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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

15 Poemas de Ferreira Gullar

Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, escritor, poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo. 1930-2016.








Poema: Não há vagas – Ferreira Gullar

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.



Poema: Traduzir-se – Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?



Poema: No corpo – Ferreira Gullar

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.



Poema: Poemas Neoconcretos I – Ferreira Gullar

Poemas Neoconcretos I

mar azul

mar azul marco azul

mar azul marco azul barco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul



Poema: Aprendizado – Ferreira Gullar

Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.



Poema: Um Instante – Ferreira Gullar

Aqui me tenho/ Como não me conheço/ nem me quis/ sem começo/ nem fim/ aqui me tenho/ sem mim/ nada lembro/ nem sei/ à luz presente/ sou apenas um bicho/ transparente. Um instante, poema de Ferreira Gullar.



Poema: Subversiva – Ferreira Gullar

Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.

Poema: Os mortos – Ferreira Gullar

Os mortos

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça



Poema: Cantiga para não morrer – Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.



Poema: Prometi-me Possuí-la – Ferreira Gullar

Prometi-me Possuí-la

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo — deuses frágeis —
eu colho a ausência que me queima as mãos.

[Poemas Portugueses]



Poema: Extravio – Ferreira Gullar

Extravio

Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.



Poema: Madrugada – Ferreira Gullar

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes.



Poema: Neste Leito de Ausência – Ferreira Gullar

Neste Leito de Ausência

Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.

[Poemas Portugueses]



Poema: Meu povo, meu poema – Ferreira Gullar

Meu povo, meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta



Poema: MINHA MEDIDA – Ferreira Gullar

MINHA MEDIDA

Meu espaço é o dia
de braços abertos
tocando a fímbria de uma e outra noite
o dia
que gira
colado ao planeta
e que sustenta numa das mãos a aurora
e na outra
um crepúsculo de Buenos Aires

Meu espaço, cara,
é o dia terrestre
quer o conduzam os pássaros do mar
ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil
o dia
medido mais pelo pulso
do que
pelo meu relógio de pulso

Meu espaço — desmedido —
é o nosso pessoal aí, é nossa
gente,
de braços abertos tocando a fímbria
de uma e outra fome,
o povo, cara,
que numa das mãos sustenta a festa
e na outra
uma bomba de tempo.

A poesia de Ferreira Gullar sempre destacou-se pelo engajamento político. Por meio da palavra, Gullar fez da poesia um importante instrumento de denúncia social, especialmente na produção dos anos de 1950, 1960 e 1990, haja vista que, posteriormente, o poeta tenha reconsiderado antigos posicionamentos. Sua poética engajada ganhou força a partir dos anos de 1960 quando, ao romper com a poesia de vanguarda, aderiu ao Centro Popular de Cultura (CPC), grupo de intelectuais de esquerda criado em 1961, no Rio de Janeiro, cujo objetivo era defender o caráter coletivo e didático da obra de arte, bem como o engajamento político do artista.

Perseguido pela ditadura militar, Ferreira Gullar exilou-se na Argentina durante os anos de repressão, exílio provocado pelas fortes tensões psíquicas e ideológicas encontradas em sua obra. A importância do poeta foi reconhecida tardiamente, na década de 1990, quando finalmente Gullar foi agraciado com os mais importantes prêmios literários de nosso país. Em 2014, aos 84 anos, foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira de número 37, que pertencera ao escritor Ivan Junqueira, morto nesse mesmo ano.

http://escolaeducacao.com.br/melhores-poemas-de-ferreira-gullar/



quarta-feira, 16 de novembro de 2016

'Pedra Filosofal'


Jorge de Sena




"Da vida... não fales nela,
quando o ritmo pressentes.
Não fales nela que a mentes.
Se os teus olhos se demoram
em coisas que nada são,
se os pensamentos se enfloram
em torno delas e não
em torno de não saber
da vida... Não fales nela.
Quanto saibas de viver
nesse olhar se te congela.
E só a dança é que dança,
quando o ritmo pressentes.
Se, firme, o ritmo avança,
é dócil a vida, e mansa...
Não fales nela, que a mentes.





photo byTayfun Eker

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Leonard Cohen, in memoriam, singer-songwriter, poet, and novelist




"If I knew where the good songs came from, I’d go there more often." Leonard Cohen's warm wisdom on creativity:


"There are always meaningful songs for somebody. People are doing their courting, people are finding their wives, people are making babies, people are washing their dishes, people are getting through the day, with songs that we may find insignificant. But their significance is affirmed by others. There’s always someone affirming the significance of a song by taking a woman into his arms or by getting through the night. That’s what dignifies the song. Songs don’t dignify human activity. Human activity dignifies the song." (Cohen, considering the purpose of music in human life).


https://www.brainpickings.org/2014/07/15/leonard-cohen-paul-zollo-creativity/











"I always used to work hard. But I had no idea what hard work was until something changed in my mind… I don’t really know what it was. Maybe some sense that this whole enterprise is limited, that there was an end in sight… That you were really truly mortal."


What a beautiful testament to the creative spirit and its true motives, to creative contribution coming from a place of purpose rather than a hunger for profit.

