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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Pinguinho




Pinguinho, do livro "Cazuza", de Viriato Corrêa (23º ed. -1971)
                                                
No lugarejo em que nasci dava-se uma singularidade que eu não sei se ocorria em outra parte do mundo: o dia mais alegre era aquele em que morria alguma pessoa.
Explica-se. No povoado, quando alguém estava para morrer, mandava-se avisar à gente da redondeza. E, logo que o doente fechava os olhos, a sua casa se enchia. Vinham, não só os vizinhos ali de perto, como os de cinco, sete e mesmo de dez léguas distantes.
O trabalho paralisava. Os lavradores não iam às roças; os vaqueiros não iam ao campo; a escola não se abria e até as casas de negócios fechavam as portas.
E o lugarejo, dorminhoco e triste dos dias comuns da vida, agitava-se, vivamente, nos raros dias de morte.
A todo o instante chegavam bandos de homens e mulheres, ora em cavalos que alegravam os ares com relinchos, ora em carros de bois que vinham chiando pelos caminhos.
A povoação transformava-se num formigueiro ruidoso de crianças. No sertão, quando uma família sai de casa para ir à de um defunto, sai completa, os grandes, a filharada e até mesmo os cachorros.
Os grandes ficam na sala e no terreiro do morto, a prestar as homenagens do costume; a meninada, essa vem para fora, para a sombra das árvores, brincar em liberdade.
No meu tempo, quando morria alguém no povoado, para nós, os pequeninos, o dia inteiro era de traquinada, de algazarra e de alegria. Os taludos juntavam-se lá com os taludos; nós, pequeninos, brincávamos com os pequeninos.
Talvez fôssemos mais de trinta, mais de quarenta. Mas nenhum, nenhum tão afoito e tão disposto a brincar como o Pinguinho.
O Pinguinho devia ser o mais velho de todos nós, mas, tão franzino e tão frágil, que parecia o mais novo. Magro, pescoço comprido, ombros estreitos, ossinhos de fora.
Uma tossezinha seca. Mãos sempre geladas, testa sempre quente.
Mas, o que nele havia de belo, de vivo e de brilhante, eram os olhos, dois grandes olhos negros e febris, como que iluminados por um eterno desejo de viver.
Como não podia correr porque cansava e não podia gritar porque tossia, o Pinguinho animava a brincadeira. Se a cabra-cega ia aborrecendo, fazia-nos mudar para a boca-de-forno; se a boca-de-forno já não despertava entusiasmo, lembrava a gangorra, o rempo-reá, o anel, ou qualquer outro brinquedo.
Foi ele que, uma vez (na manhã da morte do Chico da Lúcia), se apresentou entre nós com quatro rodas de ferro, encontradas atrás da casa da máquina de descaroçar algodão.
Não sei onde se foi buscar um caixão de bacalhau, não sei onde se arranjaram martelo e pregos. Em pouco, estava armado um carro.
E o carro encheu-nos o grande dia. Dois garotinhos dentro, outros dois empurrando e a pequenada a revezar-se dirigida pelo Pinguinho que, por ser doentio e dono das rodas, não empurrava nunca e era empurrado sempre.
A morte parecia-nos um bem que Deus mandava às crianças da terra para que elas brincassem em liberdade.
Vivíamos a desejá-la através dos nossos sonhos como se deseja um brinquedo através dos vidros de uma vitrina.
Quando o enterro saía e a meninada de fora partia com os pais, as nossas almas ficavam mais tristes do que as casas em que o luto havia entrado. Para nós, que nada sabíamos da morte, nada mais tinha havido do que um maravilhoso dia de brinquedo, que terminava inesperadamente.
E as nossas cabecinhas inconscientes punham-se então a fazer cálculos, desejando outro dia como aquele. Quando haveria de novo tanta criança, tanta alegria e tanta liberdade? Quando morreria outra criatura?'


Quem mais acertava nos cálculos era a Chiquitita. Bastava dizer que um doente morreria em breve, para que o doente não durasse um mês.#
Vivíamos sonhando com os dias de luto que traziam grandes dias de folguedos.
O Maneco repetia constantemente com a boca cheia de língua:
— Se eu fosse Deus Nosso Senhor, três vezes por semana tinha que haver um defunto.
De uma feita, a Tetéia nos encheu de inveja. Garantiu-nos que em breve a brincadeira seria no seu quintal. Tinha em casa três pessoas para morrer: a tia velha, a avó e o padrasto de sua mãe.
Para nosso entendimento aquilo era uma fortuna. Nós que nada sabíamos da vida, só víamos na morte motivo de brinquedo.
Um dia, quando brincávamos a cabra-cega, o Pinguinho, ao amarrar a venda nos olhos da Rosa, sentiu uma dor no peito, uma sufocação e quis gritar. Mas, em vez de grito, o que lhe saiu da boca foi uma golfada de sangue.
Carregamo-lo nos braços para casa.
À noite, o pobrezinho ardia em febre. Não comeu mais, não saiu mais do fundo da rede. De quando em quando — golfadas de sangue. E emagrecendo, emagrecendo — ficou pele e osso.
Não lhe saíamos de perto. Quando podíamos enganar a vigilância de nossos pais, íamos para junto dele, consolar-lhe os sofrimentos.
Numa manhã, linda manhã em que as andorinhas brincavam no céu como garotinhos travessos, ele morreu.
O povoado encheu-se. Foi criança, criança, como eu nunca vi tanta na minha vida.
Não podia haver dia melhor para se brincar. Mas (surpresa para toda a gente!) nenhum de nós brincou. Nenhum de nós saiu, sequer, para o terreiro.
Ficamos todos em derredor do cadáver, sossegadinhos, tristes, silenciosos. Quando queríamos falar uns aos outros, era baixinho, aos cochichos, como se temêssemos perturbar a majestade da dor que nos afligia.
Tínhamos, pela primeira vez, compreendido a morte. Era a primeira vez que ela nos tocava de perto.
E, dali por diante, quando alguém morria no povoado, nunca mais enchemos de alaridos os terreiros e os quintais.
Nunca mais fizemos de um dia de luto um dia de festa.
Dali por diante, a morte ficou sendo para nós uma coisa séria, muito séria e muito triste.

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