, do futuro —; enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite anterior, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas… uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa frequência entramos em conflito.”
 
“Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do outro é o meu calendário implacável. ‘Os cabelos te fogem, homem’, murmuro-lhe às vezes, ‘Tuas carnes se tornam flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto’. ‘E como imaginas que estás?’, replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a ideia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso será verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.”

“No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e melancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas — que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, decerto com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos — foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou.”

“Eu gostaria de simplificar o problema de meu temperamento apresentando-me como a manifestação de uma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe — sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade — podem ser comparadas com os muros de uma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, autoindulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.”
 
Leia um trecho de “As Palavras”,  de Jean Paul Sartre

“Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente ‘Les Contes’, do poeta Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na ‘página certa’, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: ‘O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?’ Perguntei incrédulo: ‘As Fadas estão aí dentro?’”

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