REST IN PEACE

Ausência







E antes de dormir deito no colo da tua ausência feito vontade, feito saudade, feito desejo e sussurro uma prece: que um dia possa ser ontem.

E a gente vai deixando de caber na vida da pessoa e a pessoa vai deixando de estar na nossa. Não é falta de bem querer. Não é descaso. Não é, não mesmo, intencional. É o espaço e o tempo lembrando a relatividade de todas as coisas, inclusive o amor.

Cada vez mais. Cada vez menos.



Aquele banho






Image result for banho


Dos momentos que mais preso tem aquele banho em sua presença... seus olhos esquentando a agua... seu desejo ensaboando meu corpo... minha pele virando mel... você e eu num momento único criado apesar da distância... você põe um sorriso na minha boca, sem você saber como, sem eu saber porquê...   

Outono



No outono tudo é maduro. Tudo é cor e cheiro e disposição. No outono o morno das castanhas. As folhas vermelhas. O mundo perde o pudor. As árvores se põem nuas. No outono já não há promessas, a vida em entregas. O outono é luxúria. E aconchego, também. Fumacinha na tigela e ainda azul nos dias. Uma manta colorida. E memória. Outono é, em mim, luz. E terra. Pés descalços e ir ao encontro. Dourado a beira da estrada. Outono é essa vontade de chegar, encolher no abraço e aceitar o bom do agora.




quarta-feira, 11 de maio de 2016

O Poeta Ferido



segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Bar é poesia (O Poeta Ferido)





O Poeta Ferido




(luiz alfredo motta fontana)





O poeta ferido
apesar dos fatos
ainda resiste


Despe-se em versos à musa
cria refúgios na solidão
rega lírios
muda o curso da lua
tornando-a sempre nova


Já a ferida
não cicatriza
afinal
dela brotam os versos
nela vive a poesia

sábado, 23 de abril de 2016

Entra ou sai – Fabrício Carpinejar



“Se deseja o bem do outro, amar é decidir.
Há aquele que não quer se afastar, só que não suporta ficar perto.
Há aquele que não consegue permanecer longe, porém não se esforça para conviver.
Há aquele que não sai definitivo de sua vida, muito menos entra de verdade.
Há aquele que não se despede e também não assume as dificuldades do recomeço.
Há aquele que não larga as lembranças, entretanto não promete mais nada.
Há aquele que não está junto, mas não está longe.
Há aquele que sente saudade quando distante e reclama do ódio quando perto.
Há aquele que não desaparece e tampouco ressurge, que não destrói de uma vez por todas a relação, tampouco reconstrói os laços.
Há aquele que não pretende se encontrar para não sofrer, só que não para de telefonar e mandar mensagens.
Há aquele que tortura com amor, bate com o beijo, perdura a mala em gaveta.
Há aquele que não esquece o passado e também não desobriga a sua companhia a seguir em frente.
Aquele é você.
Não resolve, não se define, nem vem nem vai, sempre em cima do muro das palavras.
Sem esperança, sem fé, sem confiança, prende a pessoa pelo ressentimento. Empaca romances, não liberta seu prisioneiro para a possibilidade de novos amores.
A relação se transforma num purgatório, numa cobrança insolúvel de dívidas, que jamais serão quitadas pois não existem dias felizes para fazer esquecer as datas infelizes.
Se deseja o bem do outro, amar é também desistir.”
Fabrício Carpineja


Leia mais: http://www.asomadetodosafetos.com/2016/04/entra-ou-sai-fabricio-carpinejar.html#ixzz46fcdrDxE

terça-feira, 19 de abril de 2016

Dindi - Maysa -


Morrer é Foda


http://biscatesocialclub.com.br/2016/04/morrer-e-foda/


Publicado em 18 de abril de 2016 por Lis Lemos


Morrer é foda. Morrer é difícil pra burro. Repetia para si as palavras da amiga. Era isso. Havia matado a relação e se matado também. Sentia falta dele, mas percebia que sentia, sobretudo, falta de quem era naquela relação com ele. Sua amiga condensou sua dor em duas frases banais trocadas por whatsapp: “morrer é foda. Morrer é difícil pra burro”.


Morria lentamente de saudade do homem com quem trepava divinamente. Morria de saudade das conversas, da voz, do cheiro. Do olhar. Aquele olhar derramado sobre ela, morno, mas que incendiava tudo por dentro. Um olhar terno, acolhedor e revelador. Ria de como ele não conseguia ler a embalagem do requeijão e achava seus óculos horrorosos. “Vou comprar óculos redondos, ter cavanhaque e camisa xadrez só porque você gosta”, ele prometia irônico.


Ele morreu para ela. Nunca mais a facilidade de gozar naquelas mãos, nem a cerveja comprada no mercado da esquina. Quando foi que ele deixou de ser mais um e se transformou naquele em que pensava com constância, de quem sentia falta? Lembrou-se do dia – o mesmo do requeijão, será? – ele na sua cozinha, abrindo seu armário, pegando a faca e cortando o pão. Naquele dia de intimidade besta, ele fez morada. Ela soube, então, que a partir daí não tinha mais como continuar. Era preciso morrer.





