Onde é que você gostaria de estar agora, nesse exato momento?
Fico pensando nos lugares paradisíacos onde já estive, e que não me custaria nada reprisar: num determinado restaurante de uma ilha grega, em diversas praias do Brasil e do mundo, na casa de bons amigos, em algum vilarejo europeu, numa estrada bela e vazia, no meio de um show espetacular, numa sala de cinema assistindo à estreia de um filme muito esperado e, principalmente, no meu quarto e na minha cama, que nenhum hotel cinco estrelas consegue superar – a intimidade da gente é irreproduzível.
Posso também listar os lugares onde não gostaria de estar: num leito de hospital, numa fila de banco, numa reunião de condomínio, presa num elevador, em meio a um trânsito congestionado, numa cadeira de dentista.
E então? Somando os prós e os contras, as boas e más opções, onde, afinal, é o melhor lugar do mundo?
Meu palpite: dentro de um abraço.
Que lugar melhor para uma criança, para um idoso, para uma mulher apaixonada, para um adolescente com medo, para um doente, para alguém solitário? Dentro de um abraço é sempre quente, é sempre seguro. Dentro de um abraço não se ouve o tic-tac dos relógios e, se faltar luz, tanto melhor. Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve.
Que lugar melhor para um recém-nascido, para um recém-chegado, para um recém-demitido, para um recém-contratado? Dentro de um abraço nenhuma situação é incer-ta, o futuro não amedronta, estacionamos confortavelmente em meio ao paraíso.
O rosto contra o peito de quem te abraça, as batidas do coração dele e as suas, o silêncio que sempre se faz durante esse envolvimento físico: nada há para se reivindicar ou agradecer, dentro de um abraço voz nenhuma se faz necessária, está tudo dito.
Que lugar no mundo é melhor para se estar? Na frente de uma lareira com um livro estupendo, em meio a um estádio lotado vendo seu time golear, num almoço em família onde todos estão se divertindo, num final de tarde à beira-mar, deitado num parque olhando para o céu, na cama com a pessoa que você mais ama?
Difícil bater essa última alternativa, mas onde começa o amor, senão dentro do primeiro abraço? Alguns o consideram como algo sufocante, querem logo se desvencilhar dele. Até entendo que há momentos em que é preciso estar fora de alcance, livre de qualquer tentáculo. Esse desejo de se manter solto é legítimo, mas hoje me permita não endossar manifestações de alforria. Entrando na semana dos namorados, recomendo fazer reserva num local aconchegante e naturalmente aquecido: dentro de um abraço que te baste.
Autógrafo em O Lustre, da
biblioteca de Benjamin Moser
Sabe
quem é o autor mais citado no twitter? Sim, é Clarice Lispector. Diz
levantamento recente do YouPix que ela é citada 3,5 mil vezes por dia. "Ah, mas
muitas frases não são delas", tem gente que reclama. Também não faltam gaiatos
para escrever uma sandice qualquer e assinar Clarice Lispector como se isso
fosse muito, mas muito engraçado. Pra mim, se 10% das frases forem verdadeiras
já é o máximo. Gosto
dessa faceta pop de Clarice que em vida esteve longe de ser campeã de vendas e
precisou ralar em trabalhos para jornais e traduções para sobreviver. E ela
ainda tinha a fama de “diferente”, desde os primórdios, como mostra
essa
matéria
abaixo, de 17 de março de 1946, de Solena Benevides Viana, a mesma da entrevista do
post anterior. Aqui, a jornalista escreve sobre o primeiro encontro com Clarice
que estava no Rio para lançar seu segundo livro. E só pode ter sido nesse
encontro que Clarice autografou O
Lustre
para Solena e esse exemplar faz parte da biblioteca brasileira de Benjamin
Moser, autor da biografia Clarice,. Gentilmente, Benjamin, o enviou (foto
acima).
Abaixo,
a matéria publicada na coluna Miscelania do Suplemento literário do jornal
carioca Amanhã.
Ao saber que Clarice Lispector estava no
Rio, de passagem, resolvi aproveitar a oportunidade e agradecer-lhe uma antiga
gentileza. Confesso, também, que me movia uma certa curiosidade de
conhecer pessoalmente a escritora que, durante algum tempo serviu de assunto à
grande parte das “rodinhas” literárias da cidade e, principalmente, às dos
novos.
Não só o seu primeiro livro foi discutidíssimo, levantando a comentada questão
sobre se a autora teria sofrido ou não influência de Joyce – contra o que
há o argumento de que o seu livro já estava escrito quando travou conhecimento
com a obra do grande autor inglês – como a própria Clarice Lispector passou a
figurar na lista das pessoas “diferentes”.
Telefonei-lhe, pois, e marcamos um encontro que não teve, em absoluto, caráter
de entrevista. Foi apenas uma palestra cordial sem a preocupação de
colher informações, que versou sobre assuntos os mais variados. Uma miscelânia,
enfim.
Para
começar, Clarice pode ser “diferente”
mas não no sentido que lhe querem dar. Fisicamente é uma moça esbelta, alta,
loura, de olhos claros, de maneiras simples e naturais. Não se mostra demasiado
expansiva, nem muito retraída. Como se vê, portanto, até agora – nada de
“diferente”.
Confessou-me, com toda a sinceridade, estar naquele dia em ótima
disposição de espírito,
não obstante o calor – que era tremendo!!! – o que nem sempre se verificava.
