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quinta-feira, 30 de abril de 2015

"Satisfaction" faz 50 anos




"Satisfaction" faz 50 anos e ainda intriga: obra-prima ou ataque machista?



Dean Goodman
Do UOL, em Los Angeles30/04/201506h00



Veja fotos raras dos Rolling Stones nas décadas de 60 e 7024 fotos10 / 24
Keith Richards e Mick Jagger posam para foto em 1965 Bob Bonis/eBay

O hino que transformou os Rolling Stones em divindades do rock completa 50 anos bem no momento em que a banda se prepara para pegar a estrada mais uma vez na América do Norte e apresentar o hit para fãs de diversas gerações cantarem juntos a cada show.

"(I Can't Get No) Satisfaction", um ataque da banda ao consumismo desenfreado, foi gravada nos Estados Unidos, em maio de 1965, lançada pouco mais de três semanas depois e rapidamente catapultada ao topo das paradas, onde ficou por quatro semanas na primeira posição.



Quando estou dirigindo meu carro / E o homem entra no rádio / Ele me diz mais e mais e mais / Sobre algumas informações inúteis / Que deveriam mover minha imaginaçãoMick Jagger e Keith Richards, versos iniciais da letra de "(I Can't Get No) Satisfaction"




A música "Satisfaction" foi não somente a primeira das nove dos Stones a liderar as paradas nos EUA mas também um sucesso mundial - a canção chegaria ao número 1 entre as mais tocadas no Brasil no ano seguinte, em 1966. Para a revista "Rolling Stone" e o canal de TV VH1, trata-se da maior canção de rock de todos os tempos.

Gene Simmons, baixista do KISS, ouviu pela primeira vez aos 15 anos, quando era ainda um imigrante israelense tentando se adaptar ao modo de vida americano em Nova York, onde vivia com sua mãe, uma húngara que sobrevivera ao Holocausto. A identificação com a canção foi imediata. "Eu já tinha ouvido Beatles e estava chapado com aquilo tudo. Já tinha ouvido algumas outras músicas do Stones antes também, mas quando 'Satisfaction' saiu fiquei paralisado", disse.


Bob Bonis/eBay
Keith Richards, que teve inspiração para riff de "Satisfaction" durante um sonhoDepois daquele riff
De fato, "Satisfaction" guardava poucas semelhanças com as músicas de blues e r&b que os Stones tinham lançado nos dois anos anteriores. Sua característica mais marcante é o riff (espécie de frase musical facilmente reconhecível) distorcido da guitarra de Keith Richards, que abre a faixa e volta a cada refrão. "Em dois segundos ouvindo, é provável que até quem não seja um grande fã dos Stones consiga reconhecer a música", afirma Ben Camp, professor assistente de composição na prestigiada Escola de Música Berklee, em Boston, que inclui "Satisfaction" em seu curso sobre os cem anos da música popular em língua inglesa.



"'Satisfaction' é o arquétipo da canção de riff", acrescenta Camp. "E riffs são uma coisa tão eficiente hoje quanto nos primórdios da música gravada, mesmo antes disso. [O riff] Permite que você prenda a atenção do ouvinte com algo diferente logo no comecinho da música."

Não tarda até que entre a voz de Mick Jagger cantando os três primeiros versos que já remetem a um tema antigo: as diferenças entre gerações e as frustrações que as acompanham. Nesse caso, jovens do pós-guerra como Jagger, então com 21 anos, desdenhando das mensagens consumistas de seus pais caretas. Jagger não quer saber de "useless information" (informações inúteis, ao pé da letra) saindo dos falantes do rádio ou das promessas do cara da televisão sobre "quão brancas minhas camisas podem ficar".

"As letras eram profundas", lembra Simmons. "Muito mais do que outras letras daquela época. As pessoas começaram a perceber que não bastava ficar só correndo atrás de um rabo de saia."

Mas é claro que, como se trata dos Stones, o verso final da canção termina, sim, com uma história de azaração, ainda que patética. O personagem da música é um rock star viajado que no fundo só quer transar com a garota. Mas ela o dispensa dizendo "Baby, melhor voltar na próxima semana, porque eu estou numa fase ruim" (em inglês "on a losing streak", expressão usada no mundo esportivo para se referir a uma sequência de derrotas em jogos). A referência à menstruação, no entanto, é inevitável, e não é difícil imaginar a cara dos adolescentes ouvindo a música na época.



Quando estou viajando ao redor do mundo / Fazendo isso e assinando aquilo / E tentando pegar alguma garota / Que me diz 'Baby, é melhor você voltar, talvez, na próxima semana / Porque eu estou numa fase ruimMick Jagger e Keith Richards, tradução de trecho final de "(I Can't Get No) Satisfaction", dos Rolling Stones




Há quem enxergue em "Satisfaction" um reconhecimento involuntário do poder feminino por parte de Jagger - o mesmo que um ano depois seria acusado de misoginia pelas faixas "Under My Thumb" e "Stupid Girl".

Uma pesquisadora da Universidade de Virginia, em Charlottesville, porém, classifica a faixa como o típico exemplo de "cock rock" (subgênero musical dos EUA conhecido por letras e atitudes machistas em relação à mulher). Para Stephanie Doktor, que defendeu uma tese de mestrado sobre inúmeras versões de "Satisfaction", cantadas por artistas masculinos e femininos, a música "contém todos os ingredientes" de "machismo e sexualidade agressiva".


