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sábado, 10 de janeiro de 2015

Revolta dos Malês

Revolta dos Malês é revista em textos de escravos e de jornais da época

Motim de islamitas na Bahia completa 180 anos

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Escravos e brancos se misturam na Praça da Piedade, no Centro de Salvador, em gravura do século XIX: lugar foi o palco da Revolta dos Malês, que durou um dia - Reprodução

RIO - Diz-se que, para o muçulmano, Deus se revela pelas letras. É também através de sinais gráficos — unidos em palavras em português, inglês e sinais árabes desenhados com esmero — que estudiosos têm se debruçado recentemente sobre a Revolução dos Malês. O movimento de negros muçulmanos em Salvador, que completa 180 anos no próximo dia 25, pretendia impor a libertação dos escravos e tomar o poder local. Tendo ocorrido na capital baiana, um dos mais importantes centros do país à época, o levante ganhou repercussão em jornais brasileiros e estrangeiros. Liderado por homens que se distinguiam dos demais escravos por motivos religiosos e consequente domínio da escrita e da leitura, ficou registrado também em documentos escritos pelos próprios malês, expressão derivada de imalê, que, na língua iorubá, significa muçulmano. Livros, amuletos e pequenos pedaços de papel que continham palavras escritas em árabe foram apreendidos com os revoltosos.
As palavras escolhidas pelos jornais da época para descrever o levante, analisa Fernando Resende, professor de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), reiteravam estereótipos em torno dos escravos afro-muçulmanos que participaram da rebelião. Resende interpretou o preconceito em relatos de jornais breves, noticiosos e pouco esclarecedores do problema da escravidão. Na verdade, diz, a existência de homens tratados como propriedade de senhores não era sequer tratada como um problema. A preocupação da imprensa, conta ele, era essencialmente comercial. O tema é explorado em sua pesquisa de pós-doutorado recém-concluída na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Intitulado “Poéticas da alteridade: narrativas midiáticas e o processo de invenção do outro”, o estudo esquadrinhou jornais do século XIX, sobretudo ingleses. Para Resende, a questão tem um viés histórico e ainda ecoa nos dias de hoje.

— Eram notícias muito tomadas por uma perspectiva do Estado. Além de falar uma língua que a colônia não conhecia, eles viviam em um país extremamente católico. O fato de serem muçulmanos aparece com força nesses jornais, com uma abordagem muito parecida com a que vemos hoje. Cai como uma suspeita sobre eles, e (a narrativa) reforça que aquele seria um sujeito indesejado. Faço uma crítica a essa reiteração de uma lógica muito homogeneizadora, que coloca todos num mesmo lugar — avalia o professor.

LEITURA CORÂNICA, REZAS E CONSPIRAÇÃO

Referência no assunto por ter escrito o pioneiro livro “Rebelião escrava no Brasil — A história do levante dos malês em 1835”, o historiador João José Reis detalha o desenrolar do levante que provocaria agitação na cidade por horas. Era madrugada do dia 25 de janeiro de 1835 quando a Revolta dos Malês se concretizou. Organizada sobretudo por muçulmanos, de diferentes etnias, com protagonismo de nagôs e participação de hauçás, o movimento teria sido planejado em reuniões — possibilitadas pela relativa autonomia de que dispunham escravos urbanos — em que exercícios de leitura e escrita corânicas dividiam tempo com rezas e conspirações. E tomou forma ao fim do mês sagrado do Ramadã, com revoltosos munidos de roupas islâmicas, anéis e amuletos protetores produzidos com cópias de rezas, escritos árabes. Mais tarde apreendidos, eles comprovariam o conhecimento da escrita pelos africanos, encarado à época como um sinal de civilização. Cerca de 600 revoltosos participaram do levante, que teve também participação de não muçulmanos. Naquele momento, Salvador tinha cerca de 65 mil habitantes: quatro em cada dez eram escravos, e os brancos não passavam de 20%. O objetivo da revolta seria implantar na Bahia uma nação malê, controlada por muçulmanos.
— Essa revolta é as vezes superdimensionada pela historiografia porque produziu um enorme volume de documentos, e, por isso, pode ser melhor conhecida, ao contrário de outras revoltas e conspirações escravas na Bahia da época, que foram mais de 30. Algumas delas foram bem mais sérias do que a dos malês pelo número maior de africanos envolvidos, pela sua duração, por acontecerem na região dos engenhos, o Recôncavo, pelo estrago material e número de vítimas provocadas pelos rebeldes. A Revolta dos Malês, no entanto, aconteceu no coração de uma grande cidade, onde os brancos se sentiam mais protegidos do que no Recôncavo. A ousadia do ataque, a repercussão local, nacional e até internacional, além de sua dimensão religiosa, tornam esse levante sem dúvida importante — opina Reis.