Mas, qual é aquele que se pode gabar de conservar inalterável o seu
humor!
Estudou
direito, interessada sobretudo em direito penal; todavia, entre outras coisas,
depois de tomar parte num júri simulado desinteressou-se da aludida
disciplina e passou a cogitar de outros afazeres. Exerceu atividades
jornalísticas durante quatro anos, tendo trabalhado inclusive em “A Noite”. Em
1944, embarcou para Nápoles, onde residiu dois anos no Consulado por
falta de habitações e, hoje em dia, a sua maior aspiração é... uma
casa!
Na
Itália, as perturbações da época interfiriram na sua vida. Passou cerca
de um ano quase sem sair de Nápoles, limitando-se a fazer algumas viagens a
Roma. Ultimamente conseguiu ir a Florença. Apesar dos naturais estragos causados
pela guerra a maioria das obras de arte foi poupada. Várias galerias ainda estão
fechadas, num trabalho de reforma e reorganização. Toda a Itália, aliás, se
ergue aos poucos. E aos poucos renascerá o seu ânimo e a sua
glória.
Quanto
ao movimento literário italiano, dentro do âmbito restrito que lhe foi dado
observar, o último conflito mundial nada introduziu de especialmente novo. As
antigas tradições continuam a predominar, e o trabalho prossegue com esforço e
esperança. A escultura e a pintura, segundo observou Clarice Lispector, estão
sob a força de um grande impulso, tendo na vanguarda nomes como o de
Leonor, Fazzini, Savelli, Guzzi, De Chirico.
As
condições
de vida
na Itália a seu ver, são precárias, mas caminha-se para uma lenta reorganização.
Os sofrimentos
suportados
incutiram nas criaturas uma nova coragem, permitindo-lhes encarar com ânimo
forte situações desesperadoras. Certa vez, por exemplo, encontrou um rapaz
iugoslavo aparentemente alegre, lançando mão de seus conhecimentos linguísticos
para sustentar-se, enquanto aguardava oportunidade de embarcar com destino ao
Brasil. Pouco depois foi surpreendido com a informação de que perdera toda a
família na Iugoslávia. E acidentes desta natureza repetem-se
diariamente.
Os
gêneros alimentícios e artigos de primeira necessidade são vendidos por alto
preço. O café, por exemplo, está a 2000 liras o quilo. Um negociante que
se lembrou de vender camisas por 150 liras cada uma, acabou forçado a recorrer à
intervenção da polícia. Lá também as atividades do câmbio negro são
intensas.
Nesta
altura da palestra, a escritora declarou-me – mais uma prova de que não é assim
tão “diferente” – que pagou o seu tributo à decantada “saudade da pátria
distante” e procurou mimitiga-la tomando... caldo de cana, bebida na qual
antes, no nosso país, pouco pensava.
Portanto,
diante do que acima ficou exposto, muitas pessoas devem estar conjecturando até
agora: “uma criatura, assim tão humana, que sente saudades como toda gente e age
com tamanha simplicidade, será mesmo “diferente”?
Sim,
Clarice Lispector é “diferente”. É “diferente” na aplicação das
suas energias, no amor ao trabalho, na sua produção literária. Sente
necessidades de escrever, e quando dá início a uma obra a ela se consagra
inteiramente. Não vacila em admitir a importância que atribui ao seu trabalho, o
esforço dispensado à sua elaboração. E, por isso mesmo, embora respeite a
opinião do público, regogizando-se quando nele encontra ressonância, coloca
acima de tudo o mundo interior do escritor, o impulso criador que o
animou e a liberação absoluta doseu
eu.
O
seu estilo é único e escapa, muitas vezes, à percepção do leitor
apressado. Não se pode ler um romance de Clarice Lispector como um simples
passatempo, seguindo o enredo, salientando esta ou aquela imagem interessante. A
sua intensidade exige do leitor o mesmo esforço de concentração com que foi
escrito; faz doer os nervos. E assim Perto do Coração Selvagem
surgiu inopinadamente na nossa literatura e nela permanece até hoje como um
marco isolado.
Clarice
Lispector acaba de publicar, pela editora Agir, O Lustre. Neste novo
romance – fruto também de intenso labor – o ardor primitivo cedeu lugar à
reflexão comedida, à psicologia sutil da análise dos sentimentos desordenados a
uma poesia pessimista e vaga, que a cada passo se
manifesta:
-
Dez é como domingo. A gente pensa que domingo é o fim da semana passada,
não é? mas já é o começo da outra. A gente pensa que dez é o fim de nove, não é?
mas já é o príncipío de onze.
E
ainda mais adiante, quando Virginia – a personagem principal – ao
observar os bonecos de barro que modelara reflete:
“...
mesmo bem acabados eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas
vagamente pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem
destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar
por eles mesmos, se isso fosse possível.
E
as dificuldades surgiam como uma vida que vai
crescendo”.
Na
sua visão sombria, ou talvez fosse melhor dizer, na crueza da sua
realidade, dentro da originalidade que o caracteriza, o livro assinala mais
uma vitória para sua autora.
Vivia a te buscar Porque pensando em ti Corria contra o tempo Eu descartava os dias Em que não te vi Como de um filme A ação que não valeu Rodava as horas pra trás Roubava um pouquinho E ajeitava o meu caminho Pra encostar no teu
Subia na montanha Não como anda um corpo Mas um sentimento Eu surpreendia o sol Antes do sol raiar Saltava as noites Sem me refazer E pela porta de trás Da casa vazia Eu ingressaria E te veria Confusa por me ver Chegando assim Mil dias antes de te conhecer
Façam uma idéia do orgulho que senti quando, colheres postas nos pratos, ouvi mamãe dizer:
- Foi a melhor canja de galinha que já comi na vida…
E como se não bastasse, vovó, do alto de seus 84 anos, anuiu:
- Eu também!
Diante de duas confissões tão pungentes decidi dividir com vocês, meus poucos mas fiéis leitores, como venho fazendo com alguma regularidade, a receita de mais esse prato, esse clássico que é a canja de galinha. E vou lhes contar como foi, timtim por timtim.
Liguei ontem cedo (eu preparei, à noite, uma canja de galinha em homenagem à memória de minha bisavó, mãe de vovó e vó de mamãe, desde 17 de dezembro de 1982 noutras plagas) pra Casa Ribeiro Aves, na rua do Matoso (leiam sobre ela aqui), telefone 2273-0896. Pedi ao Márcio (seguramente um dos mais grossos comerciantes de que se tem notícia, salve a Tijuca!) duas galinhas vermelhas devidamente abatidas e limpas. Paguei R$ 30,00 pelas aves, que me foram entregues em menos de meia hora, devidamente cortadas, com a carcaça, com os pés, com as ovas e tudo o mais. E fui às compras. Eis, tomem nota, o que usei (éramos cinco)…
Para o caldo, usei as carcaças e os pés das galinhas, muito bem lavadas com limão e vinagre, 1 cebola inteira com casca, 5 dentes de alho inteiros com casca, 1 tomate inteiro com casca, 2 talos de aipo, 1 caule de alho-poró, 5 folhas de louro fresco, talhos e folhas de um molho de salsinha, sal a gosto (pouco), pimenta-do-reino preta moída na hora, 3 litros d´água e azeite extra-virgem para regar.
Para a canja propriamente dita, os pedaços das galinhas (valendo usar os fígados, os corações, as moelas…), 4 colheres de sopa de azeite extra-virgem, 1 cebola picada em cubos, 2 dentes de alho picados em cubos, 2 talos de aipo em cubos, 1 caule de alho-poró também em cubos, 5 galhos de tomilho fresco, 1 xícara de arroz, 1 tomate sem casca e sem semente cortado em cubos, 2 cenouras raladas grosseiramente, azeite extea-virgem para regar, salsinha e cebolinha picadas grosseiramente, sal a gosto e, para pôr no final, talos de cebolinha cortados na transversal e deixados de molho na água com gelo.
Como diria minha cunhada, monte a praça antes de qualquer coisa…
Antes de mais nada, prepare o caldo… Ponha todos os ingredientes em um caldeirão, cubra com a água e regue, de leve, com o azeite. Leve ao fogo e deixe ferver por meia hora, 40 minutos. Depois, passe pelo chinois (aguardo sua esculhambação, Luiz Antonio Simas), passe tudo para uma panela e deixe ferver um bocado para reduzir o caldo e concentrar, ainda mais, os temperos (esqueça, para sempre, caldos industrializados em cubinhos!). Feito isso, reserve.
É hora de se preocupar com a canja!
Numa panela grande de fundo bem grosso, aqueça o azeite e refogue a cebola e o alho. Pouco depois, junto o aipo, o alho-poró e o tomilho. Sirva-se de uma dose de Red Label e aproveite o perfume, agudíssimo, do refogado. Refogue mais um pouco com fogo médio e ponha, aos poucos, os pedaços de galinha na panela. Logo depois, quando a galinha ameaçar ganhar cor, ponha o arroz.
Despejo o caldo imediatamente em seguida. Prove do sal e, se necessário, faça o ajuste conforme seu gosto.
Deixe fervendo em fogo médio…
Quando o arroz estiver cozido adicione ao caldo, pela ordem, o tomate em cubos, as cenouras, a salsinha, a cebolinha e note que a cor vai tomar conta da panela – sirva-se da segunda dose em homenagem a esse espetáculo.
Deixe levantar fervura por uns 5 minutos.
Desligue o fogo.
Com um pegador, pesque cada um dos pedaços de galinha e retire-os da panela. Numa tábua, corte a carne desprezado os ossos. Volte a carne, com alguns pedaços desfiados, para a panela.
Deixe ferver por mais uns 5, 10 minutos e, pouco antes de desligar o fogo (próximo passo!), ponha com cuidado sobre o caldo as ovas da galinha… gema pura, uma delícia!
Desligue o fogo.
Sobre o caldo, coloque as tiras de cebolinha que, cortadas na transversal, ganharão a aparência de um spaghetti verde (as tiras ficarão naturalmente encaracoladas, vejam na fotografia!).
Regue com azeite extra-virgem e sirva!
À mesa, tenha pão francês fatiado para acompanhar a canja.
Para acompanhar a canja e o pão, um vinho tinto que ninguém é de ferro.
Um prato fundo, de preferência egresso de louças de família, e bom apetite!
Relembre abaixo os dez principais momentos da vida e da carreira de Gilberto Gil.