AP/Rock and Roll Hall of Fame and Museum, Bob Bonis
Aos 21 anos, Mick Jagger grava nos estúdios da RCA, em foto de 1965Como nasceu o hit
Pensamentos assim provavelmente nunca passaram pelas cabeças de Jagger e Richards quando compuseram a música. Na verdade, "Satisfaction" chegou bem perto de nem existir. Richards teve a ideia inicial da música num sonho, acordou rapidamente para cantar a melodia em um gravador de fita K7 e logo voltou a dormir, aos roncos, esquecendo de desligar o gravador. Nem ele, nem Jagger, que escreveu a maior parte da letra, ficaram muito entusiasmados com as possibilidades da música, inicialmente imaginada como uma faixa mais folk do álbum.



Os Rolling Stones começaram a gravar "Satisfaction" no estúdio Chess, em Chicago, em 10 de maio. Esse estúdio, no lado barra pesada da cidade, era sagrado para os jovens ingleses, por ter sido a casa de seus heróis como Chuck Berry, Howlin' Wolf e Muddy Waters. Foi uma faixa de Berry ("Thirty Days"), aliás, que inspirou o verso "I can't get no satisfaction" - gramaticalmente ambíguo, já que pode significar tanto "Eu não consigo ficar satisfeito" ou "Eu não consigo não ficar satisfeito".

Quando chegaram ao estúdio, os Stones tinham só uma versão acústica da faixa, com Brian Jones tocando gaita. Dois dias depois, agora no estúdio da RCA, em Hollywood, começaram os novos trabalhos em "Satisfaction". Paradoxalmente, foi uma pessoa de fora da banda que teve papel fundamental no desenvolvimento da música.

Jack Nitzsche, compositor e arranjador da RCA, tinha trabalhado com um guitarrista profissional chamado Billy Strange, que plugou sua guitarra em um pedal de efeitos então obscuro chamado Fuzz-Tone. A sonoridade do pedal havia sido pensada para aproximar o som da guitarra ao de um instrumento de metal como trompete ou tuba. Foi Nitzsche quem apresentou o Fuzz-Tone a Richards - e assim se fez história. Os pedais Fuzz-Tone rapidamente sumiram das prateleiras de lojas de instrumentos musicais depois que "Satisfaction" foi lançada.

Nitzsche, a propósito, acrescentou outros ingredientes indispensáveis à música - é ele que se ouve batucando um pandeiro e tocando um piano praticamente inaudível na faixa original.

"O piano dele é tão brilhante que, na maioria dos aparelhos de som, você sequer consegue ouvir, mas se não estivesse lá...", comenta Andrew Loog Oldham, empresário e produtor da banda. Ele lembra ainda que depois de gravado esse piano, ficou "fácil" para os Stones continuarem a gravação e completarem a música. Depois que o trabalho todo estava pronto, coube a Oldham e ao arranjador Dave Hassinger transformarem a faixa no hino que todos nós conhecemos e aprendemos a amar.

Avançamos 36 anos no tempo, para 2001, e Jagger está caminhando pelas ruas de Miami quando uma garota de 9 anos educadamente se aproxima. Se tem uma coisa que ela sabe sobre os Rolling Stones é "Satisfaction". Ou melhor, a versão recente que Britney Spears havia feito da música, com algumas adaptações na letra. Os dois concordam que a nova versão ficou muito boa. A garotinha, hoje com seus 23 anos, já tem idade suficiente para conferir a versão de verdade, que provavelmente será tocada em um estádio de time de futebol americano mais próximo dela na nova turnê dos Stones. Satisfação garantida.

http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2015/04/30/satisfaction-faz-50-anos-e-ainda-intriga-machismo-ou-obra-prima-do-rock.htm



domingo, 26 de abril de 2015

Antônio Henrique do Amaral (São Paulo, 24 de agosto de 1935 - São Paulo, 24 de abril de 2015)




"Em entrevistas e depoimentos, Antonio Henrique antecipa-se à crítica. É tomado de uma urgência de compreensão especialmente quando sua obra passa por mudanças evidentes. Quer entender os saltos que acontecem na pintura e os sobressaltos da vida, compreender para si mesmo e se fazer compreendido. A reflexão não se restringe a ruminar o contingente, visa esclarecer a condição existencial do seu fazer artístico. Para tanto, analisa, divide, corta, para depois se mostrar refeito perante o outro...

...Sua história começa em São Paulo. "Na minha casa era tudo verbal, conta ele. Palavras, palavras, muitas palavras e livros, muitos livros, discussões, conversas e um clima de inquietação política e idéias em geral, mas nada que me induzisse particularmente à arte. O desenho era coisa íntima, um mundo só meu ".

(Trecho de "Verso e Reverso da Figura ", Maria Alice Milliet, no livro
Antonio Henrique Amaral - Obra em Processo, 1997 )

“bananas”








O espírito da obra é um pouco isso mesmo. Como escreveu o filosofo e brilhante pensador Vilém Flusser, em um ensaio escrito em 1974 depois de uma visita ao meu estúdio em Nova York, é uma reflexão visual sobre o sadomasoquismo da realidade brasileira, da relação sadomasoquista entre autoridade e povo.


Antonio Henrique Amaral
Jardel Dias Cavalcanti

ENTREVISTAS 

Segunda-feira, 10/1/2011





Através do artista plástico paulistano Sergio Niculitcheffconseguimos marcar uma entrevista com Antonio Henrique Amaral. Participaram do encontro, além de mim, o artista Marcos Ribeiro,Décia Foster (que no momento pesquisava a arte política de Amaral) e o próprio Niculitcheff. A entrevista foi gravada e transcrita por mim. O que se publica aqui é apenas uma parte da agradável e longa conversa que se deu no atelier do artista, no Butantã, em São Paulo, em outubro de 2009 e, em seguida, por e-mail, em novembro de 2010. A entrevista é inédita.

