Um grito
até que teus ouvidos
não soubessem ouvir
outra voz
que não a minha.
Eu me lembro de tudo. Do sorriso de canto de boca, da cor de cada camiseta, do suor da tua mão na minha. Lembro das perguntas todas que seu olhar trazia. Lembro do seu jeito esquerdo, do teu corpo grande demais, pequeno demais, outro demais. Lembro que eu tinha curiosidade e, você, desejos, e nós chamávamos amor. Lembro que fomos sorvete, cerveja, praças e risos. Lembro que fomos a todos os lugares que só deviam ser um: a cama. Lembro que fomos, até que o único caminho possível era você vir. Lembro da sua mudança, malas e sacos invadindo os espaços que eu cedia, alegre e desconfiada. Lembro um dia e o outro e o outro e o outro até que todos pareciam ser o mesmo, tocados no ritmo do que eu aprendi a chamar felicidade mas que já tinha nome e eu nem sabia: intervalo. Eu empilho memórias que ocupam espaço e dificultam o andar: seu cheiro na minha mão, seu gosto na minha boca, seu corpo tão dentro do meu que eu suspeitava que o plano era atravessar-me. E era.
Não é lindo sentir assim, sofrer assim, doer assim? Mesmo as palavras mal arrumadas como estas aí de cima dizem de uma verdade – e, no entanto, é mentira já que eu não sofro. Mas alguém sofre e é essa dor que me fascina. Eu só queria era morrer de amor. Só uma vez ter o peito pequeno demais e os sorrisos ausentes demais e os olhos longe demais, perdidos no que o outro vê. Só uma vez não saber seguir, não saber sorrir. Não saber. Só uma vez, dessa vez, deixar que me tatuassem.
Eu quero a dor, não a angústia. Quero todos os nervos expostos, sonho hemorragias. Quero a impossibilidade de seguir sem ele e não o conforto amargo de saber-me sozinha. Quero o destempero, o desmando, o espanto e não o açoite no ventre e os passos seguros.
Um dia desses estávamos papeando sobre relacionamentos com os ex. E eu acho que tenho sorte. Tenho amizade com muitos ex...namorados, marido, rolos. Tenho contato com muitos outros. E os que nunca mais vi ou falei, foi por acaso e estradas diversas, mas tenho, por eles, carinho. Lembro ternamente os sorrisos todos que eles me deram. Meus namoros e similares sempre foram bons. Começaram bem, seguiram bem, e, com certa habilidade, bem terminaram. Eu os quis com intensidade quando os queria e não mais quando não queria, mas há que se aprender a cuidar e eu cuidei e fui cuidada. A maior dor de cotovelo que tive durou meia noite insone, três cigarros e a exaustiva repetição do disco Drama 3º Ato com a Bethania cantando incessantemente que “ao fim de cada ato, limpo no pano de prato as mãos sujas do sangue das canções” (é claro que há um pouco de fantasia nessa narrativa que me cai melhor que um mês tentando fazer dar certo o que já havia fenecido, três dias chorando no colo da amiga em uma praia sintomaticamente chamada Presídio e mais três horas encaixotando lembranças).
O certo é que fui feliz com estes homens que me habitaram e em quem habitei. Mais ainda, fui alegre. Mas sempre tive nostalgia de uma grande dor. Romântica de verdade, não esperava o grande amor, mas o grande sofrer. Um tango habita meus íntimos espaços. Eu esperava aquela dor que ocupa as melhores canções, os maiores filmes, as indescritíveis solidões. Ansiava pela comoção dos sentidos e pela absoluta entrega ao sofrer. Eu sei que alguém, agora, meneia a cabeça em desacordo ou outrem se enraivece por sofrer exatamente assim e desejar apenas o entorpecimento das lembranças. Mas eu queria, fazer o quê. Queria uma parede da memória como a do Belchior, em que um quadro doesse mais. Queria a vida latejante. Tenho Dalvas de Oliveira cantando em mim. Tenho boleros potenciais. Tenho letras que se organizam em saudades, anseios de carne viva, desassossego e não encontram encarnação num dia a dia de seguir sorrindo. Aprendi a suspeitar do meu riso e a espreitar a alegria, esperando que ela fraqueje e deixe ver que é só um vazio. Mas ela segue, firme. Fui me acostumando a não sofrer e, às vezes, tenho medo de ter me acostumado a não sentir.
Eu tenho inveja de quem sente com intensidade, de quem morre de amor todo dia, embora me pergunte como podem sentir assim por estes eles. Por um tempo achei que o que me faltasse fosse o objeto do amor. Suspeito que o que não tenho são as ferramentas pra morrer de amar.
http://borboletasnosolhos.blogspot.com/2011/06/dor-dos-outros.html
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