O momento prazer e raiva de Marlene, a maior
Fuçar
em lojas de CDs é um dos meus prazeres. Volto para casa sempre com
novidades (novidade = tudo aquilo que eu desconheço), que ficam ali à
espera da hora certa de deixarem de ser novidades (a hora certa é importante).
Hoje, um CD que repousava há meses junto a outros e ainda lacrado me chamou. É
de 1970, chama-se É a Maior!, gravação de um show da cantora Marlene. E Marlene,
para mim, é meio mistério. Sei quem é, claro, mas sempre com aquela sensação de
que a conheço (e ouvi) menos que deveria.
É
a Maior! é assinado por Fauzi Arap e Herminio Bello de Carvalho,
responsáveis por espetáculos históricos de Maria Bethânia, por exemplo, que é
doida pelos dois. Desde Comigo me Desavim (1967), Fauzi já dirigiu alguns dos
shows mais lindos de Bethânia, Rosa dos Ventos, inclusive. E Herminio é
produtor/diretor de maravilhas feito Rosas de Ouro e aquele show de Elizeth
Cardoso em 1968, com Zimbo Trio + Jacob do Bandolim + Época de Ouro. Basta citar
esses dois, sempre no topo da lista dos shows que eu adoraria ter
visto.
E como nada é por acaso,
Bethânia não entrou aqui de graça. A estrututura de É a Maior! lembra os shows
dela: textos conduzindo as canções no formato pot-pourris bem costurados
juntando os sucessos dela e novidades. Marlene usa a palavra para uma espécie de
acordo com os tempos modernos. “Há uma hora em minha vida em que eu resumo todas
as grandezas e todas as tristezas que eu já presenciei. É na hora que eu canto.
È na hora que me dão um pedaço de palco para eu ser Marlene”: o disco/show
inicia nesse clima confessional.
Era 1970, a era das cantoras
de rádio havia passado há muito, o auge dos festivais também e a tropicália
estava nas bocas. Marlene tinha 46 anos, olha a mudança dos tempos, praticamente
a idade de Marisa Monte hoje. Dos novos de então, Caetano é presença marcante
com Tropicália, Atrás do Trio Elétrico, Coração Vagabundo e Irene, que encerra o
disco. E tem Jorge Ben (País Tropical), Marcos e Paulo Sergio Valle (Mustangue
Cor de Sangue na sequência de Se é Pecado Sambar) e Milton Nascimento (Beco do
Mota, parceria com Fernando Brant, em interpretação impressionante). E da
geração mais antiga, Mario Lago, Wilson Batista, Assis Valente, Luiz
Gonzaga
“Eu
não vejo diferença nenhuma naquela gente que gritava Marlene e Emilinha e ainda
ontem gritava por Chico e Caetano. Talvez as bocas que gritem hoje nos festivais
sejam mais bem tratadas, mas isso também não era culpa da Emilinha nem minha”,
ela desabafa, ovacionada, em momento sobre a expressão “macacas de auditório”. É
o final que chega com o hit maior Lata D´Água emendado com Irene. O público
delira. Momento de virada na carreira de Marlene, É a maior! nada tem de datado
e retrata um importante momento de mudança na música popular brasileira. Quatro
anos depois, Marlene fez outro show antológico dirigido por Herminio – Te
Pego Pela Palavra.
Abaixo, o áudio com o momento
final do show É a maior!. Depois, a abertura do show Te Pego Pela Palavra. E ao
final, dois textos bem reveladores, que Marlene fala durante o
espetáculo.
“A minha voz é pequena. Sempre
disseram que a minha voz é pequena. Ouvi isso a vida inteira. Eu comecei no
rádio aos 20 anos, brigando com Deus e todo mundo, brigando até comigo mesma. Eu
misturava prazer e raiva quando me jogava no auditório para cantar. E foi com
esse prazer e com essa raiva que eu cheguei até aqui. Eu começo e recomeço minha
vida toda hora sem medo nenhum. Cantei muito em auditório de rádio, botei muita
faixa nesse corpo. E hei de continuar cantando, seja na rua ou em qualquer lugar
onde haja alguém que queira me escutar. E, porque não, hei de cantar em muito
auditório ainda” (E aí, Marlene começa a cantar País
Tropical)
“Às vezes eu não gostaria de
ter a voz que tenho. Às vezes eu gostaria de ter uma voz despreocupada, uma voz
calma. Às vezese eu não gostaria de me agitar. Às vezes eu não gostaria de quase
ter de me esfregar na cara de todo mundo para me fazer perceber. Às vezes eu
gostaria de simplesmente cantar” (E aí, Marlene canta Carinhoso)
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