Antonio Henrique Amaral relembra e explica algumas de suas obras políticas, feitas no período militar, como, por exemplo, seus trabalhos sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Debate também questões sobre a arte contemporânea, avalia artistas e carreiras artísticas, como a de Hélio Oiticica, pensa ainda o governo Lula e reflete sobre os processos que envolvem a criação em arte. ― JDC

Décia: Durante o período em que o sr. fez obras de caráter político, com o objetivo de criticar e debochar da ditadura, houve algum momento em que se sentiu ameaçado ou afrontado?

Na verdade, não. Mas houve dois episódios, um no qual uma obra minha foi retirada da Bienal da Bahia, foi censurada, e depois em 1971, quando fui convidado para expor em Washington, na Galeria da União Panamericana, no prédio da OEA. O adido militar brasileiro que estava no dia da inauguração, General Montanha, me perguntou o que eu queria dizer com aquelas bananas, pois só tinha bananas na exposição. Aí eu tive que enrolar, dizendo que era apenas uma pesquisa formal; tergiversei, pois não podia dizer que eu fiz isso porque eu achava que o Brasil estava se transformando numaBanana Republic... Mas, enfim, senti que ele não ficou muito à vontade com a exposição.

Jardel: Isso ainda no período militar?

Sim, isso no período militar, 1971. Aí eu fui para Londres e inaugurei uma exposição onde aluguei macacos, e na inauguração foi servido coquetel de banana, caipirinha de banana e havia macaquinhos vestidos de verde e amarelo, que ficavam pulando no ombro das pessoas. Foi um sucesso. Mas não houve ameaça pessoal. Porque os militares estavam mais preocupados com a música popular, que atinge mais público. Teatro também. Eles estavam invocados com o teatro e o cinema, essas manifestações de massa. Porque as artes plásticas, a gente sabe, é para um público muito pequeno e, de certa forma, inofensivo politicamente... E outra coisa: quando eu expus a série de bananas, os jornais e a crítica falaram muito; então eles deitavam e rolavam em cima dos meus trabalhos, porque era uma maneira de, indiretamente, fazer uma crítica, uma sátira, uma zombaria do governo militar, dessa autoridade opressiva. E é difícil o cara se expor ao ridículo censurando uma exposição de bananas. Então, o recado passava.

Jardel: Quer dizer, então, que com as bananas o seu interesse era comentar a ditadura?

Sim, comentar a Banana Republic que os militares estavam construindo aqui no Brasil, e também aprender a pintar, sempre aprendendo a pintar, desenhar...

Jardel: A narrativa, da banana, estava pronta na cabeça do senhor primeiro sendo amarrada, até, em seguida, ela ser esquartejada?

Essa ideia da banana me surgiu depois das bocas e das xilogravuras dos Generais de 1964, 65... Eu pintava as bocas antes. Os Generaisjá tinham uma abordagem sarcástica com as línguas, com os generais montados em burros ao contrário, tudo isso com as xilogravuras. Agora, quando eu vi a montagem da peça do Zé Celso Martinez, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, aí foi uma revelação para mim, aquele espírito oswaldiano de deboche, de ironia, sarcasmo, de O Rei da Vela, que era um texto muito crítico da nossa realidade, do provincianismo de nossas elites, do atraso cultural de nosso povo em relação ao resto do mundo ocidental, da cópia descarada das modas francesa, americana, europeia. Então eu pensei: por que não as bananas? E a primeira exposição causou muito impacto, pois só tinha banana. "Como? Só banana?" Eu queria deixar bem explícito o que eu estava fazendo, deixar bem claro o comentário, entende? Então era só banana mesmo.

Jardel: Essa série da banana que está amarrada, depois destruída, isso parece o calvário de um preso político que é preso, amarrado, pendurado e depois torturado.

O espírito da obra é um pouco isso mesmo. Como escreveu o filosofo e brilhante pensador Vilém Flusser, em um ensaio escrito em 1974 depois de uma visita ao meu estúdio em Nova York, é uma reflexão visual sobre o sadomasoquismo da realidade brasileira, da relação sadomasoquista entre autoridade e povo. Porque os militares achavam que a gente era idiota, que todos nós éramos idiotas e que eles é que tinham a verdade e sabiam o que fazer, e os civis, os trabalhadores, estudantes e os artistas eram todos inúteis e babacas, pessoas que deveriam ser silenciadas, amordaçadas, controladas e, se necessário, torturadas para não atrapalhar a marcha da ditadura... Aí, quando cheguei aos EUA, comecei a série dos Campos de Batalha. Foi uma forma de eu superar a fase das bananas, encerrar essa etapa de meu trabalho das bananas. A banana começava verde, inteira, depois sendo amarrada, cortada em pedaços e depois entraram os garfos e as facas. E eu pensei: eu não quero me encaixotar num tema.

O problema do artista é que muitas vezes tem sucesso numa determinada fase do seu trabalho e fica escravo daquela fase e não consegue sair. Di Cavalcanti pintou mulatas até o fim da vida. Eu falei: não vou entrar nessa, ficar encaixotado num período. Estou há trinta anos fazendo outras coisas. Inclusive, eu acho os outros caminhos muito mais ricos, porque é uma aventura muito mais perigosa. Você começa um trabalho como este aí e não sabe para onde vai [Antonio Henrique aponta para suas novas telas abstratas, ainda por terminar, no fundo do atelier.]

Sergio Niculitcheff: A coisa interessante do artista é isso, é o risco, cada novo trabalho é um novo risco, não é uma coisa pronta, cada trabalho é uma coisa nova.

Você só o vê quando termina. Picasso dizia que, se ele tivesse o quadro pronto na cabeça, ele nem pintava. Para que pintar se ele já está pronto na minha cabeça? Ele só vai ficar pronto depois de executado. Agora, a série das bananas foi construída, friamente calculada, eu desenhava as cordas, as bananas com cordas, eu as colocava na minha frente, amarrava com barbante e depois desenhava, fotografava, pintava...