Doía não só a ausência dele. Quinze dias sem notícias se arrastaram como uma quarentena no deserto. Justo ela tão comedida nas palavras e no sentir. Faltava o ar. O peito esmagado e a certeza de que o único lugar em que cabia era o abraço dele. Doía a ausência dele dentro dela. Doía a falta do corpo dele entre as suas pernas, da boca dele nos seus seios e daqueles dedos longos que a preenchiam por completo.


Morrer é foda. Quando leu a mensagem da sua amiga, riu. Pensou: “bem, não morri. Quem morreu foi ele”. Morrer é difícil pra burro. Aquilo lhe marcou. Pensava sempre nessas duas frases. Sua amiga sabia do que falava. Ela ainda não tinha visto as coisas daquele jeito. Passou dias remoendo o quanto era foda a morte e o quanto era difícil morrer. Até que percebeu que ela também morrera. Morrer é foda. Morrer é difícil pra burro


Morrera aquela que passava as tardes transando com ele. Aquela mulher corajosa de quem ele tanto falava. Morrera a mulher cheia de doçura. Morrera aquela que era vista por aquele olhar carinhoso. Morrera a que ia passar o dia na praia com ele, mas nunca sentiram o mar juntos. Morreu aquela mulher que contava histórias da sua vida e se sentia livre para contar seus devaneios mais íntimos. Morreu aquela que não teve pudor de declarar sua paixão.


Morrer é foda. Morrer é difícil pra burro.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Alto astral, altas transas, lindas canções








40 anos de Doces Bárbaros
Alto astral, altas transas, lindas canções

Há 40 anos, Gil, Caetano, Gal e Bethânia se uniam para a turnê coletiva dos Doces Bárbaros. O V&A.dom revisita os bastidores do encontro que virou um marco para a música brasileiraPor Camila HolandaPor Marcos Sampaio

Os Doces Bárbaros foram e são encontro. Os filhos de dona Canô, Caetano Veloso e Maria Bethânia, juntaram-se aos amigos Gal Costa e Gilberto Gil para, em meio à acidez da ditadura militar, viajarem o País fazendo música. Foi em 1976 que o quarteto encontrou uma forma de comemorar uma década de suas carreiras solo. Fizeram isto juntos. Subiram aos palcos de diversos lugares do Brasil para cantar músicas, como Fé cega, Faca amolada, Esotérico, O seu amor, Um índio e Pássaro proibido. O resultado está em LP duplo, gravado ao vivo e em documentário dirigido por Jom Tob Azulay, narrando e mostrando os fatos mais impactantes da turnê. Os músicos também foram homenageados pela Mangueira e desfilaram no Carnaval de 1994, com o samba-enredo Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu. O último reencontro oficial foi na praia de Copacabana (RJ) em 2002, que também rendeu um documentário, Outros (doces) Bárbaros, em 2004.





Percussionista que acompanhou o grupo na turnê de 1976, Djalma Corrêa conta que o projeto começou a ser gestado ainda em 1964, ano em que foi realizado o show Nós, por exemplo para ser o espetáculo de inauguração do Teatro Vila Velha, no Passeio Público de Salvador (BA). Foi um encontro de jovens músicos da MPB, como Caetano, Bethânia, Maria da Graça (antes de passar a assinar como Gal Costa), Gil, Tom Zé (ainda se identificando como Antônio José), Alcyvando Luz, Fernando Lona, Carlos Lyra e o próprio Djalma Correa (que interpretou música de sua autoria, chamada Bossa 2000 D.C., e acabou gravando todo o áudio do show, o único registro em áudio).

Sob a direção do cineasta e roteirista baiano Orlando Senna, o espetáculo se propunha lançar músicos no palco do novo espaço cultural da capital baiana. “Foi um sucesso. Mudou o cronograma da música popular na Bahia”, relembra Djalma. A parte com maior destaque e que se tornou icônica foi a interpretação de Gal e Bethânia de canção assinada por Veloso, chamada Sol Negro. O percussionista lembra que a música foi um marco na carreira de Gal, que, no ano seguinte, fez uma participação no LP Maria Bethânia (1965), o primeiro da carreira da cantora baiana, interpretando a composição.

“Nossos planos são muito bons”

Pouco mais de 10 anos depois daquele encontro, Gal, Gil, Bethânia e Caetano já haviam passado pela Tropicália (1967-1969) e consolidado suas carreiras no País, quando resolveram reunir-se novamente e viajar o Brasil como os Doces Bárbaros. “Foi um show que marcou o retorno desse grupo e começou sem qualquer pretensão”, rememora Djalma. A estreia do grupo aconteceu em 24 de junho de 1976, quando os quatro amigos subiram ao palco do Palácio das Convenções do Anhembi (SP), na companhia da banda formada por Djalma (percussão), Arnaldo Brandão (baixo), Mauro Senise (flauta e sax), Tomaz Improta (piano), Chiquinho Azevedo (bateria), Tuzé Abreu (flauta e sax), e Perinho Santana (guitarra).