GIL TROPICALISTA
Nos anos 1960, Gilberto Gil e Caetano Veloso lideraram uma revolução na música brasileira, o tropicalismo. O movimento propunha a mistura de ritmos brasileiros (samba, bossa, baião) com rock e até música erudita. O estouro tropicalista aconteceu no festival da música brasileira de 1967, quando Gil apresentou "Domingo no Parque" e Caetano, "Alegria, Alegria". O disco O segundo álbum de Gil, "Gilberto Gil" (1968), é uma das obras-primas do tropicalismo. Com arranjos do maestro Rogério Duprat e acompanhamento d'Os Mutantes, o cantor interpreta clássicos como "Domingo no Parque", "Marginália II" e "Frevo Rasgado". Samba, baião e frevo convivem com rock e psicodelia e o experimentalismo se mistura com o popular.
GIL EXILADO
Em 1969, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos. Acusados de "subversão" pela ditadura militar, ambos se exilaram em Londres. Na Inglaterra, Gil começou a tocar com músicos locais (fez até uma jam session com Dave Gilmour, do Pink Floyd) e fez shows em outros países da Europa, como França e Alemanha. Em 1971, gravou um disco em inglês, chamado "Gilberto Gil". O disco O disco britânico de Gil tem oito faixas em inglês. Há canções só de Gil ("Nêga"), e parcerias com Jorge Mautner ("Crazy Pop Rock"), além de uma versão em inglês de "Volks Volkswagen Blue" e um cover de "Can't Find My Way Home", do Traffic. Naquele mesmo ano, Gil começou a trabalhar num segundo álbum britânico, mas abandonou o projeto.
GIL NO BRASIL
Em janeiro de 1972, Gil retorna ao Brasil. Mas os problemas com a ditadura continuam - "Cálice", sua parceria com Chico Buarque, foi censurada e só pôde ser lançada em 1978. Após a volta, faz shows por todo o país e apresenta novas músicas, que depois entrariam no disco "Expresso 2222" (1972). Também lança uma série de músicas só em compacto, com destaque para "Maracatu Atômico" (1973). O disco O álbum "Expresso 2222" (1972) abre com "Pipoca Moderna", tocada pela banda de pífanos de Caruaru. A presença do tradicional grupo pernambucano representa a volta de Gil a suas raízes brasileiras, reforçada em regravações de Gordurinha ("Chiclete com Banana") e João do Vale ("O Canto da Ema"). Das composições próprias, destaque para "Expresso 2222", "Oriente" e "Back in Bahia".
GIL PRESO
Em 1976, Gilberto Gil foi preso por porte de maconha. A detenção aconteceu no dia 7 de julho, durante um show dos Doces Bárbaros (grupo formado por Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia) em Florianópolis. Após admitir que era usuário da droga, ele e o baterista da banda, Chiquinho Azevedo, tiveram que passar por tratamento médico. O disco O álbum duplo "Doces Bárbaros" foi gravado ao vivo durante a turnê em que Gil foi preso por porte de drogas. Ao lado de Caetano, Gal e Bethânia, ele interpreta canções até então inéditas. Entre elas, músicas que depois se tornariam clássicas, como "Esotérico" e "Um Índio". Das composições de Gil, o grande destaque é "O Seu Amor".
GIL NA ÁFRICA
No início de 1977, Gilberto Gil fez uma série de shows em Lagos, na Nigéria. A passagem pela África foi uma experiência transformadora, e o resultado foi o disco "Refavela", lançado naquele mesmo ano. A influência da música originária do Golfo da Guiné pode ser sentida, por exemplo, em canções como a própria "Refavela" e em "Babá Alapalá", "Balafon" e "Patuscada de Gandhi". O disco "Refavela" (1977) é a segunda parte de uma trilogia, que começou com "Refazenda" (1975) e terminaria com "Realce" (1979). É o trabalho mais "africano" de Gil. Canções como "Babá Alapalá" e "Balafon" são claramente influenciadas pelo continente negro, mas também há baladas ("Sandra"), toques nordestinos ("Norte da Saudade") e uma recriação bem pessoal de Tom Jobim ("Samba do Avião").
GIL POP
Gilberto Gil já era um artista famoso desde os anos 1970, mas sua popularidade deu um salto após o sucesso de "Realce", de 1979. Ele então iniciou os anos 1980 liderando as paradas em todo o Brasil, com músicas como "Toda Menina Baiana", "Palco", "Andar com Fé" e "Drão", entre outras. Nessa mesma época, consolidou sua carreira internacional, com turnês constantes pelo hemisfério norte. O disco Após o estouro de "Realce", seu disco mais vendido até então, Gil iniciou uma parceria com o produtor Liminha. O pontapé inicial foi o álbum "A Gente Precisa Ver o Luar", de 1981. O trabalho tem todas as características do Gil dos anos 1980: apelo pop, produção cristalina, um toque de reggae. Destaque para os hits "Palco" e "Se Eu Quiser Falar com Deus".
GIL ACÚSTICO
Em 1994, Gilberto Gil foi apresentado a um público mais jovem. Foi quando ele gravou o disco "Gilberto Gil Unplugged", um dos primeiros acústicos da MTV brasileira. Foi também um dos maiores sucessos da carreira do cantor, e rendeu uma extensa turnê, que durou cerca de um ano e meio e passou por boa parte do planeta - incluindo seus primeiros shows no Chile e no Uruguai. O disco "Gilberto Gil Unplugged" foi gravado ao vivo no final de 1993 e lançado no ano seguinte. O repertório mistura alguns dos maiores sucessos da carreira de Gil ("Palco", "Aquele Abraço", "Realce") com algumas surpresas ("Sampa" e "A Novidade", que ele nunca havia gravado), todas em versões acústicas. É, ao lado de "Realce", o trabalho mais vendido de sua carreira.
O forró e o baião de Luiz Gonzaga são influências marcantes desde o início da carreira de Gilberto Gil - seu disco de 1969 já trazia uma canção dele, "17 Léguas e Meia". Mas, em 2000, ele deixou essa influência explícita pela primeira vez ao assinar a trilha sonora do filme "Eu Tu Eles". Uma das canções, "Esperando na Janela", estourou nas rádios de todo o país.
O disco A trilha sonora de "Eu Tu Eles" é composta principalmente de versões de clássicos de Luiz Gonzaga - "Asa Branca", "Assum Preto", "Qui Nem Jiló" e outras. Gil também compôs duas inéditas ("O Amor aqui de casa" e "As Pegadas do Amor") e regravou "Lamento Sertanejo". Mas o grande hit do álbum é "Esperando na Janela", um baião de de Targino Gondim que foi uma das músicas mais tocadas daquele ano.
GIL MINISTRO
Nos anos 1980, Gilberto Gil já havia se aventurado na política, cumprindo um mandato como vereador em Salvador pelo PMDB. Depois de anos dedicando-se somente à música, em 2003 ele assumiu o Ministério da Cultura no governo Lula. Uma das principais características de sua gestão foi a defesa da flexibilização dos direitos autorais. Em 2008, deixou o cargo. O disco Em 2008, pouco antes de pedir demissão do Ministério da Cultura, Gil lançou o disco "Banda Larga Cordel". Composto por 16 canções inéditas, o álbum foi lançado primeiro na internet. O cantor também fez shows com transmissão ao vivo pela rede, além de ter disponibilizado as canções para qualquer pessoa fazer seu remix.
GIL RETROSPECTIVO
Após deixar o Ministério da Cultura, Gilberto Gil dedicou-se a produzir material inédito ("Banda Larga Cordel", "Fé na Festa"), mas também a lançar releituras de sua própria obra. Em 2009, por exemplo, interpretou canções antigas no formato voz o violão no CD e DVD "Banda Dois". No final deste ano, lança outro CD e DVD, desta vez revisitando sucessos acompanhado de uma orquestra. O disco Em "Banda Dois", gravado ao vivo num teatro em São Paulo, Gilberto Gil canta alguns de seus clássicos ora acompanhado só de seu violão, ora também com o violão de seu filho, Bem Gil. As poucas exceções são "Amor Até o Fim", em que ele divide os vocais com Maria Rita, e "Refavela", "Babá Alapalá" e "Expresso 2222", em que outro filho, José, toca baixo e percussão.
O fogo já tava morrendo nas ultimas brasas
da fogueira, que estivera acessa desde o dia 23, atravessara a noite de São
João, assistindo a vigília do trabalho da parteira bêbeda que assistia minha
mãe no seu terceiro parto no embrenhado das caatingas, Macururé. De repente, no
alvorecer do dia 25 de Junho, eis que meu pai desperta os companheiros de farra
e de espera “Pode começar a festa a menina já nasceu”!!!
Se foi bem assim eu não sei, mas, assim eu
imagino que foi.... e minha historia começou com foguete, rojão, zabumba,
foguetório e arrasta pé. De que outro jeito poderia ser pra justificar esse
fogo que carrego debaixo das saias desde então????
Ai, Xangô, Xangô menino Da fogueira de São João Quero ser sempre o menino, Xangô Da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino De beleza sem razão Tome conta do destino, Xangô Da beleza e da razão
Viva São João Viva o milho verde Viva São João Viva o brilho verde Viva São João Das matas de Oxóssi Viva São João
Olha pro céu, meu amor Veja como ele está lindo Noite tão fria de junho, Xangô Canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício Quero ser sempre o menino As estrelas deste mundo, Xangô Ai, São João, Xangô Menino
Viva São João Viva Refazenda Viva São João Viva Dominguinhos Viva São João Viva qualquer coisa Viva São João Gal canta Caymmi Viva São João Pássaro proibido Viva São João
Ponto de Xangô adaptado por Ely Camargo
Meu pai São João Batista é Xangô Ele é dono do meu destino até o fim O día que me faltar a fé no meu señor Derruba essa pedrera sobre mim
Finalzinho
de 1968. Nelson Motta, 24 anos, assinava coluna diária no Jornal Ultima
Hora. Roda viva era o nome, o mesmo da música de Chico Buarque, que tinha
a mesma idade de Nelson, compusera no ano anterior. Em dezembro, ele publicou
uma carta de Vinicius de Moraes, 55 anos, que fazia shows em
Lisboa com Baden Powell e a cantora Márcia, para Chico Buarque.
Vinicius, que se diz em lua-de-mel com Cristina Gurjão, sua sexta mulher, se
delicia com o “falar” dos lusos, dá conselhos ao futuro papai Chico e conta um
papo com Tom Jobim de Las Vegas e fala sobre a curva descendente dos
festivais de música no Brasil: “estão se transformando em verdadeiras partidas
de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais
participarei, pois detesto todo gênero de competição”.