Marcos Ribeiro: Sua obra foi marcada pelo surrealismotambém?

Eu acho que às vezes há uma conotação surrealista no sentido de que havia fantasia, não era inteiramente realista como estava na moda em Nova York, fotorrealismo. Não tenho muita preocupação de coerência estética ou teórica, nem temática, nem formal. A liberdade de ser e de não ser, de mudar, de se contradizer, de se aceitar com todas as incoerências do ser humano é um bem que o artista tem que preservar; seu espaço poder mudar a qualquer momento, de acordo com a solicitação interior. Mudar porque seu movimento interior exige que você mude. Baudelaire dizia que a obra de arte é determinada por dois fatores: um mais circunstancial, a Época, a Moda, a Moral, a Paixão. E outro mais eterno, pela Busca Interior do homem para achar respostas para as questões fundamentais do ser humano: quem somos, de onde viemos, para onde vamos e o que fazemos aqui e por quê... O que significa tudo isto, a vida, o Universo... Não é, Sérgio?

Sergio Niculitheff: Por uma necessidade interior, não é?

Por uma necessidade interior, espiritual. Porque é uma necessidade sua... Eu recusei muitos convites para exposições quando terminei a fase das bananas. Recusei, porque não pintava mais as bananas... A busca era outra... Chega uma hora em que a razão de ser de alguma coisa se encerra, outras coisas, outras buscas se impõem. Quando uma coisa morre, outra coisa nasce.

Jardel: Uma coisa que eu queria saber é se havia por parte do sr. um engajamento, leituras marxistas, partidarismo etc.

Não, nenhum. Nunca fui marxista, socialista ou esquerdista... Era, sim, contra a Ditadura Militar Brasileira. O Mário Pedrosa uma vez me perguntou por que eu não era comunista. Ele e o Ferreira Gullarna época eram comunistas. Eu não era comunista; para mim, ser membro do Partido Comunista é como ser encerrado dentro de uma casa, e eu prefiro andar na rua. Eu quero ver a paisagem, eu quero ver o que está acontecendo na rua. Não quero ficar dentro de um quadro partidário e pautar minha vida de acordo com princípios partidários, teóricos, fixos, rígidos e divididos de socialismo, capitalismo, elite, povo, esquerda, direita. A coisa é muito mais complicada, mais complexa. Eu não me enquadro nisso, falei para o Mário Pedrosa. Ele dizia: "Mas você devia ser comunista". Nos anos 70 era bacana ser comunista. O Niemeyer, até hoje, o Jorge Amado, Picasso, era bacana você ser comunista. E mais ainda se você fosse elite cultural, social...

Jardel: Havia também uma patrulha que exigia que as pessoas se filiassem.

É, tinha isso. Agora, veja bem, o Gullar, por exemplo, é um homem que eu admiro porque teve a coragem de romper com tudo isso. Rompeu com o socialismo, o comunismo, chegou um momento em que ele disse: "isso não é exatamente o que eu acredito hoje em dia". Então, ele renovou, ele mudou. Durante uma época você é comunista, depois de uma reflexão você percebe que aquilo não funciona. Ele teve a coragem de mudar.

Todos nós erramos, mesmo diante desses fatos recentes. Mas quem não tem acesso à informação erra mais porque sabe menos. Se você não tem informação, não tem o mínimo de cultura, de experiência administrativa, você vai errar mais e vai ser usado por políticos espertalhões que sabem como se maneja o poder. Foi o que aconteceu com o Lula e o PT, no episódio do Mensalão... Socialmente, o fato de ter desenvolvido o Bolsa Família e propiciar mais alimento e mais consumo pra uma considerável parcela da população brasileira é positivo, foi um passo adiante: Lula de certa maneira veio harmonizar o Sul com o Norte, os ricos banqueiros com o povão necessitado, sem criar atritos sociais muito fortes... Quase não houve greves nem conflitos nos últimos anos, com exceção dos cidadãos comendo e consumindo mais... Isso é o lado positivo, muito positivo para o desenvolvimento econômico do país... se será um fator de evolução de nossa qualidade de vida, temos que esperar para ver...

Décia: E com todos esses acontecimentos o sr. não tem vontade de voltar a trabalhar com temas políticos?

Não tenho saco (risos). Outra vez, fazer comentários políticos?! Eu fazia nas ilustrações que são bastante mordazes [Antonio Henrique ilustrava a coluna dominical de Ferreira Gullar, no jornal Folha de São Paulo.] Uma das últimas que fiz, por exemplo, é o Lula no meio de notas de dólares, de cruzeiros e reais. Eu penso, mas a arte... a política... é um aspecto da vida, mas não é tudo, nós temos outras preocupações que transcendem a realidade política.

Sergio Niculitcheff: Inclusive, eu queria comentar uma coisa sobre a série das bananas, que é importante por causa da ditadura, mas independente disso tudo é uma excelente pintura, o valor não é somente por causa do tema.

Eu aprendi a pintar através das bananas. Quando eu conheci aTarsila [do Amaral], em 1970, ela já estava velhinha, numa cadeira de rodas, foi na rua Augusta, numa galeria, e ela me disse: "interessante sua forma de aprender a pintar usando a banana". É pintura, claro... Interessante o que você falou. É sempre pintura, é sempre um exercício de pintura.

Jardel: Vamos voltar aos anos 70. Por exemplo, o caso Herzog. Como foi a notícia da morte dele e esses seus quadros sobre ele?

A notícia da morte dele... eu me lembro até hoje, foi manchete em todos os jornais... O Herzog era um cara que frequentava as galerias de arte, ia às inaugurações de exposições, ele e a mulher dele, a Clarice. Era um cara de trinta e poucos anos, jovem, diretor de jornalismo da TV Cultura. E de repente ele vai depor, todo mundo sabia que ele ia depor, e no dia seguinte aparece a notícia da morte dele. Foi um choque, saiu no Estadão em página inteira, no Jornal da Tarde. Sob esse impacto eu resolvi pintar quatro quadros que eram A Morte no Sábado ― Tributo à morte de Vladimir Herzog. O fato de os militares matarem uma pessoa dessa qualidade humana, cultural, foi um choque, e o cinismo brutal de tentar afirmar que tinha sido suicídio...! Um horror!

Jardel: Houve censura aos quadros nessa época ou não?

Não foram imediatamente expostos. Quando completou um ano da morte dele eu os doei para o Sindicato dos Jornalistas. Depois começaram a serem expostos em exposições.

Jardel: Mas o povo não tinha acesso...

Não tinha. O povo sempre teve pouco acesso à cultura, o povo sempre teve muito acesso ao futebol, às noticias sobre futebol, com o apoio de toda a elite política que se protege à sombra do noticiário futebolístico... O fato de a gente fazer coisas que não são imediatas, que não são claras, exige que as pessoas pensem, se informem, sintam, abram a cabeça. É o papel civilizador da arte. Música popular é de consumo imediato, o cara não precisa pensar, a letra entra, sai. Claro que tem compositores como Chico Buarque,Caetano Veloso, Gil, Vinicius, Tom Jobim e tantos outros que fazem musica para a pessoa ficar mais alerta. Mas, em geral, o povo brasileiro gosta mesmo é de música que entra por um ouvido e sai pelo outro...! "Eguinha Pocotó" e coisas do gênero...!

Décia: A fase das bananas foi mais zombando, mas o caso Herzog foi um grande impacto que o fez expressar seu sentimento de revolta?

Exatamente. Porque houve outras mortes. Mas foi emblemática a morte de Herzog. Também o caso do filho da Zuzu Angel, o caso doPaiva, que foi jogado do avião... Como o Herzog era um jornalista da TV Cultura, tinha uma projeção maior do que o Paiva, que era um ativista. No fundo essa obra vale para todos os mortos, vítimas da violência da ditadura militar.

Marcos Ribeiro: O Ferreira Gullar tem uma visão particular sobre a arte contemporânea. Você concorda com ele ou gosta de alguns modelos de arte que se pratica hoje?

O Gullar é radicalmente contra uma série de coisas... Ele acha isso e aquilo um desastre. Eu sou mais tolerante. Mesmo que eu não entenda (risos). Mesmo que eu não compartilhe. Muita gente curte, portanto, deve-se aceitar muita coisa nova que vem com as novas gerações...

Jardel: E o que acha dessa coisa nos anos 60 e 70, por exemplo, dos objetos, fim do suporte, aquela coisa toda?

Isso mexia com a gente, porque nos anos 60 havia a performance, a arte conceitual. Eu cheguei a Nova York e isso estava muito na moda, a body art, Beuys, a influência de Marcel Duchamp. Eu fui a uma performance, do Vito Acconci, era uma dentro de um loft, alguns convidados em volta e ele se açoitando, entendeu? (risos). Tinha gente sangrando ali no meio. Tinha aquele alemão que se mutilou. Isso era a body art, performance. Ele acreditava; é um artista muito considerado na Europa.

Eu acho que a arte é coisa de vida, vital. Tem que se trabalhar para o ser humano de alguma maneira... Ninguém quer destruir nada. Eles fazem isso achando que estão construindo... Minha maneira de construir, a maneira do Niculitcheff, é outra. É o trabalho do pintor, do desenho... Se é antiga ou não... A gente nunca sabe o que é melhor... Para mim são achados inteligentes. Agora, se o achado inteligente é arte, e se é boa arte, só o tempo vai dizer. O que vai sobrar disso? Só vamos saber com o tempo. Pesquisar novas formas de se expressar é sempre positivo.

Sergio Niculitcheff: É uma coisa que só o tempo vai peneirar mesmo. Na minha época havia vários artistas que foram fazer outra coisa da vida.

Décia: Depois, o que fica?

O Gullar é o único que tem coragem, com razão ou sem razão, de se opor a isso. De refletir e expor sua posição contrária a determinadas instalações bizarras... Por isso é admirado por uns e odiado por outros.

Todos: Odiado pela maioria...

A maioria acha que ele é reacionário. Ele está tendo coragem de expressar a opinião dele. Ele está sendo honesto com o que acredita. Eu admiro isso nele. Mas as opiniões dele são as dele...

Marcos Ribeiro: Ele está questionando a gratuidade contemporânea...

A gente não sabe o que é modismo, o que é mercado, e o que permanece, o que tem mais consistência... só o tempo vai peneirar. Certas linguagens atuais me são completamente indiferentes, não me dizem nada, não me sensibilizam... Talvez seja uma deficiência de minha capacidade de percepção ou a coisa realmente não estar bem proposta... Vai saber... um dia o tempo nos dirá. Talvez estejamos sendo superados pelas novas tendências hegemônicas, quem sabe a gente vai envelhecendo e perdendo a sintonia com as novas linguagens, pode ser... Sempre acontece isso nas gerações que se sucedem umas às outras. Sou e assumo que sou um artista que fez sua obra no século passado, no século XX. Como estamos no século XXI, vai saber...!

Sergio Niculitcheff: A gente tem um gosto, ele tem o seu... Mas independente da questão de gosto, acho legal que as pessoas estejam fazendo arte.

Com certeza, as pessoas têm é que se expressar. Essa "falta de respeito" às formas tradicionais é fundamental. Se a gente fosse fazer apenas o que é tradicionalmente aceito não haveria transformação e as linguagens se repetiriam... seria uma chatice!

Sergio Niculitcheff: Como a gente vê a coisa agora... já esfriou. Mas, na época...

Na época, fazer uma banana de dois metros amarrada e cortada por uma faca e espetada por um garfo, sangrando... O que é isso? Foi uma novidade, no seu contexto, hoje estamos em novo contexto...

A época hoje é complicada, pois estamos passando por uma rapidez tão grande em termos de transformações tecnológicas, e a arte procurando se entender com esta nova realidade... A tentativa de fazer vídeo-arte, arte cinética... Não, cinética, não, isso é passado, a arte eletrônica, com circuitos eletrônicos, computer art, internet...

Todo mundo decreta o fim da pintura e de repente aparece a pintura chinesa, a pintura italiana, a pintura alemã, os novos expressionistas alemães nos anos 80 e 90... A pintura estava morta nos anos 70, diziam que, com a arte conceitual e a performance, estava morta.

Houve uma performance nos EUA que a inauguração era o artista falando, aí o comprador... o que fazia? Comprava a conversa do cara (risos). A galeria vendia uma hora de conversa com o artista por 10 ou 20 mil dólares. O sujeito comprava e guardava a fita da conversa com aquele artista conhecido que saiu no New York Times.

Sergio Niculitcheff: Tem essa coisa de aceitar as várias linguagens, mas a questão do gosto deve ser colocada também. Tem coisas que eu reconheço que é arte, mas de que não gosto. Agora, a Bienal eu acho uma bomba. Vou ver apenas o que me interessa mais.

Eu não consigo me comunicar com muita coisa. Por exemplo, não tenho o menor interesse nos parangolés do Hélio Oiticica (risos). Não me dizem nada...

Então, como você falou, tem que saber qual é o seu gosto. No fundo, isso te remete a um autoconhecimento. Você deve saber, diante da multiplicidade da vida contemporânea, onde você se encaixa, "qual é a sua", qual é o seu caminho, onde você está, quem você é, dentro dessa balburdia da vida contemporânea, dos diversos caminhos que se abrem profissionalmente, socialmente, emocionalmente. A gente tem que ser honesto com o que a gente é. Não pensar só com a cabeça, sentir... Sentir com a emoção. A coisa te toca? Emociona? Ou é apenas um discurso teórico cheio de palavras eruditas que "explicam" o objeto em questão?

Sergio Niculitcheff: Porque o trabalho do Oiticica deve servir para algumas pessoas. Tem seus nichos, seus espaços.

Interessante no Hélio é sua atitude de subversão dos meios. Mas sabe essa coisa de "Seja Marginal, Seja Herói", esse culto ao traficante de drogas, Cara de Cavalo, já teve seu tempo, não pega bem hoje. Talvez esse romantismo seja muito datado, anos 60, 70 ... Já era, não durou muito. Não me diz nada essa abordagem de cultuar o traficante, o marginal, tem apenas interesse histórico e os objetos interessam a colecionadores que desejam ter obras do período, mas... Há atitudes mais dignas e criativas no mundo da subversão da forma, da linguagem.

Jardel: É uma coragem falar assim sobre o Oiticica, que é quase mistificado no Brasil. Falar: "Eu gosto disso do Oiticica ou eu não gosto daquilo".

Sou apenas um pintor, desenhista e gravador. O universo do Hélio, embora eu tenha consciência de que ele é importante para muita gente que admira suas coisas e o tem como um grande ídolo, não me toca muito, não. Procuro ser honesto comigo mesmo e com minha sensibilidade. As teorias estéticas estão para mim assim como a ornitologia está para os pássaros, como dizia o pintor americano Barnett Newman.

Jardel: Quando fala isso, as pessoas se incomodam, pois é o santo deles.

Mas acontece que não sou muito religioso e, como sabemos, muitos santos e todos os ídolos têm pés de barro ou são apenas santos do pau oco...

Marcos Ribeiro: Em arte temos que investigar...

A gente tem que refletir sobre essas coisas. A gente reflete sempre. No fundo, o sentimento da gente tem que ser de perplexidade permanente. O meu, por exemplo, é: perplexidade com o mundo à minha volta e perplexidade comigo mesmo, porque me surpreendo a cada dia com meus pensamentos, sentimentos e comportamentos, pois não me acostumo comigo mesmo e nem com os outros, porque as coisas mudam muito rapidamente, o tempo passa muito rápido, as coisas se transformam numa velocidade muito grande. Isso torna a vida muito interessante. Complicada, mas interessante.

É muito arriscado você dizer que isso é bom ou ruim em arte, eu acho. Certas obras e artistas não fazem a minha cabeça, eu prefiro outra confusão, outra desordem; para mim, a desordem do ser humano é mais bem expressa em obras menos intelectuais, menos cerebrais, mais confusas, mais surreais e contraditórias. Nossa cabeça e nossas emoções são muito mais loucas do que as cuidadosas construções dos geométricos e concretos e neoconcretos... A contradição, a confusão e a incoerência são muito mais as marcas do ser humano do que a ordem e a geometria, ou melhor, um mix de loucura e de geometria caracteriza a contradição humana.

Porque essa coisa muito ordenada, muito asséptica, é interessante, elegante, decorativa... Mas, enfim, você não pode ter um julgamento de valor. Deve estar aberto para absorver aquilo que te interessa e repudiar o que não faz sua cabeça. Sem julgamentos, com emoção, mas sem prepotência ou certezas, pois no mundo das artes, e das emoções humanas, nada é certo nem definitivo, muito pelo contrário, tudo é precário e temporário... Tudo é muito incerto e passageiro...

Sergio Niculitcheff: Na História da Arte mesmo tem artistas famosos que não me interessam. Eu reconheço seus valores, mas não gosto. Por exemplo, o Vlaminck. Eu não consigo engolir.

Renoir, Degas são meio chatos... Eu reconheço que são pintores importantes na história da arte, mas...

Marcos Ribeiro: E Picasso, você gosta?

Sim... Picasso é unanimidade, não? Picasso é o pai de muita gente.

Jardel: Picasso rompia sempre...

Ele foi um artista em incessante movimento. Ele tinha coragem de romper e sempre ser honesto com ele até o fim da vida.

Sergio Niculitcheff: Os últimos trabalhos dele dão de dez em muitos trabalhos contemporâneos.

Ele tinha uma liberdade, uma energia, uma vida interior, seja de ordem emotiva, sexual, intelectual, desde a fase do Cubismo, que era mais espiritual, intelectual, até esta parte mais sensual, das gravuras, das suítes Vollard. Ele se põe ali dentro como um velhovoyeur, a dirty old man... Ele era profundamente honesto e íntegro. Alguém vem dizer que ele era um palhaço, um ganhador de dinheiro, isso ele era também. Nós somos feitos de muitas almas... ninguém é completamente íntegro e coerente. Ser coerente é aceitar a sua incoerência e a alheia e não exigir de si nem do próximo uma coerência falsa...!

Sergio Niculitecheff: O interessante é que ele se colocava no seu trabalho, colocava tudo isso no trabalho dele.

E ele tinha essa coragem de mudar, não se classificar, se autodefinir... Ora era figurativo, ora era cubista ou ceramista, ou gravador, mas sempre com muita energia e sinceridade. Agora, você veja, nós estamos falando dentro de nosso contexto, de nossa situação de São Paulo. Você vê: coloca uma obra de Picasso na periferia de uma cidadezinha do interior... eles não vão decodificar a linguagem picassiana... Não conhecem. Já o bom grafite é outra coisa. Aquilo abre as portas para muita gente começar a pintar, aprender, e ir para outra. O que faria o Basquiat aos 50 anos?? Porque ele morreu aos vinte e poucos. O Leonilson conseguiu fazer uma obra extremamente pessoal, o que não é pouca coisa...! Você ser pessoal e original é uma vitória, é muito difícil... Fazer um trabalho original, pessoal, é uma grande e difícil conquista.

Sergio Niculitcheff: O que é mais difícil... porque o resto você consegue administrar tecnicamente. Mas "se colocar no trabalho" é a parte mais difícil.

O artista tem que se colocar mesmo, e essa é a marca da originalidade. Na maneira de você trabalhar não apenas tematicamente, mas no gesto, na forma, na textura, nos materiais, nos meios escolhidos, sejam eles quais forem... Isso dá o caráter pessoal, sua assinatura. Se isso vai contribuir ou não para a arte universal, a gente não sabe, e não tem a mínima importância saber. Se vai morrer com a gente ou se vai permanecer, não é nosso assunto...

Jardel: O que vale mesmo é a aventura.

A aventura, enquanto você está vivo, fazendo aquilo e sendo honesto com o trabalho que está fazendo. Você tem que fazer seu trabalho como se fosse para sempre com toda integridade... estar sempre "inteiro na jogada".

Sergio Niculitcheff: Mas existem estes artistas que fazem as coisas só para venderem mesmo, tipo Romero Brito. Porque tem mercado e o mercado faz aquela pressão... E o cara "supre" aquele consumidor que só quer isso.

Romero Brito é um caso de sucesso eminentemente comercial. Ele desenvolveu uma fórmula pessoal de fazer suas coisas, bebeu em várias fontes, fez, deu certo comercialmente, trabalhos manuais bem feitinhos, objetos de decoração que têm inegável sucesso comercial, junto a um público bem específico... Se é isso que ele quer, tudo bem.

Sergio Niculitcheff: Ele atingiu os objetivos dele.

O Brasil é e sempre foi um país atrasado em relação ao resto do mundo ocidental. E nos anos 40, em plena guerra, Picasso já tinha pintado a Guernica, o cubismo, Les Demoiselles d'Avignon, oExpressionismo Abstrato da Escola de Nova York estava a todo vapor, Pollock, Motherwell, Rothko trabalhavam, e o pessoal daqui fazendo estripulias bem comportadas na Semana de Arte Moderna de 22, e casinhas, paisagens, marinhas agradáveis, retratos...

Há uma distância cultural imensa, porque o maravilhoso e vertiginoso século XX já tinha começado na Europa, Estados Unidos,México... Você tem que partir sempre de sua experiência pessoal, de seu ambiente imediato, mas saber o que está acontecendo no resto do mundo é fundamental... Isso sempre enriquece sua experiência pessoal, não para substituí-la, mas para enriquecer sua experiência de viver e trabalhar...

Para ir além
Site de Antonio Henrique Amaral 

http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=41&titulo=Antonio_Henrique_Amaral

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Eduardo Galeano (3 September 1940 – 13 April 2015) RIP

Muere el escritor uruguayo Eduardo Galeano a los 74 años

http://cultura.elpais.com/cultura/2015/04/13/actualidad/1428928171_482353.html



Eduardo Galeano

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“Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças.”

Eduardo Galeano

O diagnóstico e a terapêutica

Helena Murphy
O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um
reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos,
despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos
febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes. O
amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por
descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode
impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de
alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e
ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção
capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis
beberagens com garantia e tudo.
(do Livro dos Abraços, Eduardo Galeano)
Karina

Eduardo Galeano

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De nuestros miedos
nacen nuestros corajes
y en nuestras dudas
viven nuestras certezas.
Los sueños anuncian
otra realidad posible
y los delirios otra razón.
En los extravios
nos esperan hallazgos,
porque es preciso perderse
para volver a encontrarse.