O percussionista do grupo descreve que o resultado foi um espetáculo tomado pela aura de uma grande comoção, vinda da energia da plateia e dos próprios músicos. No repertório, que se consagrou na música brasileira, composições de Waly Salomão, Herivelto Martins, David Nasser, Milton Nascimento, Ronaldo Bastos e do quarteto de cantores. “Era muita pimenta”, define Djalma. O pano de fundo de toda a efervescência musical e cultural era a ditadura militar, que estava vivendo seu auge naqueles anos. E os Doces Bárbaros foram atingidos diretamente pela repressão em julho de 1976.

Hospedados no hotel Ivoram, para apresentação em Florianópolis (SC), policiais revistaram os quartos dos músicos durante a noite e encontraram maconha com Gil, Djalma e Chiquinho, que foram autuados e levados para delegacia. Durante meses, Gil cumpriu pena de internação hospitalar, que serviria para tratar uma suposta dependência química. “Gil saía do hospital e ia direto para os shows, depois tinha que voltar. Ficava uma viatura na porta”, lembra o percussionista. “Aí, todo mundo começou a assumir que também fumava maconha, era filho de prefeito, filho de governador”. Mesmo com esta repressão, a turnê continuou. Mais que um grupo de músicos, os Doces Bárbaros representam a reunião de amigos que começaram juntos suas trajetórias e ganharam caminhos distintos. Mas que nunca deixaram de convergir.

O que surgiu

Não existe plano para um novo encontro de Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gal Costa. No entanto, quem quiser conhecer mais de perto o resultado do encontro desses quatro gigantes segue uma lista de quatro produtos lançados pelos Doces Bárbaros:

DVD






Doces Bárbaros (1976)
O filme da turnê original capta o quarteto em seu auge performático. As roupas misturam influências religiosas com o ideário hippie. Entre cenas do show e bastidores, o filme de Jom Tob Azulay vai fundo na intimidade entre os artistas e registra o momento em que Gil foi preso por porte de maconha.





Doces Bárbaros (2004)
Neste segundo registro, o foco está nos ensaios para o reecontro do quarteto. As apresentações foram captadas nos shows do Parque Ibirapuera e na praia de Copacabana. Na parte musical o destaque fica para o encontro cheio de olhares e sorrisos de Gal e Bethânia em Esotérico. Nos bastidores, uma cena merece atenção: Ceatano discutindo com um jornalista durante uma coletiva de imprensa.

Disco






Doces Bárbaros (1976)
Lançado originalmente em LP e posteriormente em CD, o disco duplo traz 18 faixas captadas ao vivo, que vão do pop ao experimentalismo. Além de composições feitas especialmente para o trabalho, o quarteto trouxe Fé Cega, Faca amolada (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) e Atiraste uma Pedra (Herivelto Martins/ David Nasser) para o repertório. Entre os destaques, estão Quando, homenagem de Gilberto Gil para Rita Lee, e Eu Te Amo, feita por Caetano para testar os agudos de Gal Costa.

Compacto
Doces Bárbaros (1976)






Com repertório e produção montados, o grupo discordou sobre como deveria ser registrada a turnê dos Doces Bárbaros. Enquanto Gal e Bathânia queriam um registro ao vivo, Gil e Caetano optaram pelo estúdio. Mesmo com as mulheres vencendo, o quarteto entrou em estúdio para registrar um compacto com apenas quatro faixas. O disco, hoje raro, trouxe Chuck Berry Fields Forever, São João, Xangô Menino, Esotérico e O Seu Amor.

Vídeo


Crédito: reprodução youtube
O quarteto







Maria Bethânia – Depois de estrear no teatro político e fazer história interpretando Carcará (João do Vale/ José Cândido), a filha de Dona Canô usou seu talento cênico em apresentações que mesclavam música com declamação de poesias. Até os Doces Bárbaros, ela já gozava de prestígio entre o público mais engajado e contabilizava alguns sucessos populares, como Coração Ateu, tema da novela Gabriela. Dois anos depois do encontro com o trio baiano, ela lançaria Álibi, seu primeiro disco a ultrapassar 1 milhão de cópias que daria início a uma série de trabalhos de apelo popular.

Gal Costa – A musa do desbunde cruzou os anos 1960 e 1970 pendendo entre o ideário hippie e clássicos da MPB. Desde a estreia com Domingo, álbum bossanovista dividido com Caetano Veloso, ela já havia passeado pelo rock, pela psicodelia e pela tradição baiana num tributo a Dorival Caymmi, lançado no mesmo ano do LP Doces Bárbaros. Após o encontro com os conterrâneos, Gal lançou o engajado e explosivo Caras & Bocas, antes de aceitar a pele de diva e se tornar uma das vozes mais populares do Brasil a partir dos anos 1980, apostando também na sensualidade e na beleza.

