O Partido Socialista francês realizou o primeiro turno das suas eleições “primárias”. Mas a abertura pode bem ser apenas a de uma frincha da janela. Senão vejamos, quanta democracia cabe num processo de “primárias abertas”?
O Partido Socialista francês realizou, neste último fim-de-semana, o primeiro turno das suas eleições “primárias” de forma a escolher qual candidato do partido se irá bater com o desgastado e impopular Nicolas Sarkozy nas presidenciais de 2012. Até aqui nada de novo. O elemento inovador do processo foi a sua abertura a todos os eleitores inscritos nos cadernos eleitorais franceses, ou seja, todos os cidadãos, fossem ou não militantes do PS, podiam votar desde que preenchessem duas condições – assinar um compromisso simples de adesão aos valores republicanos e da esquerda* e contribuir com a módica quantia de… 1 euro (para as ajudas de custo do pleito). Dois milhões de eleitores responderam ao apelo e foram às urnas, tendo o ex-secretário do partido, François Hollande, alcançado 39% dos votos seguido pela actual secretária do partido, Martine Aubry, com 31%. Uma segunda volta, nos mesmos moldes, terá lugar no próximo domingo.
A operação de charme foi considerada um sucesso e nesta segunda-feira dezenas de jornais europeus rasgaram longos elogios ao processo. Por cá a “entrega da escolha dos candidatos à sociedade” já tinha sido um dos temas na eleição do líder do PS que habita ali no largo do rato, com Assis a defender o mesmo modelo de primárias. António José Seguro, na altura, chutou para canto mas o processo francês irá, com certeza, fazer caminho na social-democracia europeia, levantando algumas questões a que devemos estar atentos.
Porquê agora?
Os partidos socialistas europeus, sobretudo os do sul da Europa, já fizeram da democracia a sua principal bandeira. Quem não se lembra de Mário Soares e do muro que dividia o PS do PCP? – “Sociedade sem classes sim, mas em democracia.” Ao mesmo tempo, a Internacional Socialista armava com o elã democrático as suas secções europeias e latino-americanas. Face às ditaduras de então a democratização era todo um programa. Mas conhecemos o caminho que percorreram desde então, com o socialismo a entrar na gaveta e os partidos de Mubarak e Ben Ali na Internacional Socialista.
O desgaste da democracia e o surgimento de um discurso de ódio aos partidos é, em boa parte, responsabilidade da capitulação planeada da social-democracia europeia à ditadura dos mercados e ao modelo de democracia de baixa intensidade. Numa altura em que os ventos árabes derrubaram do poder os seus camaradas, em que a voz das praças se faz ouvir com a exigência da democracia por inteiro e que a direita se queima nos governos europeus, os líderes socialistas procuram não perder a mão, é necessário abrir “a nossa porta à sociedade”.
A sociedade é que manda?
Mas a abertura pode bem ser apenas a de uma frincha da janela. Senão vejamos, quanta democracia cabe num processo de “primárias abertas”? Os candidatos são os do partido mas os votantes não, ou seja, é a forma pura da prepotência partidária e do confinamento democrático do cidadão. A democracia caricaturada no voto de quatro em quatro anos para o governo ou autarquias é copiada para o interior dos partidos, vota-se no candidato a partir do programa que este apresenta e dos debates da TV. É um processo fechado onde a militância não conta ou opina, onde a construção programática não tem lugar e onde o candidato tudo pode depois de eleito. É uma escolha de risco bem medido para estes partidos, onde o poder cidadão começa e termina num voto de escolha controlada.
Então e a democracia toda?
A liberdade de tomar partido foi uma das mais importantes conquistas do movimento dos trabalhadores. A representação parlamentar e o voto universal custaram duras perdas e permitiram a expansão da democracia a um nível nunca antes visto (as mulheres que o digam). Mas mais do que isso, a escolha de tomar partido permitiu a identificação de campos distintos na realidade social, dotando a consciência colectiva de que o interesse nacional se acaba onde se bifurcam interesses inconciliáveis. É por isso que a crítica anti-partidos deve ser rejeitada. Primeiro porque todos os partidos têm uma história e uma forma de funcionamento própria. Nos últimos meses de catástrofe social, ou nos trinta e sete de democracia os partidos não foram todos iguais e sabemos onde foram diferentes. E depois porque a forma partido continua a ser um espaço de catalisação das lutas e de escolha colectiva pela superação deste sistema.
É claro que, nestes tempos de resistência, a resposta não se esgota nos partidos, tem até transbordado muito para lá deles e não pode haver escala hierárquica entre o activista partidário e o social, que de resto confluem tantas das vezes. Mas saber distinguir entre o engodo de uma democracia controlada, onde o partido evapora-se no markting de uma abertura postiça e oca e a proposta de uma mudança radical onde cabem todos e todas que sabem que a democracia é um processo em construção que faz parte da resposta ao ataque anti-democrático dos mercados, constitui um dos maiores desafios aos novos espaços de mobilização e luta.* “Reconheço-me nos valores da República e da Esquerda, no projecto de uma sociedade de liberdade, igualdade, fraternidade, laica, justa e de progresso solidário.”
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