(Eduardo Galeano)


Karina

Dia da Mulher

A todas as leitoras do blog desejamos que continuem suavizando o mundo com doçura e tolerância.
Abaixo trechos do escritor Eduardo Galeano, que no livro “Mulheres” traz seu olhar sobre a alma feminina.

Janela sobre uma mulher/1
 Di Cavalcanti Mulheres Facetadas
Essa mulher é uma casa secreta.
Em seus cantos, guarda vozes e esconde fantasmas.
Nas noites de inverno, jorra fumaça.
Quem entra nela, dizem, não sai nunca mais.
Eu atravesso o fosso profundo que a rodeia. Nessa casa serei habitado. Nela me espera o vinho que me beberá. Muito suavemente bato na porta, e espero.
 /
Janela sobre uma mulher/2
picasso[1]
A outra chave não gira na porta da rua.
A outra voz, cômica, desafinada, não canta no chuveiro.
No chão do banheiro não há marcas de outros pés molhados.
Nenhum cheiro quente vem da cozinha.
Uma maçã meio comida, marcada por outros dentes, começa a apodrecer em cima da mesa.
Um cigarro meio fumado, lagarta de cinza morta, tinge a beira do cinzeiro.
Uma água suja chove dentro de mim.
 /
Janela sobre uma mulher/3
 chagall
Ninguém conseguirá matar aquele tempo, ninguém vai conseguir jamais: nem nós. Digo: enquanto você existir, onde quer que esteja, ou enquanto eu existir.
Diz o almanaque que aquele tempo, aquele pequeno tempo, já não existe; mas nesta noite meu corpo nu está transpirando você.

Karina

Para inventar o mundo cada dia


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Conversamos, comemos, fumamos, caminhamos, trabalhamos juntos, maneiras de fazer o amor sem entrar-se, e os corpos vão se chamando enquanto viaja o dia rumo à noite.
Escutamos a passagem do último trem. Badaladas no sino da igreja.. É meia-noite.
Nosso trenzinho próprio desliza e voa, anda que te anda pelos ares e pelos mundos, e depois vem a manhã e o aroma anuncia o café saboroso, fumegante, recém-feito. De sua cara sai uma luz limpa e seu corpo cheira a molhadezas.
Começa o dia.
Contamos as horas que nos separam da noite que vem. Então, faremos o amor, o tristecídio.

(Eduardo Galeano in Mulheres)

Karina

O Mundo

O mundo
 
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo é isso — revelou —. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
Eduardo Galeano



Karina

A Cultura do Terror

“O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano, é fonte de inesgotável aprendizado. Abaixo, segue mais um trecho muito interessante para reflexão do leitor.
A cultura do terror
A extorsão, o insulto, a ameaça
o cascudo,
a bofetada,
a surra,
o açoite,
o quarto escuro,
a ducha gelada,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa,
a proibição de fazer o que se sente,
e a humilhação pública
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo.
— Os direitos humanos deveriam começar em casa — comenta comigo, no Chile, Andrés Domínguez.
Telma

Celebração da amizade

Em post anterior, já fizemos referência e deferência ao grande escritor uruguaio Eduardo Galeano. Abaixo, trazemos uma espetacular crônica sua, extraída da maravilhosa obra “O Livro dos Abraços”. Apreciem.
Celebração da amizade
Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam à manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque. Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, Senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou…
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação. Depois de um longo silêncio, ela disse:
— Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende…
— Meu filho morreu — repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade…
— Cretinos — fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
— Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calçadas, propuseram:
— Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:
— Ah!, não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
— Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?
Telma

Excertos de Eduardo Galeano

Eduardo Hugues Galeano, jornalista e escritor,  nasceu em 1940, em Montevidéu  e é  mundialmente reconhecido por suas obras jornalísticas e literárias .
Dentre seus mais consagrados livros estão: De pernas pro ar, Dias e noites de amor e de guerra, Futebol ao sol e à sombra, O livro dos abraços, Memória do fogo, Mulheres, As palavras andantes, Vagamundo e As veias abertas da América Latina.
A seguir, colacionamos dois excertos que demonstram cabalmente a grandiosidade e versatilidade do referido escritor uruguaio, que domina o mundo das palavras e discorre à vontade sobre o tema que for.
Janela Sobre Uma Mulher (em As Palavras Andantes)
“Essa mulher é uma casa secreta. Em seus cantos, guarda vozes e esconde fantasmas.
Nas noites de inverno, jorra fumaça. Quem entra nela, dizem, não sai nunca mais.
Eu atravesso o fosso profundo que a rodeia.
Nessa casa serei habitado. Nela me espera o vinho que me beberá. Muito suavemente bato na porta, e espero.”

A dignidade da arte (em O Livro dos Abraços)
“Eu escrevo para os que não podem me ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não tem com o quê.
Quando chega o desânimo, me faz bem recordar uma lição de dignidade da arte que recebi há anos, num teatro de Assis, na Itália. Helena e eu tínhamos ido ver um espetáculo de pantomima, e não havia ninguém. Ela e eu éramos os únicos espectadores. Quando a luz se apagou, juntaram-se a nós o lanterninha e a mulher da bilheteria. E, no entanto, os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo, com alma e vida; e foi uma maravilha.
Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós aplaudimos até esfolar as mãos.”
Telma

https://literaturaemcontagotas.wordpress.com/tag/eduardo-galeano/




Suas palavras e pensamentos direcionam minha vida….


Aqui um pequeno exemplo:










A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Eduardo Galeano
Não morrerá, nunca!!!!