Caetano Veloso – Até 1976, Caetano já acumulava pelo menos dois álbuns clássicos em sua discografia. O primeiro, Tropicalia ou Panis et Circencis (1968) era um trabalho coletivo que lançou as bases do movimento estético e artístico que revolucionou a cultura brasileira. Já Transa (1972) é uma obra melancólica, fruto dos tempos de exílio em Londres. Teve ainda o hermético Araçá Azul (1973), que pouca gente ouviu, menos pessoas ainda entenderam e acabou batendo recorde de devoluções nas lojas. Acumulando trabalhos conceituais até então, foi só depois da reunião dos Doces Bárbaros que o irmão da Bethânia encontrou o sucesso popular em discos cheios de elementos da bossa, da discoteca, do Carnaval e do rock.

Gilberto Gil – Da estreia voltada para o samba baiano até o encontro com os Doces Bárbaros, Gilberto Gil teve sua fase tropicalista onde mostrou a influência que recebeu do rock absorvido durante o exílio em Londres. De Jimi Hendrix e Beatles para os ídolos nacionais, Gilberto Gil iniciou em 1975 a famosa quadrilogia "Re", com o antológico Refazenda. Após os Doces Bárbaros, viriam Refavela, Refestança e Realce. Os trabalhos de forte acento pop traziam influência das culturas afro e nordestina, além do reggae jamaicano. São dessa época canções que marcariam para sempre a obra do baiano, como Tenho Sede, Toda Menina Baiana e Super-homem, a canção. Já consagrado, os anos 1980 trariam ainda mais sucessos para Gil e uma conexão com a geração de roqueiros dos anos 1980.

Os Mais Doces Bárbaros


Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada

Peixe Espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem, né, otário?
Peixe no aquário nada

Alto astral, altas transas, lindas canções
Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons

Com a espada de Ogum
E a benção de Olorum
Como num raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha

Tudo ainda é tal e qual
E no entanto nada é igual
Nós cantamos de verdade
E é sempre outra cidade velha
Plateia: Comoção, alegria e engajamento político



Daquele 1976, um show realizado pelos Doces Bárbaros em Belo Horizonte (MG) ficou na lembrança do jornalista Eustáquio Trindade Neto. À época, ele trabalhava no semanário Jornal da Casa e foi ao espetáculo do quarteto no Palácio das Artes, maior teatro da cidade. Foram shows de sexta a domingo, com todos os 1,8 mil lugares ocupados. “O show aqui foi tranquilo. Não tenho certeza de se foi antes do que eles fizeram em Curitiba ou Floripa, que tiveram os camarins invadidos pela PF”, relata.





“O Gil não chegou a fazer nenhuma referência no palco (sobre a prisão), talvez porque já houvesse alguma orientação do empresário”, complementa. O jornalista conta que, durante coletiva de imprensa antes do show, os artistas relativizaram o assunto. “Já havia uma espécie de acordo para evitar esse tipo de pergunta. Muita gente perguntou, mas as respostas foram evasivas. Eu me lembro de uma coisa que a Bethânia falou: ‘o que a gente tá cantando aqui é o que a gente já cantou até hoje, então, não tô entendendo
porque vai ter problema’”.

Na plateia, além de fãs, estava Milton Nascimento e outros integrantes do Clube da Esquina, como o Fernando Brant, já que o show estava acontecendo na cidade deles. “Aqui, a música que mais mexeu com a plateia foi Fé cega, Faca Amolada, talvez por causa do Milton Nascimento (autor da canção) e porque havia vários dos integrantes do Clube da Esquina na plateia. E talvez porque também era a música mais ritmada. Depois, houve também uma versão que eles fizeram de Atiraste uma pedra, do Herivelto Martins, que foi emocionante”, rememora.

Por mais que os espetáculos de Belo Horizonte tenham ocorrido durante a ditadura e após a prisão de Gilberto Gil por porte de maconha, não houve censura de músicas. “O (show) que eles mostraram em São Paulo, que acho que foi o ponto de partida da turnê, foi o que se viu aqui. Agora, o que marcou mesmo foi a reação da plateia mineira, intensa e apaixonada”, define Eustáquio.



http://especiais.opovo.com.br/40anosdedocesbarbaros/


sábado, 12 de março de 2016

Resíduo







Resíduo



De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco

(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:

de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.

De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.




Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Salve a menina dos olhos de oyá!!!









Inesquecivel!!!






Sergyo Vitro


Meia horinha na vida de Maria Bethânia

Cantora cruzou o Sambódromo em 29 minutos, sob intensa ovação do público

“Estou muito emocionada, claro, foi comovente demais. A Mangueira é minha escola, e ser escolhida como homenageada é lindo demais. Fiquei contente por ver a escola feliz com o enredo”
Maria Bethânia
Cantora


Maria Bethânia chegou à concentração da Mangueira por volta das 4h de ontem. Às 4h30m já estava sobre o carro alegórico, o último do desfile, de motivos infantis. Ainda distante da entrada no Sambódromo, Bethânia brincava com as afilhadas gêmeas Júlia e Nina Basbaum, erguia os braços para o céu, mexia no cabelo, acenava para o público. Em frente ao centro de diagnósticos Rio Imagem — que parece ficar a 100km da avenida, devido aos anos- luz entre os dois universos —, ela já recebia aplausos e carinho do público que não a veria desfilar.

— Bethânia, uhu! — berrava um fã empolgado. — Sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho meu...

Ao longo de toda a concentração, a baiana, que completará 70 anos no dia 18 de junho, foi acompanhada pelos gritos dos fãs, muitos dos quais, inutilmente, brandiam um telefone celular, na tentativa de fotografá- la no escuro e de longe. Ela sorria e acenava para todos.

Quando finalmente o carro se aproximou da entrada do desfile, fez- se ouvir o samba, que Bethânia e as meninas sabiam cantar de cor. Elas só não contavam com o grupo Swing & Simpatia, que se apresentava no Terreirão do Samba no mesmo horário, e cujo som abafava as caixas acústicas da concentração — sim, lá, ouve- se ainda pior do que no interior da passarela.

O carro com Bethânia, Júlia e Nina fez a curva ( duas vezes; na primeira, teve de recuar para corrigir o trajeto) rumo à Sapucaí às 5h18m, quando a Mangueira contabilizava 50 minutos de desfile, e a avenida já tinha sido devidamente incendiada. Em 29 minutos, ela ouviu e deixou de ouvir gritos de todos os lados; mexeu no cabelo com boa frequência, dançou com as mãos nas cadeiras, deu passinhos para frente e para trás, pediu cuidado às duas meninas ( que pulavam como pipocas a cada “saravá” do samba), emocionou- se e sorriu. A performance esperada da cantora foi a cereja do bolo para a apresentação surpreendente da Mangueira, que levou para a avenida o enredo “Maria Bethânia — A menina dos olhos de Oyá”.

— Estou muito emocionada, claro, foi comovente demais. A Mangueira é minha escola, e ser escolhida como homenageada é lindo demais. Fiquei contente por ver a escola feliz com o enredo, as pessoas realmente envolvidas, cantando e acenando. Nossa chegada à Apoteose também foi muito emocionante — disse a cantora ontem, horas após o desfile.

Bethânia lembrou quando desfilou na Mangueira em 1994:

— Quando participei do desfile dos Doces Bárbaros, quase morri, era muito alto. Me botaram num queijo sozinha, lá em cima, eu abri a escola. Desta vez, exigi que não fosse tão alto.

A cantora elogiou, ainda, o trabalho do carnavalesco Leandro Vieira. Segundo Bethânia, ele tem muito bom gosto. Ela disse ainda ter ficado feliz com o Estandarte de Ouro de melhor escola conquistado pela Mangueira:
— É um cansaço danado! Mas, se for para volta para o Desfile das Campeãs, eu volto, claro.

10 fev 2016

O Globo


Ao homenagear Bethânia a Mangueira trouxe pra avenida a essência da cultura brasileira, aquela que aos poucos desaparece na pós-modernidade: o sincretismo, a poesia, a cultura do interior, uma crença nas forças da natureza, santos e orixás, rios e mares, a tradição da mestiçagem.
Foi um desfile belíssimo e não apenas para quem é fã da cantora ou da escola de samba. Principalmente para quem é fã desse Brasil aí, que teima em não desaparecer, que resiste ao fundamentalismo e à pasteurização da cultura. Um pouquinho do século XX que ainda vive em nós.
Obrigada, Bethânia.
Parabéns, Mangueira.
Máira Nunes no facebook












A menina dos olhos de Oyá exuzilhou o racismo religioso na avenida
Por Cidinha da Silva

A menina dos olhos de Oyá foi reverenciada na passarela do samba. O enredo da Mangueira popularizou para o grande público o codinome dado à cantora Maria Bethânia por sua Iyalorixá, Menininha do Gantois, imortalizada na canção de Caymmi de 1972, Oração à Mãe Menininha.


Quem não se lembra do dueto de Gal e Bethânia louvando a venerável matriarca: A estrela mais linda, hein / Tá no Gantois / E o sol mais brilhante, hein? / Tá no Gantois / Olorum quem mandou essa filha de Oxum / tomar conta da gente e de tudo cuidar / Ai, minha mãe / Minha mãe Menininha? / Ai, minha mãe / Menininha do Gantois.

Ou da menos conhecida, mas igualmente bela, Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois, composta e interpretada por Gilberto Gil, em 1986, quando da partida da Iyalorixá para o Orum. Uma homenagem pujante e clássica, um réquiem para aquela mulher fundamental na expressão da religiosidade brasileira em seus fundamentos africanos. Foi / Minha mãe se foi / Minha mãe se foi / Sem deixar de ser – ora, iêiê, ô / Sem deixar de ser a rainha do trono dourado de Oxum / Sem deixar de ser mãe de cada um / Mãe / Do Orum, do céu / Do orum, do céu / Me ajuda a viver nesse ilê aiê.

Músicas de um tempo, as décadas de 1970 e 1980, em que as religiões de matrizes africanas podiam ser livremente cultuadas, pelo menos no cancioneiro popular e no carnaval. Pois, a perseguição policial aos terreiros se manteve desde os primórdios do período escravista, quando, para realizar as cerimônias, os rituais religiosos africanos precisavam se travestir da liturgia católica. Foram décadas de acossamento visível na invasão e destruição de terreiros, espancamento de freqüentadores e sacerdotes, seqüestro de patrimônio, ainda hoje em mãos da polícia, ocorrido nas primeiras décadas do século XX, também de persecução menos percebida às casas de asé, no período da ditadura civil-militar.

Hoje, com a hegemonia das igrejas caça-níqueis e sua sanha militarizada contra os terreiros de candomblé, materializada no apedrejamento de praticantes, invasão e destruição material dos espaços de culto - veja-se o exemplo do incêndio criminoso no Ilê Asé Oyá Bagan, em Brasília, em 2015, entre dezenas de outros. Disseminam-se também as agressões morais às autoridades religiosas do candomblé, casas de umbanda, centros de cura regidos por princípios de religiões africanas e afro-ameríndias; homicídio de sacerdotes, dolosos ou não; agressões físicas de Norte a Sul do país.

O enredo A menina dos olhos de Oyá embasa a luta contra o racismo religioso. Espraia o ideário do 21 de janeiro, data do falecimento da Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, de Salvador, em decorrência de agressões sofridas por uma igreja evangélica, em outubro de 1999.

Na ocasião, o jornal Folha Universal estampou na capa uma foto de Mãe Gilda, em trajes cerimoniais para ilustrar uma matéria cujo título era: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A casa da Iyalorixá foi invadida. O marido foi agredido verbal e fisicamente por membros dessa igreja evangélica e sua casa de asé foi depredada. Mãe Gilda não suportou os ataques e enfartou. Faleceu três meses depois, no dia 21 de janeiro de 2000, tornado então Dia nacional de combate à intolerância religiosa.

O desfile de carnaval campeão da Mangueira é um suspiro de liberdade para todas as pessoas que professam um mundo de respeito às crenças de cada ser humano. E no caso brasileiro, à valorização coletiva das culturas africanas, estruturantes deste país.

Mas quem é Oyá, Iansã, representada por sua filha, a cantora Maria Bethânia na Sapucaí? Para conhecê-la, bem como a sua presença nos rituais artísticos da filha dileta, recomendo a leitura da dissertação do antropólogo Marlon Marcos (UFBA), OYÁ-BETHÂNIA: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. De certo, uma das dezenas de materiais consultados pelo carnavalesco e compositores da verde e rosa para o desenvolvimento do enredo.

Marlon Marcos a define assim: “Dos orixás cultuados no Brasil, um dos mais populares é Oyá, mais conhecida como Iansã. Esta deusa africana começou a ser cultuada primeiramente entre os iorubás. E a sua adoração passou a atingir toda a extensão das diversas etnias do mundo iorubano, fincando-se destacadamente em cidades como Oyo, Kossô, Irá, Ifé, Ketu, regiões que hoje compreendem uma parte da Nigéria e do atual Benin. Oyá é o orixá dos grandes movimentos e das várias formas. Formas estas que representam seu domínio sobre vários elementos da natureza, a sua essência é a liberdade inclinada à constante transformação.”

Bethânia, emocionada ao final do desfile das campeãs, em resposta inteligente a mais uma pergunta tola, rogou para que Iansã nunca nos esqueça, pois sem ela não se anda! É que Iansã é movimento. A mais pura e contraditória expressão do movimento. É a senhora dos ventos, das tempestades, dos raios e trovões. Da mudança. Da transformação. Da impermanência. Por isso, sem ela não se anda.

A cantora, desejosa de homenagear a mãe, D. Canô, fez uma tatuagem de rosa vermelha no braço que empunha o microfone, para que todos vissem. Revelou que a tatuagem é temporária, porque por interdição religiosa não pode tatuar o corpo.

Outra demonstração de fidelidade a preceitos religiosos dada pela Estrela emergiu de uma interpretação do pessoal do dendê. Segundo eles, Bethânia desfilou no chão no dia de comemoração da vitória porque, caso viesse em carro alegórico, ficaria numa posição acima da cabeça de sua Iyalorixá, Mãe Carmem, que a assistia de um camarote. Isso não seria aceitável. Na versão da cantora, apresentada a jornalistas, houve um problema com o carro e ela não teria conseguido chegar a ele.

Cada um escolhe a versão que mais lhe sirva ou encante. Cá comigo, penso que Bethânia está certa em se preservar. A turma do dendê também, ao revelar o que pode fortalecer o costume. Tudo é enredo. Tudo é mistério em transformação.

Eparrey, Oyá! Eparrey!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Prazeres da "melhor idade"

