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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

QUANDO A PRINCESA BEIJA O SAPO E O MARMANJO ABRAÇA O OGRO



Lula Afonso


"Um dia após TSE decretá-lo ficha suja, Paulo Maluf manda equipe sorrir". Muita gente se surpreendeu com esta curiosa manchete (FSP, 25/09/14) e, não menos, com a desenvoltura com que Maluf tem surfado com suas “verdades” no oceano de evidências que o incriminam. E nada lhe acontece! Os argumentos do nobre deputado realçam as dificuldades para se distinguir o que é veraz do que é falso e malicioso na cena política do país, ainda em rescaldo dos bombardeios recentes da propaganda eleitoral.




Amparado pelas notórias liberalidades pro reu da Justiça brasileira e em atitudes norteadas por seu peculiar marketing político, Maluf, solto como o vento, adota o sofisma maquiavélico de que “é melhor ser atacado do que ser ignorado” e simboliza a ética de balcão e a impunidade caixa-alta das nossas castas políticas, governamentais e togadas. Se ele sair do Brasil, entretanto, será preso em qualquer aeroporto de países onde não se costuma rimar Justiça com leniência.

O fato é que esse tal de marketing político de que Maluf é usuário tornou-se, nos anos recentes, o todo-poderoso alavancador de candidaturas no país, com sua incontestável capacidade de tornar palatáveis e levar ao (ou manter no) poder personagens de origem duvidosa, para dizer o menos. São candidatos desde sempre “diferenciados” não pelas qualidades, mas sim, pelo dinheiro que não lhes falta e pelo suporte de prestidigitadores de imagem de alta performance, munidos de estruturas sofisticadas que influenciam, decisiva e comprovadamente, a opinião pública, em especial nas faixas com menores oportunidades de polir a cidadania com a educação – o que, convenhamos, não é pouco neste país.



Que as parcelas despolitizadas e vulneráveis da população sejam a presa preferencial dos manipuladores midiáticos é bem mais compreensível do que a aderência incondicional de eleitores bem dotados de formação e informação a verdades de laboratório e a mantras monocórdios dedicados à hipnose política massiva, abandonando no caminho os proveitos intelectivos do contraditório e inculpando o mensageiro quando não é favorável a notícia..

Uns e outros segmentos, agora com a cabeça mais arejada, devem estar perguntando aos próprios botões o que há de real no perfil do candidato derrotado à presidência, modelado pelo marqueteiro-mor adversário e martelado dia sim e no outro também no horário eleitoral. Estereotiparam-no como cheirador de pó e playboy que nunca trabalhou, bate em mulher, dirige bêbado e tem ódio a pobre. Se eleito, governaria com os bancos e apenas para os ricos, acabaria com o Bolsa Família e com o Nordeste, além de privatizar a Petrobras; é aliado dos bandidos do Rio e construiu um aeroporto público em terreno da família, onde escondeu centenas de quilos de cocaína.



Um tanto pesado esse perfil, mesmo para o jogo bruto eleitoral, não é? Entretanto, consciente ou subliminarmente, parcela majoritária dos segmentos emergentes da população acreditou piamente nessas e noutras verdades de proveta, massificadas por técnicas de desconstrução de imagem engendradas com refinadas e vanguardistas ferramentas de comunicação. Poupemo-nos de resgatar aqui os perfis modelados pelos adversários para a candidata da “terceira via” (a coitada apanhou dos dois lados!) e para a presidente reeleita.

Deriva dessa idealização fake um momentoso problema para o reencontro da coerência no cotidiano republicano: passado o período da campanha, do viés engajado e dos filtros ideológicos e volitivos, muita gente boa continua embarcada nos consabidos libelos denegridores, menos lhes importando a realidade que se desvenda no pós-campanha, totalmente diferente das promessas mirabolantes e do mundo edulcorado criado pela propaganda.


Washington Olivetto

Ressalte-se que, no rescaldo de 2014, mais de 70% dos eleitores afirmaram que a campanha ultrapassou de longe os limites da razoabilidade, rebaixando o já combalido embate político-ideológico a estratégias de marketing focalizadas na degradação do inimigo (em lugar de adversário), não só expondo mazelas, mas, principalmente, criando factoides ou adulterando evidências que inventaram ou superestimaram facetas negativas e limaram presumíveis qualidades. Recursos que desequilibram também o pós-jogo e pouco aproveitam aos vencedores, aos vencidos e à própria normalidade republicana.

Aristóteles, Goebbels, Robespierre e João Santana: o que há em comum

Há que se considerar que, por mais que desqualifique adversários e modele com eficácia atributos e perfis positivos nos políticos por ele alavancados, o marketing não passa, em essência, de uma ferramenta de comunicação, desenvolvida com competência no Brasil e turbinada pelos avanços das tecnologias da informação.

Os seus fundamentos enraízam-se na técnica de persuasão que os gregos criaram e converteram em arte, a retórica, há mais de 25 séculos, apropriada pela Igreja a partir de 1622, quando o papa Gregório XV instituiu a "Congregatio de Propaganda Fide", uma comissão de cardeais para orientar a difusão da palavra cristã nas missões estrangeiras. Estudiosos localizam nesse evento a gênese da propaganda tal como a conhecemos.


Gregório XV

Nessa trilha longa e tortuosa, faz-se exemplar o discurso de Robespierre à Convenção em Paris, quando se julgava o destino do rei Luiz XVI, deposto pela Revolução Francesa: a eficácia retórica, elegância de estilo e eloquência catalisadora do orador mudou a maré dos convencionais e o próprio destino da Revolução: antes dele subir à tribuna, em 3 de dezembro de 1792, a Assembleia discutia a prisão ou a deportação do rei. No final da inflamada locução robespierriana, a cabeça real estava prometida à guilhotina. Algumas gemas raras colhidas no conteúdo: “Luís não pode ser julgado, já foi julgado. Está condenado, ou a República não está absolvida”; “Se Luís for inocente, todos os defensores da liberdade tornam-se caluniadores”; e “Não tenho por Luís nem amor nem ódio; odeio apenas seus crimes”. E o arremate fulminante: “Luís deve morrer, porque é preciso que a Pátria viva!”


Maximilien de Robespierre

Execução de Luís XVI

Séculos antes, Shakespeare lançara recursos retóricos símiles aos de Robespierre na laboração do discurso de Marco Antonio contra Brutus, líder do complô senatorial que resultou no assassinato de Júlio César, na peça clássica que lhe recebeu o nome. Com hábeis artifícios e eloquência bem dosada, ao lado do corpo do imperador, Antonio incendiou a opinião dos romanos e incitou, ali mesmo, uma rebelião popular que resultou na desgraça dos seus inimigos.

Assassinato de César

Nas décadas recentes, deu-se a incorporação de técnicas de convencimento derivadas, em grande medida, da assim chamada lavagem cerebral, cujas aplicações, aprimoradas no segundo grande conflito bélico mundial e na Guerra Fria que marcaram a metade do século XX, voltaram aos tempos áureos com as ruidosas catarses neopentecostais nos templos e nas mídias eletrônicas.

A saga da mentira convincente

Uma das primeiras evidências da nova ciência tornou-se-lhe fundamento: é tão fácil propagar a mentira quanto à verdade. Associado a outro paradigma (da lavra de Adolf Hitler), pelo qual "a mentira gritada bem alto, repetidas vezes, assume para o povo o status de verdade", firmou-se como basilar entre os profissionais da área. Conjugados, os dois princípios constituem, para muitos entendidos, a mãe de todas as manipulações.



Insere-se nessa seara a sempre lembrada – e sempre posta em prática – declaração do então ministro Rubens Ricupero, preconizando a praxe de ocultar ou camuflar o que é negativo ao governo e potencializar tudo aquilo que “joga a favor do nosso time”. Demitido pelo presidente na época, Itamar Franco, o ministro boquirroto não foi original em sua incontinência verbal.


Ricupero

Nas tenebrosas décadas de 30 e 40 do século XX, o mefistofélico chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, regulava que “o objetivo da propaganda é salientar a verdade que nos interessa. Quando ela pende para o outro lado, só o aspecto que nos é favorável deve ser manifestado”.


Goebbels em campanha

Não por acaso o chefão da gangue, Hitler, anotou no livro-guia Mein Kampf que "a verdade tem que ser sempre adaptada para ajustar-se à necessidade". Nessa mesma linha, duas dezenas de séculos antes, Aristóteles já descobrira o caminho das pedras ao enunciar que "é melhor criar uma personalidade adaptável ao seu inimigo e resumir essa personalidade numa única imagem representativa”.

Aristóteles

Goebbels constatou que as massas detestam a ambiguidade e abstrações e substituiu, sempre, o argumento pela declaração. Ele universalizou técnicas da propaganda de massa que, utilizadas pelas ideologias totalitárias da época (aprimoradas pelo estalinismo por meio do manual soviético de psicopolítica), tornam-se curiosamente familiares nestes anos de globalização, claro que em formato lapidado, praticando-se a máxima de que a informação que “faz as cabeças” terá mais ampla aceitação quando mais vulgarmente apresentada.