Para Luciana da Cruz Brito, doutora em história pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de estudos sobre povos negros no Brasil, a escrita árabe tem lugar central na interpretação do levante. Ela explica que a religião muçulmana estava em expansão entre africanos na Bahia. Era dever dos novos devotos aprender a ler o Corão.
— Muitos revoltosos falavam e tinham a habilidade de escrever nessa língua, e, embora não seja possível precisar quantos exatamente podiam ler e escrever em árabe, havia um processo de expansão da religião na província da Bahia — conta a historiadora. — Ainda nos autos do processo, muitos acusados afirmaram não conhecer aquela língua numa tentativa de escapar das acusações e posteriores penas aplicadas ao revoltosos. A língua foi um elemento extraordinário do levante, uma vez que as autoridades locais desconheciam o árabe. Portanto, quando obrigados a traduzir para o português alguns desses documentos que continham informações importantes sobre os planos do levante, alguns suspeitos simplesmente afirmaram que não sabiam ler ou não conseguiam fazer a tradução.

Uma rebelião ‘delicada’

“Leitura, encantamento e rebelião — O Islã negro no Brasil”, tese de doutorado defendida por Priscilla Leal Mello na UFF, em 2009, examina o assunto. A historiadora estudou árabe e examinou uma série de documentos, entre eles os autos da devassa do levante e documentos árabes do Arquivo Público do Estado da Bahia, uma coleção de amuletos e orações. Em sua pesquisa ela ressalta a organização para a rebelião, da qual fizeram parte escritos corânicos e estudos em madraçais, as escolas corânicas improvisadas de Salvador e do Recôncavo baiano.

— O estudo da língua árabe surgiu por encantamento, mas também por respeito àqueles malês. Quis percorrer as escolas corânicas, como eles o fizeram. Hoje, depois de anos de estudos, trabalho com o que no momento estou chamado de delicadeza malê. Há uma delicadeza na rebelião, que é todo o preparo espiritual para o levante. O árabe é uma língua muito delicada para aprender. Ao perceber isso, comecei a tecer, muito recentemente, olhares outros sobre a escrita das orações e dos amuletos, em busca dessa delicadeza — afirma a historiadora. — Não conseguiria avaliar a participação dos que escreviam em caracteres árabes em termos numéricos ou percentuais. A documentação é muito entrecortada. Há escritos sem autores. E certamente há autores sem que tenham sobrevivido os escritos. Mas a documentação é clara acerca da relação dos revoltosos com as letras.

De acordo com a historiografia sobre o tema, a Revolta dos Malês foi fortemente reprimida. Das seis centenas de revoltosos, 73 foram mortos em enfrentamento, além de dez oponentes ao levante. Os derrotados foram condenados a penas de açoite, prisão, banimento e até morte. A partir dali, a população africana passou a ser submetida a uma vigilância e repressão abusivas.


— A repressão ao Levante dos Malês foi tão violenta que é difícil afirmar se esta revolta deixou heranças para a Bahia e para o Brasil e que possam ser facilmente percebidas. Os acusados de envolvimento foram punidos com pena capital, açoites e até mesmo deportação, em alguns casos. Portanto, qualquer sinal de envolvimento no levante e suspeita de associação com a religião muçulmana podia implicar retaliações — conta Luciana da Cruz Brito. — Dali por diante, tornou-se ainda mais importante para a população africana que vivia na Bahia se afirmar como praticante da religião católica, uma vez que as religiões vistas como práticas africanas foram duramente perseguidas. Alguns estudos afirmam que existia na época uma ligação entre o culto a Alá e a Oxalá, e que os praticantes de ambas as religiões compartilhavam a prática de se vestir de branco para reverenciar as divindades.

EPISÓDIO É REFERÊNCIA NA LUTA POR LIBERDADE

A historiadora defende a continuidade dos estudos do episódio histórico, inclusive em escolas. De acordo com ela, o levante diz muito sobre o comportamento dos escravos naquele período.

— De forma mais contemporânea, o movimento negro brasileiro vê o Levante dos Malês como referência da autonomia, poder político e luta pela liberdade dos povos africanos no Brasil, e este é um importante legado. Portanto, esta página importante da história do Brasil deveria estar presente em todos os livros do ensino fundamental e médio. Embora derrotado, o Levante dos Malês foi um episódio importante que, a longo prazo, foi enfraquecendo o sistema escravista e a noção de que povos africanos e afro-brasileiros estavam contentes com sua condição. A resistência fazia parte do seu cotidiano, e a liberdade era mais que um sonho, era um projeto, um objetivo a ser alcançado.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/revolta-dos-males-revista-em-textos-de-escravos-de-jornais-da-epoca-15015704#ixzz3ORV8cwRM 
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