Por Ruy Castro

Melhor idade é a puta que te pariu – a melhor idade é de 18 aos 40 anos…
A voz em Congonhas anunciou: "Clientes com necessidades especiais, crianças de colo, melhor idade, gestantes e portadores do cartão tal terão preferência etc.". Num rápido exercício intelectual, concluí que, não tendo necessidades especiais, nem sendo criança de colo, gestante ou portador do dito cartão, só me restava a "melhor idade" – algo entre os 60 anos e a proximidade da morte.
Para os que ainda não chegaram a ela, "melhor idade" é quando você pensa duas vezes antes de se abaixar para pegar o lápis que deixou cair e, se ninguém estiver olhando, chuta-o para debaixo da mesa. Ou, tendo atravessado a rua fora da faixa, arrepende-se no meio do caminho porque o sinal abriu e agora terá de correr para salvar a vida. Ou quando o singelo ato de dar o laço no pé esquerdo do sapato equivale, segundo o João Ubaldo Ribeiro, a uma modalidade olímpica.
Privilégios da "melhor idade" são o ressecamento da pele, a osteoporose, as placas de gordura no coração, a pressão lembrando placar de basquete americano, a falência dos neurônios, as baixas de visão e audição, a falta de ar, a queda de cabelo, a tendência à obesidade e as disfunções sexuais. Ou seja, nós, da "melhor idade", estamos com tudo, e os demais podem ir lamber sabão.
Outra característica da "melhor idade" é a disponibilidade de seus membros para tomar as montanhas de Rivotril, Lexotan e Frontal que seus médicos lhes receitam e depois não conseguem retirar.
Outro dia, bem cedo, um jovem casal cruzou comigo no Leblon. Talvez vendo em mim um pterodáctilo(que têm os dedos ligados por uma membrana) da clássica boemia carioca, o rapaz perguntou: "Voltando da farra, Ruy?". Respondi, eufórico: "Que nada!
Estou voltando da farmácia!". E esta, de fato, é uma grande vantagem da "melhor idade": você extrai prazer de qualquer lugar a que ainda consiga ir.
Primeiro, a aposentadoria é pouca, quase uma esmola, e você tem que continuar a trabalhar para melhorar as coisas. Depois vem a condução.
Você fica exposto no ponto do ônibus com o braço levantado esperando que algum motorista de ônibus te veja e por caridade pare o veículo e espere pacientemente você subir antes de arrancar com rapidez como costumam fazer.
No outro dia entrei no ônibus e fui dizendo: – "Sou deficiente".
O motorista me olhou de cima em baixo e perguntou: – "Que deficiência você tem?"
– "Sou broxa!"
Ele deu uma gargalhada e eu entrei.
Logo apareceu alguém para me indicar um remédio. Algumas mulheres curiosas ficaram me olhando e rindo…
Eu disse bem baixinho para uma delas:
– "Uma mentirinha que me economizou R$ 3,00, não fica triste não", foi só para viajar de graça.
Bem… fui até a pedra do Arpoador ver o por do sol.
Subi na pedra e pensei em cumprir o ritual que costuma ser feito pelos mais jovens no local. Logicamente velho tem mais dificuldade. Querem saber?
Primeiro, tem sempre alguém que quer te ajudar a subir: "Dá a mão aqui, senhor!!!"
Hum, dá a mão é o cacete, penso, mas o que sai é um risinho meio sem graça.
Sentar na pedra e olhar a paisagem era tudo o que eu queria naquele momento.
É, mas a pedra é dura e velho já perdeu a bunda e quando senta sente os ossos em cima da pedra, o que me faz ter que trocar de posição a toda hora.
Para ver a paisagem não pode deixar de levar os óculos se não, nada vê.
Resolvo ficar de pé para economizar os ossos da bunda e logo passa um idiota e diz:
– "O senhor está muito na beira pode ter uma tontura e cair."
Resmungo entre dentes: … "só se cair em cima da sua mãe"… mas, dou um risinho e digo que esta tudo bem.
Esta titica deste sol esta demorando a descer, então eu é que vou descer, meus pés já estão doendo e nada do por do sol.
Vou pensando – enquanto desço e o sol não – "Volto de metrô é mais rápido…"
Já no metrô, me encaminho para a roleta dos idosos, e lá esta um puto de um guarda que fez curso, sei eu em que faculdade, que tem um olho crítico de consegue saber a idade de todo mundo.
Olha sério para mim, segura a roleta e diz:
– "O senhor não tem 65 anos, tem que pagar a passagem."
A esta altura do campeonato eu já me sinto com 90, mas quando ele me reconhece mais moço, me irrompe um fio de alegria e vou todo serelepe comprar o ingresso.
Com os pés doendo fico em pé, já nem lembro do sol, se baixou ou não dane-se. Só quero chegar em casa e tirar os sapatos…
Lá estou eu mergulhado em meus profundos pensamentos, uma ligeira dor de barriga se aconchega… Durante o trajeto não fui suficientemente rápido para sentar nos lugares que esvaziavam…
Desisti… lá pelo centro da cidade, eu me segurando, dei de olhos com uma menina de uns 25 anos que me encarava… Me senti o máximo.
Me aprumei todo, estufei o peito, fiz força no braço para o bíceps crescer e a pelanca ficar mais rígida, fiquei uns 3 dias mais jovem.
Quando já contente, pelo menos com o flerte, ela ameaçou falar alguma coisa, meu coração palpitou.
É agora…
Joguei um olhar 32 (aquele olhar de Zé Bonitinho) ela pegou na minha mão e disse:
– "O senhor não quer sentar? Me parece tão cansado?"
Melhor Idade ??? – Melhor idade é a puta que te pariu !

Prazeres da "melhor idade" - RUY CASTRO


Folha de SP - 28/01/12
Ruy Castro é escritor e jornalista, trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo.