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terça-feira, 29 de abril de 2014

A utopia Itapuã

Nas aulas-show que já comentei e recomendei aqui intituladas O Fim da Canção, naRádio Batuta do Instituto Moreira Salles, José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski dissecam no capítulo Visões do Paraiso uma canção em particular:
Saudade de Itapuã (Coqueiro de Itapuã) – Dorival Caymmi

A análise de Wisnik e Nestrovski vai desde como Itapuã era um local afastado da cidade nos anos 40, assim como Salvador era uma cidade apartada culturalmente do Brasil, até detalhes da relação melodia/letra como a repetição de palavras estendida para o agudo usada como uma forma de evocação: o ouvinte é situado na praia de Itapuã enquanto escuta os primeiros versos, para só depois ser avisado de que se trata de uma lembrança: saudade de Itapuã, me deixa.
Mas o que mais me interessa, e que no fundo era o mote da análise, é esta construção do mito de um lugar, e a representação deste lugar, mesmo existente, como uma utopia de lugar, seja no passado ou no futuro, como um Brasil de alguma maneira possível, ainda que na lembrança de um paraíso perdido, mas que persiste na memória e nos guia ainda hoje.
Espera aí, será que não estou exagerando? Será que é possível extrair toda esta torrente de significações desta canção tão simples, como aliás todas do Dorival?
Itapuã – Caetano Veloso (ao vivo)

Wisnik cantou esta música, sem comentá-la, na sequência da enumeração de várias outras que exploram e desenvolvem a idealização de Itapuã como um lugar que, de real, torna-se lendário, e não somente de Itapuã. Maracangalha (a 57 km de Salvador), também de Dorival, assim como a Pasárgada (cidade da antiga Pérsia) do poema de Bandeira, existem ou existiram objetivamente, mas o que importa isso? Importa a simbolização do Paraíso Perdido.
Pois desde a carta de Caminha – que aportou na Bahia – que o Brasil é visto com uma espécie de paraíso reconquistado. Há suficiente literatura sobre isso, da citação famosa de Maiakovski: Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz, até a lenda irlandesa (!) da ilha encantada de Hi-Brasil, ou a também famosa frase de Stefan Zweig, na verdade o título de um de seus livros: Brasil, país do futuro.
Em Caymmi, Itapuã é presente, embora distante no espaço - ele pede ao vento que traga notícias de lá toda manhã. Já em Caetano, é recordação da infância, ou da inocência – distante no tempo. A canção é dividida em duas. A primeira parte, que retorna no fecho, em andamento mais lento, evoca recordações; a segunda e principal, mais movida, invoca a própria Itapuã e a faz presente:
Itapuã,
Quando tu me faltas, tuas palmas altas
mandam um vento a mim assim Caymmi
Ou seja, a canção pela qual Caetano faz a invocação de Itapuã é a própria canção de Caymmi, transfigurada. É Caymmi quem traz notícia de Itapuã para Caetano, toda vez que este precisa. Não à toa, é usado o mesmíssimo recurso de estender para o agudo a palavra do lugar recordado, logo no primeiro verso: Itapuã, logo depois, ainda mais agudo, Abaeté.
E na repetição de um verso inicial encerando a canção, fica claro que o que inicialmente soava como uma história de amor entre homem e mulher, na verdade tinha outro objeto:Ela foi a minha guia quando eu era alegre e jovem. Ela é Itapuã, que, mesmo distante, faz-se presente: Nada estanca Itapuã, ainda sou feliz. A utopia de lugar serve de guia para a vida, para a busca desta utopia talvez.
E uma última pista parece reconfirmar esta leitura: na primeira gravação desta canção, no álbum Circuladô, Caetano chamou o filho Moreno para dividir os vocais, cantando inclusive os dois primeiros versos/chave. Caetano passa o bastão do país do futuro, levando seu filho não até Itapuã, mas até Caymmi, reconhecendo que Caymmi, cantando Itapuã, cantou a ilha, ou  melhor, a praia encantada de Hi-Brasil, onde parece que há um homem feliz.
http://tuliovillaca.wordpress.com/2011/02/15/a-utopia-itapua/

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