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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As muitas vidas de Eduardo Coutinho




JOSÉ GERALDO COUTO: NO CINEMA






Quantas vidas cabem numa vida? Na de Eduardo Coutinho, que durou quase 81 anos e terminou ontem (2 de fevereiro), couberam muitas. Vamos nos ater às que ele viveu no mundo do cinema. Falar sobre o homem, sobre o amigo, seria doloroso demais. Passo.

Coutinho começou na ficção, como roteirista (A falecida, Garota de Ipanema, Lição de amor, Dona Flor) e diretor (O homem que comprou o mundo, Faustão). Foi parar no documentário meio por acaso, meio por necessidade.

Trabalhar nos tempos heroicos do Globo Repórter, realizando documentários livres e desbravadores pelo interior do Brasil, era para ser, a princípio, um ganha-pão temporário, mas foi ali que Coutinho acabou se renovando e encontrando sua voz. Aqui, para quem quiser conhecer, a íntegra de um desses trabalhos, o notável Theodorico, o imperador do sertão (1978):



O coroamento dessa virada se daria com um marco do cinema brasileiro e mundial, Cabra marcado para morrer (1985), a retomada em chave documental do projeto ficcional homônimo, abortado pelo golpe militar de 1964. O Cabra consagrava uma convicção do diretor que tanta influência teria sobre as gerações posteriores: o documentário não como registro passivo de uma “realidade” dada, exterior, mas como dispositivo que enseja ou produz uma nova realidade, surgida da interação do realizador e sua equipe com um determinado ambiente, com determinados personagens. Desse enlace, embate ou fricção é que surge o filme.

Eternamente inquieto, radicalmente íntegro, incapaz de qualquer espécie de autoindulgência, Coutinho, depois do Cabra, passou por um período de impasses e dúvidas, durante o qual realizou Santa Marta, O fio da memória e Boca de lixo, projetos que ele considerava parcialmente frustrados.

Confissão e ficção

Foi só em 1999, aos 66 anos, que ele experimentou, com Santo forte, um novo renascimento criativo, dando início a uma fase de impressionante produtividade e frescor, que durou até agora e, ao que tudo indica, continuaria por um bom tempo.

Veio então uma sucessão de grandes filmes: Babilônia 2000, Edifício Master, Peões, O fim e o princípio, Jogo de cena, Moscou, As canções, Um dia na vida. Com exceção deste último, que é um caso sui generis (o horror contemporâneo concentrado em 24 horas de programação de TV), todos os outros, a despeito das diferenças radicais entre si, baseiam-se numa crença básica do cineasta: dadas certas condições propícias, todo indivíduo, diante de uma câmera e um microfone, torna-se personagem de si mesmo, reinventa sua própria vida, num jogo permanente de confissão e ficção. Jogo de cena é o filme em que essa ideia se desenvolve de forma mais cabal.

Uma das tais “condições propícias” é a duração da conversa, possibilitada por uma circunstância técnica aparentemente banal: a troca da filmagem em película pela captação em vídeo (inicialmente Betacam, depois digital). Com a película tradicional, era preciso interromper a filmagem a cada dez minutos para a troca de rolos, o que esfriava inevitavelmente a conversa, aniquilando a confiança, a fluência e a espontaneidade do entrevistado. Podendo falar sem parar durante meia hora, ou uma hora, o sujeito passava a levar o filme a terrenos inesperados, em termos de informação ou de emoção.

Relação de mão dupla

Com infinita paciência e ausência de julgamento, Coutinho estabelecia com seus personagens uma relação especial, única, frequentemente de mão dupla: alguns dos momentos mais belos e reveladores de seus filmes são aqueles em que o próprio diretor é confrontado e instado a se expor.

Lembro um caso exemplar: já perto do final de Peões, o metalúrgico Geraldo diz que não quer que os filhos passem pelo que ele passou. Emocionado, fica um bom tempo em silêncio e depois pergunta para Coutinho, na lata: “Você já foi peão?” A negativa balbuciada pelo cineasta e o silêncio constrangido que se segue são um momento sublime raramente alcançado por um filme de ficção. Aqui, para quem não viu:

http://www.youtube.com/watch?v=QRe2foopogk

Flagrar o momento inefável do encontro, filmar o laço invisível entre os seres, a contradição entre palavra e gesto, entre música e silêncio, apreender o tempo que escorre, captar o rastro fugidio da vida – foi isso o que Coutinho tentou. E tantas vezes conseguiu. Talvez por isso sua morte, tão estúpida e brutal, pareça ficção.



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