Atualiza-se ainda, nas mídias modernas, outro achado goebbeliano, de que a palavra falada tem muito maior poder de influência que a palavra escrita e um discurso bem feito é infinitamente mais sugestivo que um bom editorial. Nos anos de agitação nacional-socialista, a comunicação massiva por meio do rádio foi o pé-de-cabra que abriu brechas na porta cognitiva da coletividade, por onde se fez passar mensagens passionais que seduziram as massas ditas civilizadas ao nível dos ratos seguidores do flautista de Hamelin. 

Está tudo registrado na história, assim como no conto de fadas. Hoje, as mídias eletrônicas e as redes sociais tocam adiante, em um só corpo, o verbo e a imagem.

Os novos demiurgos da comunicação de massa

Como dois grandes rios que se encontram e formam um terceiro mais caudaloso no misturar das águas, as vertentes política e comunicacional lidam com um par de evidências que se superpõem: a primeira é o triunfo de uma espécie de nova religião na esfera da publicidade, com sacerdotes pagos a peso de ouro e poderes para estabelecer regras a chefes de Estado, indicando-lhes as roupas que usam, fazendo-os decorar roteiros e falas, maquiando-lhes a imagem e ensaiando-lhes atitudes e gestos criteriosamente modelados para cada ocasião.

João Santana

A segunda evidência refere-se à desideologização do conteúdo – quando preexistente – nas hostes partidárias, redirecionado em função de um pragmatismo que faria corar o proto-anarquista Bakunin, a quem, indevidamente (como se comprovou mais tarde) foi atribuído o bordão-aríete de que “os fins justificam os meios”.

Mikhail Bakunin

Nessa nova dimensão do poder manipulador, a forma sobrepuja o conteúdo e, não poucas vezes, o substitui, no parecer do publicitário Washington Olivetto. Afirma-se o domínio absoluto e sedutor da emoção planejada para provocar reações profundas, nelas embutindo ou justificando razões de ocasião, construídas com técnicas de convencimento elaboradas para gravar nos corações e mentes do povão o posicionamento desejado, possibilitando dourar a pílula de candidatos e metamorfoseando, a não poucos, de batráquios em príncipes.

Esse novo poder evoca filmes de ficção científica relacionados à máquina que domina o homem que a criou: no nosso caso, a ferramenta comunicacional domina a ideologia a serviço da qual deveria estar engajada. Os aparatos do marketing emergem das coxias e ocupam posição central no palco, em nítida inversão de papéis em que o comando da política migra do ideário partidário para o pragmatismo de técnicas comunicacionais que, por origem e vocação, não ostentam bandeiras, posições nem ideologias, predestinadas que são a servas incondicionais do senhor que lhe apertar os botões em busca do poder.


Entre a razão, a crença e a sedução

O aparato publicitário define a plataforma de campanha de acordo com o que as pesquisas demonstram que a população quer, o discurso é modelado em função dos desejos captados, em processo que tem tudo a ver com as câmeras ocultas em gôndolas de supermercados para aferir o grau de dilatação das pupilas (aceitação, atenção) do consumidor ante produtos em prospecção. 

Os procedimentos de sedução passam por uma parafernália de processos modeladores e ferramentas como o photoshop, estratégias segmentadas para públicos idem, sondagens minimalistas, monitoramento e ajustes permanentes do produto às expectativas detectadas no público-alvo. Nada escapa à customização e flexibilização para atendimento às necessidades e demandas identificadas. O produto vem pronto para consumo e relativiza para baixo os traços diferenciadores e as aptidões dos candidatos, ajustando-os à aceitabilidade dos estratos sociais em mira. No cômputo final, as campanhas ficam parecidas umas com as outras e os candidatos parecem pasteurizados.


Os clichês e estímulos visuais repetem-se, sensibilizando o hemisfério direito dos cérebros desavisados. O candidato à reeleição visita obras com o indispensável capacete, é abraçado nas ruas por populares em êxtase, beija crianças, faz com eles selfies, acena, dão-se as mãos. Eles são treinados qual atores para se identificarem com as tendências da hora, vesti-las e até nelas acreditarem.

E o negócio funciona! Está explícito nas campanhas e, sobretudo, nos resultados, que favorecem os bem dotados em recursos que podem comprar, sim, consciências e até amor verdadeiro, como disse uma vez o mestre Nelson Rodrigues, intimista das reentrâncias que a alma esconde.


O momento supremo de confirmação dessas construções-frankensteins é quando o demiurgo, o candidato modelado e os seguidores passam todos a acreditar na criação – e poucos se tocam com as contradições por detrás da espuma. Essa relativização da verdade e do mundo fake têm tudo a ver, enfim, com o clássico chiste sobre a indagação do editorialista, quando o dono do jornal lhe encomendou uma matéria sobre Jesus Cristo: “Contra ou a favor, chefe?”


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