Antes de publicar a carta,
Nelson Motta faz uma introdução sobre o sucesso dos "shows recitais" de Vinicius
em Lisboa, no Teatro Villaret e na boate Ad Lib e diz que
“Vinicius iniciou esse seu show com uma carta a Chico Buarque de Holanda seus
amigo de todas as horas”. Logo abaixo vem a carta com data de 13 de dezembro.
Atenção na data: é a da decretação do AI-5. A temporada, conta José
Castelo conta na bio O Poeta da Paixão, começou dia 11 e no show do tal
dia 13, antes de encerrar com Canto de Ossanha, Vinicius fez um discurso
inflamado, e leu seu poema Pátria Minha, o que lhe causou problemas com a
ditadura salarazista que reinava no País.
Abaixo, a carta de
Vinicius para Chico.
Lisboa,
sexta-feira, 13 dezembro
Chico
querido:
Pois, pois. Aqui estamos
nós, Márcia, Baden e eu, num dos teatros mais prestigiosos de Lisboa, o
Villaret, para fazer um showzinho de música e poesia também, como gostamos de
apresentar – bem informal, em comunicação bem íntima com as pessoas. As pessoas,
pelo que pude notar, são lindas de morrer. Mas não há perigo. Cristina está
presente, e nossa lua-de-mel corre mais doce que ovos moles d’Aveiro.
Você já provou ovos moles d´Aveiro, Chico? É de comer em prantos. Melhor que
isso só mulher, isto é, Cristina. Pena eu estar em dieta de emagrecimento. Mas
felizmente não estou em dieta de Cristina.
E você, Chiquinho, como
vai essa gravidez? O “miúdo” já está a se revelar um novo Pelé no ventre
paterno, aos pontapés, ou tem tendências abstratas, como os poetas novos, aos
quais ninguém ouve? Diga a Marietinha que não se preocupe não, porque tudo vai
correr muito bem para você. Faça respiração de cachorrinho durante as
contrações, como manda o método Lamase, e você não vai sentir dor alguma –
ouviu, papai inchado? E por falar nisso, “miúdo” aqui é o equivalente de
menino. E trem é comboio. E alô é tá. É engraçado e bonito. E quando
uma pessoa é muito bacana, caindo de bossa, diz-se que tem piada, que é giro.
Você aqui teria muita piada, seria
“girérrimo”.
Ontem, consegui falar
com o nosso querido maestro Antônio Carlos Jobim em Las Vegas,
onde ele está com o Frank Sinatra, trabalhando num novo disco. Pois imagina que
disse só assim à telefonista internacional – “olha aqui, minha filha, eu
preciso muito falar com o maestro Tom Jobim nos Estados Unidos, sei que ele está
gravando com o Frank Sinatra. Me podia fazer o favor de caçá-lo para mim?” E
dez minutos depois ouvi a voz de Tom que me perguntava: “Onde está você?” E eu
respondi: “Em Lisboa”. E ele disse: “Que coisa boa!” E eu lhe perguntei: - E eu
lhe pergunto: - E você onde está?” E ele retrucou: “Estou em Las Vegas” E eu:
“Ai não me pegas”.
E ele falou: “Que estás
fazendo?” E eu respondi: “Um show com o Baden e a Marcinha”. E ele, com um
profundo suspiro intercontinental: “Ah, que coisinha!” E meu parceiro
sabe o que diz!
***
Fiquei contente em saber
que você tirou o primeiro lugar no júri popular do IV Festival da Record.
Eu acho que os festivais brasileiros estão se transformando em verdadeiras
partidas de futebol – eu por exemplo, enquanto eles estiverem assim, não mais
participarei, pois detesto todo gênero de competição. Mas gostei de conhecer
o Eusébio, com quem bati um papo ameno, depois do jogo entre o Benfica e o
CUF. Você sabe, Chico, que Cristina é torcedora do Flamengo tão violenta que
embora nós tivessemos sido convidados para o jogo pelo CUF, em recinto privado,
ela teve o topete de agitar uma flâmula do Benfica, que é o correspondente
português do Flamengo, e torcer por sua vitória? Eu confesso que tive medo que
os dirigentes do CUF nos chutassem para
“córner”.
Estou contente porque
vamos passar o Natal juntos em Roma e tomar um porre firme e cantar
juntos e dar muitos “manguitos” (que é o correspondente de banana) para as
estátuas dos imperadores romanos. Foi em Roma que eu conheci você menino, e
você, seu safadinho, enquanto eu bebia com seu pai, ficava no alto da escada, no
meio da madrugada, só para nos ouvir
cantar.
***
Marcinha chegou hoje. Agora
nós vamos começar nosso “show” naquela base simples de amor e comunicação como
você, Baden e eu gostamos de fazer – e Marcinha de interpretar. O que nos
motiva é o amor. Não é o amor que move o Sol e outras estréias, como disse
Dante Aligheri?
Outro dia minha mulher
riu-se muito quando eu lhe disse que o amor cura o câncer. E cura mesmo! E
não é outra a razão porque Márcia veio de São Paulo, Baden de Paris e eu do Rio,
para esta comunicação linda e indispensável à nossa vida de artistas. E ao levar
a vocês nossa poesia e nossas canções, nós o fazemos – insisto mais uma vez em
dizê-lo – só por amor. Só amor.
Uma canção pode ter várias encarnações. Composta ou gravada num determinado contexto histórico, pode voltar à tona anos depois, num contexto diferente, ou correlato, na mesma gravação ou em outra que a releia e posicione perante o novo cenário. Em alguns casos, datada a princípio, tem uma segunda chance de mostrar perenidade para além da especificidade que a motivou. E em outros a canção já tinha em si esta capacidade de ultrapassar a significação imediata, mas precisou desta segunda exposição para isto ficasse mais claro a mais gente.
O período da ditadura militar brasileira foi pródigo em canções assim. Muitas serviram a seu tempo dignamente com metáforas e alusões que se esforçavam ao mesmo tempo por se fazer compreender e passar despercebidas. Tratavam do tempo presente, dos homens presentes, da vida presente, como disse Drummond em tempos de guerra, bem antes. E não se preocupavam muito com a própria sobrevivência como canções. No entanto outras, abaixo da casca de decifração direta, guardavam sementes de outras leituras, porque não se limitava a tratar do drama de sua época, que já era tremendo, mas o identificavam com questões ainda mais amplas, que dizem respeito a qualquer época, qualquer país, qualquer homem. Vapor Barato, de Jards Macalé e Waly salomão, foi composta em 1970 e gravada por Gal Costa em 1971, no álbum Fa-tal – Gal a todo vapor, correspondente ao show de mesmo nome dirigido por Waly, que marcou a carreira da cantora. A canção foi feita em circunstâncias políticas e culturais muito difíceis, de repressão política duríssima, no período que foi intitulado Anos de Chumbo e que teve como resposta de uma parte da juventude o desbunde, uma reação de quem não suportava o que via à volta e voltava-se para valores espirituais; não se encontrava na cultura vigente e inventava uma contracultura.
A canção está impregnada destes fatos. Mas ela sobrevive a eles, recusando-se a ser um mero documento de uma época. De maneira quase casual, ela ressurgiu aplicada a uma nova circunstância histórica, e assim evidenciou-se a sua transcendência a estas circunstâncias. Vapor Barato trata da busca humana de um lugar no mundo, e do exílio deste lugar. Como o escritor italiano Primo Levi, que no título do livro que conta sua experiência no campo de concentração nazista de Auschwitz, pergunta: É isso um homem?, transformando num questionamento existencial sua vivência pessoal, Wally Salomão (á época Sailormoon), antes de falar de sua experiência objetiva, fala do seu exílio interno, de um país que o abandonava em vez de ser abandonado. Ele conta:
Começamos a trabalhar exatamente naquele período que marcava um vazio depois do AI-5, depois de tudo o que foi o tropicalismo em 1968 e que foi cortado violentamente no final daquele ano. 69 começava como um período de esmagamento total, vindo de cima, do poder. A gente conversava muito e eu ficava incitando Macalé a quebrar os vínculos com remanescentes da bossa nova ou então com a música de concerto, com aquele perfeccionismo. Insistia na necessidade dele criar um espaço próprio. Isso era fundamental naquele momento – uma voz que continuasse cantando e mantivesse acesa a chama. Nessa época escrevi e Macalé musicou Vapor Barato, de letra oposta à tendência liricista e nebulosa que predominava. Era direta, frontal, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto.
Waly não conta, mas Macalé sim, que Waly foi preso e torturado no presídio de Carandiru. Vapor Barato nasceu daí. Os lancinantes oito minutos e meio da gravação de Gal Costa são o lamento de quem se perde de um país. É fácil buscar mensagens (nem tão) cifradas na letra: calças vermelhas, casaco de general, o recado é óbvio. E no entanto, está longe de explicar tudo.
Gal – 1971, álbum Fa-tal
A estrutura de Vapor Barato é franciscana. Tom menor, quatro acordes descendentes em direção à dominante, e é tudo. Jards diz que todo mundo tocava a canção à época. A melodia segue a direção dos acordes, descendente, linear, cansada, quase falada, subindo apenas no último acorde para preparar o retorno à tônica e a frase seguinte, num passo a passo desalentado, extenuado. Até chegar ao refrão.
O refrão, de duas palavras. O refrão, elementar, cru, estrangeiro, rompendo a barreira do agudo e despejando dor. Todo o desalento da letra da canção aqui se transforma em torrente, como um uivo para a lua – e Gal, efetivamente, no fim da música abandona a letra e se lança em vocalizes que são quase uivos, contrastando com os scats nasais, comedidos do início. Como também ao cantar eu quero esquecê-la / eu preciso, em que o quase grito da segunda frase contradiz a primeira e mostra o esforço violento deste esquecimento forçado, contra a vontade, necessário como forma de sobrevivência. Gal canta a canção duas vezes, a primeira acompanhada apenas por um violão batido com fúria, da maneira mais elementar, o contrário do Jards Macalé profundamente influenciado por João Gilberto. E na segunda vez um trio bluesly passa a soar. Blues, canto de exílio. Toda a solidão do mundo ressoa.
Corta para 1995. O cineasta Walter Salles filma Terra Estrangeira, com a atriz Fernanda Torres. Fernanda, num intervalo das filmagens, começa a cantarolar uma canção. Walter Salles decide incorporá-la ao filme, daquele jeito mesmo, cantada à capela pela personagem dela. E nos créditos pôs a gravação integral de Gal Costa.
O enredo de Terra Estrangeira se passa em 1990, logo após a ascenção de Collor à presidência, e o confisco do dinheiro das cadernetas de poupança, as economias e a esperança de boa parte da população. No momento maior da volta da democracia, uma fraude tinha lugar, e o país adiava o encontro consigo mesmo. No filme, personagens premidos pela crise econômica emigram para Portugal. Os versos de Vapor Barato voltam a fazer sentido quase literal: eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.
