Vinícius interroga os espíritos
Há muitas passagens dO observador no escritório, do Drummond, que eu transcreveria aqui, de tão ricas que me parecem. Poderia muito bem ser os flertes de Manuel Bandeira com as pequenas, ou as histórias do gato, que chama Garrincha, até as conversas ocasionais com Guimarães Rosa, que diz coisas místicas e incompreensíveis – soam muito bem na prosa, mas ao vivo, ficam engraçadas. Mas escolhi o episódio da mediunidade, pois, francamente, eu venderia um pedaço da minha alma pra ver a cara do Cabral enquanto o Drummond conta a noite que passou. Segue o relato.
.:
Abril, 26 – Domingo à noite, com João Cabral e Vinícius de Morais, no apartamento de Fernando Sabino. O primeiro retira-se logo. Vinícius conta-nos suas experiências mediúnicas. Em sua casa, os móveis do quarto de dormir trepidam e falam. Com o auxílio de Tati, sua mulher, que registra os fenômenos num bloco de papel, e às vezes é presa de sonolência, o poeta conversa a noite inteira com o pintor Carlos Scliar, que está vivo e combatendo alemães na Itália. Scliar chegou a fazer um desenho para ele, com dedicatória. Já ao amanhecer, exausto, Vinícius implora: “Scliarzinho, tem paciência, vai embora…” Mais tarde, soube-se que a mãe de Scliar morrera naquela mesma noite, em Porto Alegre. O poeta interceptara, pois, fluidos do artista. E o desenho que a mão de Vinícius fizera durante a comunicação à distância é reconhecido por amigos: traço de Scliar.
Diante desses e de outros fatos, proponho a Vinícius invocarmos o espírito de Mário de Andrade, falecido há dois meses. Levamos uma mesinha para a varanda, apagamos as luzes deixando acesa apenas uma, na sala de jantar, e concentramo-nos, com o pensamento em Mário. Colocamos nossas mãos sobre a mesinha, unindo os dedos. Vinícius cerra os olhos, estremece, começa a rabiscar a lápis na folha de um bloco que tem em frente. Traços desconexos, que se sobrepõem. Fernando retira a folha, e o poeta continua escrevendo em outra. As linhas não formam palavras nem desenhos perceptíveis. Afinal, sempre de olhos fechados, ele escreve canhestramente: “Direito de morrer de fome.” E o repete, várias vezes. Que significa?
Vinícius interroga o espírito, que não esclarece. Reitera a pergunta, e obtém esta informação: “Morais.” É Mário? O espírito responde: “Não.” Fernando sugere que deve ser algum parente, e o espírito responde: “Avô.” Todas as respostas são escritas pela mão de Vinícius, o que não impede que este conserve sua personalidade: pergunta lúcido e responde invocado. E há um momento em que ele interrompe a comunicação para degustar uma cerveja.
A conversa é naturalmente confusa. Não se apura se há alguém morrendo de fome, quem é esta pessoa, e o que se pode fazer para socorrê-la. Surge finalmente um nome, Glorinha. O poeta conhece uma Glorinha; será ela? O espírito manda-nos recados: Fernando está sob influências benéficas, eu sigo no caminho do dever, quanto ao poeta, precisa vencer o demônio da carne.
Há um intervalo, findo o qual o espírito que atende é Norma Leuzinger, morta há dois dias em consequência de um choque elétrico. Afirma a existência de Deus, mas não afirma coisa com coisa. Meio chateados, despedimo-nos dela, depois que Vinícius, cerimonioso, lhe perguntou se devia tratá-la de senhora ou de você.
Tentamos a comunicação através do copo, que fracassa. Então recorremos ao banco de banheiro, que se move e range penosamente sob nossas mãos. Também provoco seus movimentos, fazendo-o levantar-se ora de um ora de outro lado, com pancadinhas no chão. Não é difícil obter essas manifestações. Fernando introduz uma folha escrita no bloco usado por Vinícius para recolher a mensagem dos espíritos. A essa altura já não se pode distinguir o que vem do espaço e o que é elaborado na Terra.
Já madrugada, saímos para o Alcazar, em demanda de uns bifes. Nosso poeta insiste em não achar explicação racional para os fenômenos de que vem participando; admite que resultem de pensamentos obscuros dele próprio,Vinícius, formulados como sendo de um espírito, através de burla inconsciente. Garante que Tati, materialista convicta, vem presenciando tudo. João Cabral, a quem conto tudo depois os sucessos da noite, diz que Tati, diante do estado de transe do marido o aconselha a deixar de besteiras e ir dormir.
Diante desses e de outros fatos, proponho a Vinícius invocarmos o espírito de Mário de Andrade, falecido há dois meses. Levamos uma mesinha para a varanda, apagamos as luzes deixando acesa apenas uma, na sala de jantar, e concentramo-nos, com o pensamento em Mário. Colocamos nossas mãos sobre a mesinha, unindo os dedos. Vinícius cerra os olhos, estremece, começa a rabiscar a lápis na folha de um bloco que tem em frente. Traços desconexos, que se sobrepõem. Fernando retira a folha, e o poeta continua escrevendo em outra. As linhas não formam palavras nem desenhos perceptíveis. Afinal, sempre de olhos fechados, ele escreve canhestramente: “Direito de morrer de fome.” E o repete, várias vezes. Que significa?
Vinícius interroga o espírito, que não esclarece. Reitera a pergunta, e obtém esta informação: “Morais.” É Mário? O espírito responde: “Não.” Fernando sugere que deve ser algum parente, e o espírito responde: “Avô.” Todas as respostas são escritas pela mão de Vinícius, o que não impede que este conserve sua personalidade: pergunta lúcido e responde invocado. E há um momento em que ele interrompe a comunicação para degustar uma cerveja.
A conversa é naturalmente confusa. Não se apura se há alguém morrendo de fome, quem é esta pessoa, e o que se pode fazer para socorrê-la. Surge finalmente um nome, Glorinha. O poeta conhece uma Glorinha; será ela? O espírito manda-nos recados: Fernando está sob influências benéficas, eu sigo no caminho do dever, quanto ao poeta, precisa vencer o demônio da carne.
Há um intervalo, findo o qual o espírito que atende é Norma Leuzinger, morta há dois dias em consequência de um choque elétrico. Afirma a existência de Deus, mas não afirma coisa com coisa. Meio chateados, despedimo-nos dela, depois que Vinícius, cerimonioso, lhe perguntou se devia tratá-la de senhora ou de você.
Tentamos a comunicação através do copo, que fracassa. Então recorremos ao banco de banheiro, que se move e range penosamente sob nossas mãos. Também provoco seus movimentos, fazendo-o levantar-se ora de um ora de outro lado, com pancadinhas no chão. Não é difícil obter essas manifestações. Fernando introduz uma folha escrita no bloco usado por Vinícius para recolher a mensagem dos espíritos. A essa altura já não se pode distinguir o que vem do espaço e o que é elaborado na Terra.
Já madrugada, saímos para o Alcazar, em demanda de uns bifes. Nosso poeta insiste em não achar explicação racional para os fenômenos de que vem participando; admite que resultem de pensamentos obscuros dele próprio,Vinícius, formulados como sendo de um espírito, através de burla inconsciente. Garante que Tati, materialista convicta, vem presenciando tudo. João Cabral, a quem conto tudo depois os sucessos da noite, diz que Tati, diante do estado de transe do marido o aconselha a deixar de besteiras e ir dormir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário