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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

“Todo mundo tem fome. Se não é de feijão e farinha, é de amor” - Criolo




Autor do disco mais elogiado do ano, incensado pela crítica e por uma devota massa de fãs, indicado a cinco prêmios no VMB, shows abarrotados. Criolo está por cima, não se discute. Mas o seu o sucesso é tudo, menos repentino. Está apenas colhendo os frutos de mais de 20 anos de rap – e 35 de uma dedicada e improvável história de educação em família

Você pergunta. Mas não encontra uma resposta pronta. E sim uma incontida fala ornada de poesia, difusa e um tanto disléxica. Um flow caudaloso de imagens, gestos, pausas dramáticas, recorrências e repetições que não denota um MC experiente – o que, de fato, Criolo é. Parece mais o lapidado sintoma de um homem angustiado. E não serão shows apinhados, fãs de todos os orçamentos, elogios rasgados e impressos, discos esgotados, uma capa da Trip ou um dueto com Caetano Veloso que vão acalmar, um pouco que seja, sua alma trêmula. Porque toda essa atividade sísmica na psique de nosso entrevistado não diz respeito a fama, dinheiro ou prestígio. Tem a ver com... carma?
Porque, cá pra nós, talvez essa angústia tenha começado há muito tempo, antes mesmo de Kleber nascer. Quando sua mãe, a dona Vilani, era só uma criança correndo com um pedaço de carne crua embrulhado no jornal do dia anterior. Ela tinha que chegar logo em casa, antes que o sangue manchasse todas as letras no papel e nada mais fosse legível. Era como ela matava sua fome por leitura e completava, autodidata, sua alfabetização. Já que não havia escola, nem livros, nem dinheiro... e a embalagem era a única coisa com palavras impressas disponível na região carente do Ceará. Escritos que ela decifrava a duras penas, comparando com seu nome (tudo o que sabia escrever quando seu pai morreu) e deduzindo as demais letras, depois sílabas e palavras. Hoje, ao escutar sua mãe descrevendo essa cena, Kleber tem os olhos empoçados.
Mais do que música, é essa improvável urgência o que Criolo nos oferece. Quando compõe, canta, improvisa ou, simplesmente, fala em uma entrevista. “Muito legal o que está acontecendo comigo hoje. Mas legal mesmo seria eu não sentir essa dor no peito”, ele diz, ao refletir sobre a repercussão de seu novo álbum, Nó na orelha. O disco rapidamente transcendeu as invisíveis, e agora menos rigorosas, fronteiras entre o rap nacional e a canção. Entre seus fãs antigos de rinhas e eventos de hip hop e um público mais amplo, menos aguerrido. Provocou um tiroteio de adjetivos generosos da crítica, que, refém de rótulos e preconceitos, enumerou não sei quantos “estilos” entre as dez faixas do disco. Muita gente, como se houvesse distinção, decretou que Criolo fez “a ponte que faltava entre o rap e a música brasileira”. Bobagem... Se ele fez alguma ponte nesse disco, foi entre sua história e um público cada vez maior – e mais carente.
Divulgação
Nó na Orelha
Nó na Orelha
“Todo mundo tem fome. Se não é de feijão e farinha, é de amor”, filosofa. E com isso explica um pouco do que está por trás da unanimidade que a canção “Não existe amor em SP” alcançou. A música nem deveria estar no álbum. Foi feita de repente, melodia e letra, enquanto esperava os atrasados produtores do disco, na porta do estúdio El Rocha. A letra que fala sobre o abismo entre a cidade e as pessoas, sobre a solidão de viver entre milhões de desconhecidos, evocou um amor mais difuso, espiritual – e tocou muita gente. Foram mais de 200 mil downloads em três meses, versões na voz de outros artistas. Canção, disco e clipe de “Subirudoistiozin” lhe renderam cinco indicações para o VMB, entre elas disco e artista do ano. Além do convite para dividir o palco da cerimônia em um dueto com Caetano Veloso e um coro emocionado em todo show.
Rajneesh do Grajaú
Até pouco tempo, ele era Criolo Doido. MC de boa quilometragem em São Paulo, um dos fundadores da Rinha de MCs, tradicional duelo de rappers bons de improviso, e voz frequente no Pagode da 27, samba comunitário de seu bairro, o Grajaú, na zona sul da cidade. Mas, Doido ou não, Criolo estava em crise. “Me questionava se eu deveria continuar no palco”, ele confessa, “se eu não tinha outras formas de colaborar. Foi quando Marcelo Cabral veio com a ideia de gravar algumas músicas do amigo. Até para não passar batido.” Sem pretensão, do começo ao fim, o projeto tomou corpo.
Curiosamente, o disco é fruto de tudo, menos dessa tal falta de amor em SP. Sem gravadora, orçamento super-reduzido, Criolo virou apenas o talento ao redor do qual gravitou muita gente que... amou o projeto. E estava a fim de ajudar sem esperar muito em troca. Cabral convidou Ganjaman para coproduzir a bolacha. Músico experiente, rodado no mainstream e no underground, Ganja entendeu logo o que tinha na mão. “Eu faria na boa um disco tradicional de rap. Mas quando ele cantou umas músicas vi que era um material rico pra cacete. Que tinha espaço ali para arranjos de banda mesmo.”
Ganja hospedou o cantor em sua casa, e trabalharam duro. Alistaram alguns dos melhores músicos de São Paulo. O único selo que acompanha o disco independente é o da Matilha Cultural, um coletivo de São Paulo do qual Cabral faz parte e que reúne artistas e ativistas em torno de diferentes causas. Entre elas, apoiar a gravação do que muita gente está chamando de melhor disco do ano. Sem verba de divulgação, com uma assessoria de imprensa voluntária, foi na rede que as primeiras faixas de Nó na orelha correram como rastilho de pólvora.
“Legal esse momento que estou vivendo. Mas legal mesmo seria não precisar cantar o que canto. Sentir essa dor no peito”
E seus shows ganharam não apenas uma finíssima banda, mas um público mais heterogêneo e devotado. É ao vivo, arrisca o repórter, que se entende melhor os tantos holofotes sobre o rapaz. Ele tem real domínio do público e de sua voz. Sabe se colocar ao mesmo tempo como líder e como um mero membro de uma súbita congregação. Mesmo entre boleros, raps, afrobeats, covers de Nelson Ned, é difícil não pensar que paira sobre as mãos erguidas e as vozes em uníssono um ar de culto, de igreja. Criolo não assume, nem é besta de admitir, a presença e o pique de profeta. Mas, por conta de frequentes, e sinceros, arroubos metafísicos e hiperbólicos, o rajneesh do Grajaú ganhou entre os mais chegados o apelido de Criosho.
MC, intérprete, compositor, artista 24 horas de plantão... Papéis cada vez mais públicos que ele assume. Exceto um, que ocupou 12 anos de seu currículo: professor. Dando aulas de arte em escolas ou no delicado papel de arte-educador, em que tentava a difícil primeira abordagem a menores de rua. “Não gosto de falar sobre isso”, desvia, “não quero parecer que estou me promovendo em cima disso.” Mas foi essa vocação, sonhada desde criança e herdada de sua mãe, que parece ter um papel inevitável em sua poesia e sua visão do mundo. E o contraste radical entre o amparo, a educação e os valores que aprendeu em casa e a carência, o egoísmo e o descaso que testemunhou nas ruas é o que parece ter criado essa urgência que construiu o homem angustiado, o MC de verbo farto, o artista de que todos falam. E o entrevistado a seguir.

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