Em 1996, a canção é gravada pelo grupo O Rappa, em seu primeiro álbum, Rappa Mundi.
A versão do Rappa segue por um caminho diverso ao de Gal. A quase lassidão da primeira gravação dá lugar a um vigor condizente com a postura combativa do grupo. Até dentro da mesma frase, a ênfase muda: antes, eu estou tão cansado. Agora, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você. Falcão se permite menos voos vocais que Gal, amarra mais a melodia, calca o pé na levada da bateria de Yuka, base da música do Rappa. Sob a sintaxe do reggae em substituição ao blues, mudam também as significações imediatas: o discurso pode ser de um filho que sai de casa, aquele velho navio adquire possibilidades diversas. O título, que fora citado por Caetano na canção Fora de ordem nomeando um mero serviçal do narcotráfico, integra-se também à letra de formas inesperadas.
A visão do Rappa não se compara com a de Gal. Nem deve. Pois o que torna possível a gravação do Rappa, de certa forma, é o retorno da gravação de Gal em Terra estrangeira. A atualização histórica de Vapor Barato no filme de Walter Salles foi mais que isso – pois o filme é menos uma crônica histórica que uma busca existencial -, foi o reconhecimento da permanência da canção para além de contextos particulares, ou aplicável a inúmeros contextos, gerais ou pessoais, como as boas obras de arte. Zeca Baleiro, pouco depois, a mesclou com a sua À flor da pele, com a familiaridade de quem relê uma carta antiga.
A sobreposição de contextos e significados em Vapor Barato, no lugar de esconder sua universalidade subjacente, a expõe. Vapor Barato não precisava do resgate de Walter Salles (ela tinha sido sequestrada? detesto esta expressão) para ser a soberba canção que é. Não foi ela a beneficiada, e sim nossa escuta que se renovou e se renova a cada momento histórico ou pessoal, ao reconhecer a polissemia que torna rica uma obra de arte. Este segundo olhar sobre ela permite vislumbrar a possibilidade de ainda muitos olhares. Que venham outros.
Brinde: aqui e aqui, uma interessantíssima interpretação astrológica de Vapor Brato, relacionando-a inclusive com o mapa astrológico do Brasil.
Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se, mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria. Assim, por longo tempo eu ali me detive, e um deles observei até um longe declive no qual, dobrando, desaparecia…
Porém tomei o outro, igualmente viável, e tendo mesmo um atrativo especial, pois mais ramos possuía e talvez mais capim, embora, quanto a isso, o caminhar, no fim, os tivesse marcado por igual.
E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos de folhas que nenhum pisar enegrecera. O primeiro deixei, oh, para um outro dia! E, intuindo que um caminho outro caminho gera, duvidei se algum dia eu voltaria.
Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro, nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa: a estrada divergiu naquele bosque – e eu segui pela que mais ínvia me pareceu, e foi o que fez toda a diferença. #Tradução: Renato Suttana*
Robert Frost (1874 – 1963)
The road not taken
Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I marked the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I- I took the one less traveled by, And that has made all the difference.
*O tradutor Renato Suttana (n. 1966) é professor universitário e autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005, ed. integralmente ilustrada por NS).
Presa e torturada pela ditadura militar, Dilma Rousseff continuou sob monitoramento do aparato de espionagem estatal nos primeiros anos do Brasil redemocratizado, quando respondia pela Presidência da República José Sarney.
É o que revelam documentos disponíveis no Arquivo Nacional. Foram organizados num banco de dados chamado ‘Acervo da Ditadura’. Mais de oito milhões de páginas. Coisa produzida durante o regime militar e na Era Sarney.
Ao mergulhar no papelório, o repórter Rubens Valente apalpou 181 documentos com menções a Dilma. As referências começam em 1968 e se estendem até o final dos anos 80 –aparecem em 17 documentos preparados pelo SNI (Serviço Nacional de Informações) na época em que Sarney era o inquilino do Planalto.
Nessa fase pós-ditadura, o SNI mobilizava arapongas e torrava dinheiro público para colecionar dados inúteis. Num texto, por exemplo, Dilma é retratada como peça de uma “infiltração comunista” em órgãos da prefeitura e do governo do Rio Grande do Sul. Deu-se realce à passagem dela por grupos da esquerda armada: VAR-Palmares e Colina.
Noutro relatório, lê-se que Dilma atuava em movimento feminista que, no dizer do SNI, almejava “a conscientização das massas, pretendida por facções esquerdistas que almejam o poder.” Bem verdade que a espionada chegou ao poder pelas mãos masculinas de Lula. Mas a arapongagem, sem querer, revelou-se premonitória.
Vigiou-se Dilma também numa viagem ao México. Os espiões acompanharam-na ainda num comício de 1988, contra a ampliação do mandato de Sarney. Nesse ato, a ‘subversiva’ estava acompanhada de outro personagem molesto: Lula.
Procurado, Sarney, hoje um fervoroso aliado do governo Dilma, manifestou-se por meio da assessoria. Mandou dizer que ordenara ao SNI que não realizasse “levantamentos sobre a vida privada” de “nenhum brasileiro”. O Planalto, agora sob o comando da ex-vigiada, preferiu não comentar. Abaixo, um extrato dos papéis: