Pesquisar este blog

sábado, 26 de novembro de 2011

"Bom Dia para Nascer"

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA



Alécio de Andrade/Divulgação
O escritor Otto Lara Resende em 1972, no Café Coupole, em Paris
O escritor Otto Lara Resende em 1972, no Café Coupole, em Paris

"Se há uma coisa boa de ler, é carta", diz Otto Lara Resende (1922-1992) numa crônica para a Folha.
Especialmente se o autor da carta for o próprio Otto. Suas cartas a Fernando Sabino (1923-2004) saem agora em "O Rio é Tão Longe", livro com introdução e notas (ótimas) de Humberto Werneck.
Por vários anos, Otto Lara trabalhou como diplomata em Bruxelas e Lisboa. Reclama dos amigos que não escrevem, pede notícias, queixa-se dos compromissos chatos.

Não conseguia levar adiante sua obra de ficcionista, que iria empacar num único romance ("O Braço Direito") e em alguns volumes de contos. O cronista só apareceria com plena força nos seus dois últimos anos de vida, quando Otto Lara passou a escrever na página 2 da Folha.


Mas quem o conheceu pessoalmente tende a dizer que seu maior gênio não estava na crônica ou na ficção, e sim na conversa ao vivo.

Pude comprovar isso num almoço aqui no jornal. Baixinho, agitado, veloz, ele era um conversador deslumbrante. Tanto que, por mais que eu me esforce, não consigo me lembrar do que ele falou. Quem poderia descrever, passo a passo, um show de fogos de artifício? Suas cartas esbanjam a mesma verve.



Consagração na crônica veio no fim da vida


"Bom Dia para Nascer" reúne 266 textos que Otto Lara Resende publicou durante colaboração diária para a Folha

Autor mineiro escreveu as crônicas entre 1991 e 1992; nova edição do livro foi organizada por Humberto Werneck
COLUNISTA DA FOLHA

A obra completa de Otto Lara Resende começa a ser reeditada pela Companhia das Letras.

"Bom Dia para Nascer" reúne 266 crônicas publicadas na Folha nos anos de 1991 e 1992. Selecionados por Humberto Werneck, aparecem 72 textos a mais do que na primeira edição do livro, organizado por Matinas Suzuki Jr. em 1993.

Por décadas, Otto parece ter invejado o sucesso de seu amigo Fernando Sabino como cronista. Meio de brincadeira, meio a sério, as cartas de "O Rio É Tão Longe" voltam frequentemente ao tema.

Chateado com a demora de Sabino em responder às cartas, Otto diz que vai enviar-lhe uns US$ 50, já que o amigo parecia só escrever quando lhe pagassem...

No fim da vida, Otto deu o troco. Com sua colaboração diária para a Folha, ele se consagrou como cronista.

Reunidas, as crônicas crescem. O mesmo assunto aparece em vários textos, como se cada crônica fosse o fragmento de um ensaio maior. É o caso de sua polêmica a respeito da suposta traição de Capitu em "Dom Casmurro", que ele teimava ser fato comprovado e batatal.

Como seus contemporâneos mineiros (Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos), Otto Lara Resende tinha o gênio da amizade. Os rápidos perfis de escritores e políticos constituem, talvez, o que há de melhor em suas crônicas.

Otto parece ter sido amigo de todo mundo, mesmo de quem nunca conheceu. Fala de dom Pedro 2º como se o tivesse encontrado na esquina.

A informalidade, claro, é um dos requisitos da boa crônica. Otto levou-a até ao exagero. A meu ver, muitos dos seus textos se aproximam de uma "escrita automática", encadeando clichês numa espécie de corrida frenética contra o silêncio.

Um exemplo. "Se o carioca curte o verão, é porque há no verão o que curtir. O calor convida ao riso e à folga. Ao lazer, em suma, numa sociedade que cancelou a disponibilidade de espírito." E por aí vai. Não importa. A pontuação é assim. Telegráfica.

No meio dessa coloquialidade, o senso do bizarro, da extravagância, surge quando menos se espera: "Em Dacar não há avenida Presidente Vargas". É o mesmo gosto pelo absurdo, inofensivamente mineiro, que aparece nos adjetivos, nas metáforas, nas associações arbitrárias.

Otto conta que foi ver um eclipse na cidade de Bocaiuva, em Minas Gerais. O fenômeno atraiu, por alguma razão, cientistas de todo o mundo. "De volta ao Rio, escrevi que o eclipse tinha me parecido um elefante de circo."

A regularidade dos acontecimentos, o dia a dia do cronista, tem desses elefantes, dessas proezas de circo.
O mesmo espírito reaparece nas cartas de "O Rio É Tão Longe", especialmente as da primeira metade da coletânea, escritas de Bruxelas, na década de 1950. Há delícias de adjetivação e exemplos antológicos da arte de cutucar os amigos.

Com o passar do tempo, e em especial depois de 1964, a máquina de amizades, favores e relacionamentos importantes assume o primeiro plano, e seria um bom assunto para um estudo sociológico. Escritores, Itamaraty, esquerda e direita, pingue-pongue com o marechal Costa e Silva e uísques com Márcio Moreira Alves se alternam em discreta, mas incansável cordialidade. (Marcelo Coelho)




A publicação das cartas inéditas de Otto Lara Resende a Fernando Sabino é um acontecimento cultural. O livro "O Rio É Tão Longe" é a porta de entrada que deverá conduzir os leitores brasileiros a um gigantesco território literário: a correspondência que Otto Lara manteve, durante várias décadas, com numerosos interlocutores.

É provável que, no prazer e no esmero dedicado à missiva, Otto Lara só encontre um rival na literatura brasileira, Mário de Andrade. Cerca de 8.500 correspondências já foram catalogadas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que detém o acervo de Otto.

A maior parte da coleção é composta de cartas recebidas por Otto. O recluso escritor Dalton Trevisan foi quem mais lhe escreveu: são 324 cartas no total. Outras missivas abundantes são as de Sabino (166) e as do jornalistaCarlos Castello Branco (104).

"Não é novidade que Otto foi um grande missivista. As cartas são deliciosas. Em conjunto, formam um retrato político e cultural do Brasil", diz Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS.
Em 2012, a Companhia das Letras vai lançar mais um livro de cartas de Otto, provavelmente das trocadas com Paulo Mendes Campos ou Hélio Pellegrino. Em relação a Trevisan, não há previsão de lançamento -o autor ainda não foi procurado pela editora.
Trechos

É o diabo haver o sempre gente disposta ao cinismo de ter vinte anos. E é uma impiedade carregarem a gente assim contra a vontade para não sei onde, para a nostalgia dos 43 anos. Mas eu vou fazer 23, pílulas! E a vida não se limita ainda pela morte porque há caminhos que talvez seja preciso recusar.
(19 de janeiro de 1944)

E me lembrei de você também em outros momentos. Uma noite, no Curzon Hotel, Claridges Street, escovando os dentes, com a minha cara enrugada dentro do espelho, eu disse para Helena, como se concluísse um raciocínio: "O que está me faltando aqui é a companhia do Fernando Sabino!" (...) Não me aborreço, não me angustio, não me debato. Vou enfiando um dia no outro, como as contas iguais de um rosário -quantos mistérios terá?
(10 de fevereiro de 1958)

Extraídos do livro "O Rio É Tão Longe - Cartas a Fernando Sabino"

A História do Brasil tem, por exemplo, um "Hino do Deputado", que começa assim: "Chora, meu filho, chora. Ai quem não chora não mama, quem não mama fica fraco". E vai por aí afora.
(31 de julho de 1991)

Na República Velha, era todo mundo de sobrecasaca. Um calor de derreter os untos e o sujeito fechado até o último botão (...) Antigos conselheiros, os presidentes eram sisudos. Deodoro, coitado, era asmático. Aliás, asthmatico. Na velha ortografia a dispneia era maior. Getúlio foi quem inaugurou a gargalhada.
(7 de setembro de 1991)

Essa pretensão de me reinaugurar. Pulsa nela uma expectativa que se abre, quase eufórica. Um alvoroço de asas. Deixar para trás o arquivo morto, fechar a porta, selada como um túmulo. É preciso morrer para renascer (...) Poxa, quanta filigrana para chegar aonde eu quero. Visto pelo lado de fora, é só isto: deixei a barba crescer.
(9 de agosto de 1992)

Extraídos do livro "Bom Dia para Nascer"

http://sergyovitro.blogspot.com/2011/11/encontro-marcado.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário