Um Salto Para o Abismo |
Passei um tempo, muito tempo, sem pensar na clínica que deixei. E ponho-me a pensar se, afinal, isto não se deu porque, de alguma forma, algo ficou. Aqui, talvez. Interpretar, como escrever, é possibilitar sentidos antes insuspeitos. Manifestas na linguagem, interpretação e escrita caracterizam-se por não serem unívocas, ou seja, não dizem, nunca, exatamente tudo Porque há, sempre, o impossível de dizer (isso não é novo, of course, de Lacan e seus intérpretes à Clarice, um vasto mundo de melhores ditos sobre o tema se destacam em relação e este meu). Escrita e interpretação insistem, emergem nesse terreno: justamente o que não pode ser todo dito, não pode, de todo, deixar de ser dito. É no impasse que escrevo. A escrita tem vezes de tirana, impõe-se. É estéril perguntar para quem escreve? Porque escreve? Para que? Não há resposta para isto senão o ato mesmo de fazê-lo. Uma de minhas mais queridas escritoras, M. Duras, diz (diz? escreve!) que a escrita "permite ao escritor dizer para si mesmo que não é preciso se matar todos os dias, visto que é possível matar-se a qualquer dia" (quanto a isso tem sempre o delicioso texto de Verissimo: O Suicida e o Computador, eu, se fosse você, lia). Assim, vir aqui diariamente é escolher do que não quero morrer hoje.
Ou, talvez, do que quero. Porque viver é justamente isso: um dia a menos. Eu lembro - ou gosto de pensar que sim - de quando aprendi a suspirar. Você lembra? Suspiros são pequenas morte, menores que os orgasmos, maiores do que nossa impávida e maquinal ação de inspirar/expirar. Suspirar é admitir. Admitir uma falta, uma ausência, um erro, um limite. Suspirar é indicar a medida do impossível. Há toda uma gama de ensaios de suspiros na minha infância, eu imagino: a primeira fome, o primeiro brinquedo guardado, a hora de dormir, o primeiro não. São ensaios, são ensaios. O primeiro suspiro que devo ter dado, eu lembro (lembro? claro que não, mas gosto de reinventar-me assim) foi para Bogart. Ou por ele, melhor dizendo. Em que filme? Em qualquer. O olhar cansado, a capa de chuva - sim, devia ser marlowe; o andar tão firme, as tristezas tão grandes. Meu primeiro suspiro deve ter sido por ele, quero que tenha sido. O Bogart de uma mágoa que nos obseda, esse é o apelido do meu primeiro anseio. Mas ainda não é Bogart que vem ocupar este post.
Meu suspiro mais profundo, o que não foi o primeiro mas é paradigma de todos que lhe sucederam e referência pra todos que o antecederam, este suspiro se fez ao ver Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes, 1948). Qual Cisne Negro, foi o que tive vontade de exclamar algumas vezes e o faço agora. Porque não há um olhar sobre o palco e a dança como este. Não há um horror infantil mais adulto que este. E não há cores, nem passos, nem impossibilidades e escolhas, ah, não há sapatilhas como estas. Pode haver tema mais atual do que a pergunta: ou isto ou aquilo? O amor ou o trabalho? Uma hora pergunta-se: "porque você quer dançar?" ao que se responde "Porque você quer viver?" [já havia, talvez, neste meu gosto, o motivo deste post: porque você quer escrever? porque você quer viver?].
Sapatinhos Vermelhos é um filme sobre a paixão. Sobre o que ela nos dá. Sobre o que nos cobra. É um filme sobre uma febre. Um filme de dolorosa beleza. O que são aquelas cores, senhor? O vívido vermelho, o denso preto, o azul profundo...cada cor tem algo a dizer. O Techinicolor enriquecido de sentido. Há tudo aqui: a busca da perfeição, o extremo esforço diário, o cansaço dos longos ensaios, a excitação ante o público, o arrebatamento que a arte propicia, o vazio que acompanha todos os "depois" conhecidos. Há momentos expressionistas nas cores, cenários, pequenos efeitos visuais. Um filme de direção forte e sensível, a cena do ballet é primorosa. Não há medo, nenhuma tentativa de agradar, nenhuma infantilização da linguagem.
Foi aí que aprendi a suspirar. Que aprendi a reconhecer que algo falta, sempre. Que aprendi a viver morrendo e a fazer de cada automático respiro uma tentativa de beleza. Que aprendi que há um compromisso em calçar as vermelhas sapatilhas. Que é uma escolha. Que é uma escolha, repito, todas as vezes que paro e escrevo. Cada letra, cada dito, uma opção. Um suspiro feito post, feito texto. Um reconhecimento, também, de que não é tudo. E de que se há de prosseguir tentando, mesmo já se sabendo do impossível desta empreitada. Que é o mesmo que viver. Minúscula piada que adotamos a ferro e fogo.
O vermelho voltou-me ainda aos sapatos e suspiros quando O Mágico de Oz aportou nos meus olhos, mas esta estrada de tijolos amarelos eu percorrerei outro dia.
Pela net, achei coisas. O trailler, delicioso. Trechos do filme, hipnóticos. Informações de uma cópia restaurada que preciso ter. E há, claro, a cena do ballet, que trago pra cá, pra habitar entre as Borboletas, hoje, todas elas vermelhas. Como meus sapatos:
http://borboletasnosolhos.blogspot.pt/2011/03/dos-suspiros-ou-meus-sapatinhos.html
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