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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Andei por andar, andei, e todo caminho deu no mar...




Julio Maria



Dorival Caymmi faz 100 anos de vida na próxima quarta-feira, dia 30 de abril. Faz, assim mesmo,
no presente. Sua obra está viva sobretudo na geração que ditaria os rumos da música brasileira
a partir de meados dos anos 1960. O material das próximas páginas mergulha no mundo particular
e ao mesmo tempo universal de uma das cabeças mais fundamentais à cultura do País.

Zuza Homem de Mello cede ao Estado a íntegra inédita de uma entrevista feita em 1988, reveladora de faces
pouco conhecidas do baiano. Dorival Caymmi, sabe-se por Zuza, era não só um amante do jazz, mas um conhecedor com profundidade.
Milton Nascimento e Joyce Moreno escrevem sobre o efeito Dorival em suas carreiras e os filhos Danilo e Dori comentam, na internet, as músicas preferidas do pai. O portal do Estadão traz ainda um vídeo com trechos de um show feito pela neta de Dorival, Alice Caymmi, no Sesc Belenzinho, em São Paulo, e a discografia comentada do compositor.Nana Caymmi fala do pai em uma entrevista de memórias difíceis, quando sobretudo a mãe Stella quis impedi-la de seguir na carreira artística. Nana tem lembranças carinhosas de um pai que preferia o silêncio à música barulhenta, mas não esconde suas mágoas: “Ele foi omisso”, diz, sobre sua impotência em apoiá-la diante das resistências de Stella.






“Caymmi está querendo saber se você não quer perguntar nada para ele”, indagou Stella ao telefone depois de me fornecer informações de bastidores para o livro ‘A Era dos Festivais’. A pergunta revelava uma ponta de ciúmes e sugeriu um desejo, numa pretensiosa suposição minha. A de que talvez ele quisesse retroceder àquela adorável tarde de outubro em 1988, quando descreveu com impressionante riqueza como vivia na Bahia, como viveu no Rio e em São Paulo, além de dar detalhes sobre suas canções. Dotado de prodigiosa memória, discorrera ainda sobre suas preferências em literatura e pintura e deixou-me de queixo caído quando abordou detalhes próprios de um connaisseur de jazz.

Caymmi gostava de se levantar com o Sol. Cercado de uma coleção de bengalas em seu ensolarado apartamento de Copacabana, o mestre vivia com Stella sempre por perto e, um pouco depois, mas também ao redor, seus filhos e netos. Seu charme envolvia quem quer que fosse; Caymmi deixava você embevecido. O artista mais amoroso do Brasil era irresistível. Com sua voz musical, dicção impecável e um violão ao seu alcance, Caymmi falou com delicadeza e a habitual tranquilidade, narrando como se estivesse lendo sua própria biografia.

Infância. “Quem viveu na Bahia de 1914, quando nasci, até 1938, morando em Salvador com a família – pai, mãe e irmãos –, tem boas recordações de amizades de lá, no meu caso, com influência musical de dois lados. De um lado, a familiar. Mamãe gostava de música e só cantava, e papai, que era funcionário do Estado, gostava de piano, um pouco de bandolim, um pouco de violão, coisas domésticas. Papai era então uma figura marcante. Um tio, Cicí, irmão de mamãe, tocava violão melhor que papai e teve muita influência porque conhecia vários tons de violão. Depois tem uma influência muito grande que seria constante, um menino chamado José Rodrigues de Oliveira, o Zezinho, meu vizinho e amigo. Crescemos juntos na ladeira do Carmo, éramos ligados às coisas de que gostávamos, cinema, revistas, colecionar quadrinhos de filmes e música. Na música descobri o cavaquinho e peguei o violão de papai para tocar escondido.”

Todos os santos. “Então, Zezinho e meu tio Cicí são influências fortes na minha vida na Bahia. Depois, a grande influência: o rádio instalado. Comecei a ouvir pelo rádio Francisco Alves, Vicente Celestino, Orlando Silva e Silvio Caldas, que sempre considerei o grande mestre da música brasileira, o grande inventor de bossas no samba com aquelas malemolências todas. Silvio Caldas foi um verdadeiro deus que, por sorte, conheci ainda na Bahia. Também tem influência de um e de outro o repertório romântico, a gente tem de passar por isso por causa da namoradinha de colégio ou da garotinha da rua. A gente cantava as canções de Joubert de Carvalho, Ari Kerner Veiga de Castro, aquelas toadas de Marcelo Tupinambá, umas coisas do repertório pianístico que a gente alcançou nas salas amigas das famílias.

Depois, as casas de disco que a gente começou a descobrir e que eram onde estava a mina, o ouro. A gente sempre ia na casa Milano, eu e o Zezinho, para ouvir disco e aprender novidades. Aí começou o negócio de estudante e o rádio. Na hora que folgava, a gente ia dar uma espiada no rádio para ver como era a voz.”





Bahia. “Nós tivemos um conjuntinho que seguia a moda do Bando da Lua, o Três e Meio. A gente fazia uma programação para ser aprovada e levada ao rádio nos domingos à tarde. Aí comecei a fazer umas parodiazinhas, a compor para o conjunto na brincadeira, à maneira do Bando da Lua de meu amigo Aloisio de Oliveira. Ainda na Bahia, uma outra influência, um colega estudante me disse: ‘Caymmi, por que você não faz uma visita à dona Amanda Costa Pinto, ela educa a voz’. Era a época da influência da música lírica, do Caruso, Gigli, Tito Schippa, no cinema falado já entravam Ian Kepura, Martha Egger. Fomos a Brotas, à casa de dona Amanda e ela me adotou ali como aos outros. Acabou fazendo um coro, classificou a minha voz com uma tendência de baixo cantante. Eu procurava colocar bem a voz, foi um aprendizado de um ano e nossa glória seria cantar as novenas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia que finalizavam com três missas. Isso é minha vida na Bahia.”


Rio de Janeiro. “Depois, o Rio. Vim atrás de meus ídolos, consequentemente fui à cata de conhecê-los. Vim atirado por uma vontade secreta que não sei identificar agora. Tinha feito na Bahia um concurso para escrivão em 1936, esperei até 38 para ser nomeado, mas havia ainda sequelas da Revolução de 30, de 32 e um apadrinhamento que é comum nessas ocasiões. Consegui o segundo lugar no concurso e fiquei esperando um emprego, mas fiquei decepcionado.

Falei com papai que tinha vontade de ir para o Rio. ‘Não, o Rio é lugar de perdição’, aquela conversa. Nessa ocasião um amigo, também estudante, que fazia brincadeira no rádio com o nome suposto de Baby Soares – chamava-se Oscar Duarte – disse um dia: ‘Caymmi, você não sabe como a vida lá fora é boa, você precisa sair da Bahia rapaz, eu entrei num navio, me fiz músico de bordo, conheço a Europa, a América. Aqui você não vai fazer nada’. A partir dessa conversa com Baby Soares, que papai assistiu muito atento, eu fiquei com aquela coisa na cabeça. Convenci papai, que tomou 500 mil réis emprestados de um colega da repartição, comprou minha passagem para o Rio e uma mala, e lá vim eu.”


​Estudante de Direito.



Chegada ao rádio. “Em 24 de junho daquele ano, estava estreando como artista na Rádio Tupi. Fiquei admirado porque, reconhecendo que sou um sujeito totalmente preguiçoso, fui para o rádio em tão pouco tempo. Foi o seguinte: fui pedir emprego na revista O Cruzeiro e tive uma grande sorte. Conheci um rapaz muito jovem, que veio a ser um dos meus ídolos, Millôr Fernandes, que tenho gravado no coração. E ele disse: ‘Me disseram que você pinta desenha e tal, mas aqui não tem lugar para isso. Você toca violão, não canta? Eu tenho um amigo no rádio, quer ver?’ Ligou para o Theófilo de Barros Filho, que dirigia a Tupi, e me mandou ir lá na quarta. Cheguei à Rua Santo Cristo no Bairro Saúde, ele me ouviu e disse: ‘Não cante mais para ninguém. Você vai começar aqui dia 24 de junho, festa de São João’. E assim comecei, já ganhando 30 mil réis de cachê. Para quem estava sem dinheiro, já dava para deixar seguro.”


​Repertório.


Meu grande amor. “Em 1939 conheci Stella, cantando num programa de calouros da Rádio Nacional, uma finalíssima que ela ganhou cantando Noel Rosa, Último Desejo. E eu fiquei encantado. Morei no Grajaú quatro anos ao casarmos, eu e Stella. Nasceram lá Nana e Dori. O médico pediatra dos meus meninos, o teatrólogo e ator José Silveira Sampaio, disse que tínhamos de ir para a praia, tomar banho de mar. Então nos mudamos para o Leblon. Danilo nasceu em 1948 na Delfim Moreira com General Artigas. Moramos na Bartolomeu Mitre, depois na Dias Ferreira e depois viemos para Copacabana por causa do colégio, em 1953. Mudamos para o edifício Nôa Nôa.”


Alma de criança. “Eu gosto muito de história infantil como base para compor. Gosto de Ciranda, cirandinha, dessas coisas do povo como meu espelho para compor. Tanto que eu disse ‘Vento que dá na vela / vela que leva o barco / barco que leva a gente / gente que leva o peixe / peixe que dá dinheiro Curimã.... vela, leva, leva vela.’ Isso tudo a gente faz quando está meio distraído, passam palavras, sons musicais com sons de palavras. Às vezes não são coisas minhas, são descobertas de como se fala de maneira simples. Coisas que a gente ouve, do povo, da família. Eu gosto muito da memória, por isso me dedico a especular o ontem, a sequência imediata.


Boêmio. “Eu frequentava bem a noite. Era de comer aquele churrasco na Princesa Isabel, sair para um boteco, tomar a penúltima na praia para ver o sol nascer. A noite de Copacabana nos anos 50 tinha um encanto muito especial. Você encontrava um de smoking sobrando de uma festa, vinha outro meio puxado, aquela garota metida naquele tremendo soirée, havia um encanto muito bonito, aquela mistura do amanhecer na praia com aquela noite esticada, aqueles sábados gloriosos, juntando o cozido das sextas-feiras no Vogue onde o Barão deixava entrar em roupa esporte (Barão Max von Stuckart, nobre austríaco e proprietário da boate). Tinha um toque chique na noite carioca dos anos 50, a mulher perfumada, a joia, a elegância do gesto, do prato, o charme e a música sempre aliada a isto, com aquela doçura do samba-canção. Isso a par dos cafajestes. Eu também fui dessa corriola. De forma que tudo isso eram os encantos da noite nos anos 50 em Copacabana.”


João Valentão. “O samba-canção seria um rótulo de um dos dois ritmos de João Valentão dos anos 40, baseado num amigo meu, pescador rústico de Itapoã na Bahia. Voltei ao passado e encontrei aquele amigo, o nome dele devia ser Carapeba, nome de peixe. Eu achava ele íntegro como pessoa, um senhor que tinha idade para ser meu avô, uns sessenta e tantos anos, um pescador de quem você nunca via como era da testa para cima, sempre de chapéu. Eu era amigo do filho dele mas tinha admiração por ele. Aí pensei de modo romântico no João Valentão como uma figura de teatro. Eu apontava João Valentão é brigão.......pra dar bofetão... faz coisa que até Deus duvida mas tem seu momento na vida. Aí eu mudei o ritmo da apresentação. Some o palco e aparece uma coisa de areia. É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo.... Aí entra um ritmo que seria o samba-canção, como sucedeu logo depois com Marina, apesar desta parecer uma coisa mais rural porque Marina é uma menina de subúrbio. Nesses dois eu fui usando o tema mais jogado. O Dora dá um aspecto teatral, aquelas homenagens, o frevo, clarins, aquela mulata cheia de vida. Assim, Dora, João Valentão e Marina me levaram, quando eu já vinha parando na noite em cassinos depois de fecharem o jogo, para uma nova fase nos anos 50. A diversão tinha mudado de aspecto, proliferaram as casas pequenas. Nós tínhamos um público itinerante pela noite, saindo de uma boate para outra. O que era certo é que todos terminávamos no Vogue. Aí, por influência do samba-canção da moda e pelo tema vago e amoroso, eu fiz Nem eu, Nunca mais, Não tem solução com meu amigo Carlinhos Guinle, uma pessoa encantadora, musical, que tocava um pouco de piano. Discutia-se muito a respeito de música, ele tinha uma porção de discos e fizemos outras. Sábado em Copacabana, apesar de eu ter feito toda, Tão Só e outras.”


“Bossa Nova. “No samba-canção tinha também Antonio Carlos Jobim, que andava pela noite adentro; aquele pistonista da orquestra da Tupi, Pernambuco, que fez As tuas mãos. Tinha Dolores Duran. Essa época romântica e boêmia foi se ligando com a Bossa Nova numa fórmula que também partiu da música que era tocada no Drink com Miltinho e um sincopado muito especial. Em consequência, Billy Blanco foi enfeitando o samba com uma jogadinha.”


Jazz. “Os ataques de Jimmie Lunceford, as entradas dos metais e das palhetas, eu tive discos em 78 rotações de gravações extraordinárias. My mamma don't told me.... pe-re-ri-ro-ro-ri.....(Caymmi entoa quase toda a primeira parte de Blues in the night gravada pela orquestra de Jimmie Lunceford em 1941). Foi uma cachaça de coisas boas. Sy Oliver é um grande arranjador. Ele fazia o negócio com uma sensibilidade, escrevendo para aqueles instrumentos, jogando os trombones e pistons, aquele jogo de metais em que se destacava um Ziggy Elman na orquestra de Tommy Dorsey (embora tivesse ganhado fama com Benny Goodman, Ziggy também foi destaque na orquestra de Tommy Dorsey. Sy Oliver foi arranjador de Lunceford e de Dorsey). Eu e Haroldo Barbosa encontrávamos as pessoas que gostavam dessas coisas como a gente, íamos atrás dos filmes, amigos de São Paulo e até fora do jazz, sem falar daqueles primeiros, sem falar de Scott Joplin do ragtime nem do Jelly Roll Morton.”


Formação. “Não sou erudito, longe de mim tal pretensão. Na literatura, fico naquela fórmula de quem aprende no ginásio da minha época através da Antologia de Fausto Barreto e Carlos Laet. Já li aqueles portugueses clássicos, Almeida Garret, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Camões que a gente não pode deixar, até chegar à literatura da minha época, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos e, vindo pela poesia, fico embevecido com Manoel Bandeira, o Drummond, João Cabral de Mello Neto, esses homens que eu conheci. A poesia em prosa de Rubem Braga, que é meu coração, Millôr Fernandes com seu humor sábio, e esses contistas dos anos 60 para cá, uma geração nova. Sabendo que a gente já passou por Machado de Assis, pela poesia de Olavo Bilac, enfim, tudo baseado no conhecimento da curiosidade pela literatura de minha época de colégio. Meus ídolos são fáceis de identificar, são os que todo mundo gosta. E Jorge Amado é meu irmão.”


Artes plásticas. “Na pintura, de saída, são os impressionistas, sendo que quando a gente começa a ver os impressionistas, descobre que os grandes nomes de desenho eram grandes conhecedores do Clássico, da Renascença. Eu fico com uma multidão de impressionistas e vou até Michelangelo, Da Vinci. Depois de todo esse mistério, me ficaram umas paixões especiais. São três ou quatro ídolos. Picasso, Van Gogh, Modigliani e o grande mestre, com todo o meu respeito, Paul Cézanne. A gente fala em Gauguin mas o Cézanne para mim tem aquele conhecimento de raiz, do que faz um negócio poderoso. Esses são meus ídolos, minhas paixões que eu mantenho.”


Jazz. “Os ataques de Jimmie Lunceford, as entradas dos metais e das palhetas, eu tive discos em 78 rotações de gravações extraordinárias. My mamma don't told me.... pe-re-ri-ro-ro-ri.....(Caymmi entoa quase toda a primeira parte de Blues in the night gravada pela orquestra de Jimmie Lunceford em 1941). Foi uma cachaça de coisas boas. Sy Oliver é um grande arranjador. Ele fazia o negócio com uma sensibilidade, escrevendo para aqueles instrumentos, jogando os trombones e pistons, aquele jogo de metais em que se destacava um Ziggy Elman na orquestra de Tommy Dorsey (embora tivesse ganhado fama com Benny Goodman, Ziggy também foi destaque na orquestra de Tommy Dorsey. Sy Oliver foi arranjador de Lunceford e de Dorsey). Eu e Haroldo Barbosa encontrávamos as pessoas que gostavam dessas coisas como a gente, íamos atrás dos filmes, amigos de São Paulo e até fora do jazz, sem falar daqueles primeiros, sem falar de Scott Joplin do ragtime nem do Jelly Roll Morton.”


Portinari, Guignard. “Agora, na pintura brasileira, a gente fica no que acontece. Portinari, Da Costa, pessoas que a gente conheceu, Ivan Serpa. Não faço uma avaliação da vanguarda, não tenho preconceito, quanto mais se inventa, mais se descobre, mais se agita. Da época do Tropicalismo temos Oiticica, a Ligia Clark e os bichos dela, aí você vê que tem uma coisa se agigantando, tem o trabalho em gravuras e litografias de Fayga Ostrower. No Rio de Janeiro eu tinha um pouco de contato, mas o forte mesmo seria Augusto Rodrigues, umas visitas a Portinari, Guignard, que eu conheci em Minas. Mas a verdade é que em São Paulo é que eu tive um alicerce muito bom, frequentando permanentemente galerias e museus, acompanhando o nascimento do museu do Chateaubriand na Rua Sete de Abril, até o Masp dos Bardi e pessoas como Ciccilo Matarazzo. Então, Clovis Graciano e Rebolo Gonsales são amizades que tive sempre no coração. Sobretudo Clovis Graciano, que nunca me deixou ficar em hotel. Ele até me descobriu num hotel chamado São Sebastião, eu estava lá escondido, ele bateu na porta e disse: ‘Está escondido aí, né? Vá pra casa na Rua Tupi, perto do Pacaembu’. E toda vez que punha os pés em São Paulo, me hospedava com Clovis, Aparecida e os dois meninos, o Zé Roberto e o Paulo Sergio, que vi crescer. Tenho grande respeito à memória de meu querido Clovis, homem de princípios, de grande equilíbrio, grande artista plástico. Tenho esse prêmio de São Paulo, a amizade com Clovis Graciano. É o meu conhecimento de leve das artes plásticas.”


Pintor. “Eu pinto muito pouco. Em 1988 nada, nem um rabisco. Estou desarmado, pois não tenho um ponto meu. A época em que mais pintei foi quando fiz muitos retratos, o meu, um de Stella, que é o segundo em que me aventurei em óleo. Nos anos 40, vários amigos meus da área de música acharam uma loucura eu me meter em pintura e deixar a música. Até o Jorge Amado disse ‘não deixem ele pintar não, o negócio dele é música’. Eu sei que estou me aventurando em pintura, mas é mais uma paixão para eu manipular esse negócio da cor.”


Música e pintura. “Aí é que está, eu fiz música e algumas frases bonitas surgiram justamente quando estava pintando e desenhando, muito soltinho, abstraído comigo mesmo. A maior parte de João Valentão fiz desenhando. Fiz Maracangalha toda pintando um autorretrato, sempre envolvido com cavalete, tinta, muito papel, eu estava dentro da minha vida brincando com as tintas e, de repente, fazia uma música. Acho que esse mecanismo me ajudou a fazer música. A gente encontra umas coisinhas que todo compositor gosta, uma palavrinha misteriosa, uns achadozinhos, que coisa boa. Quer ver um exemplo? Ainda lá, naquela música: ‘Adalgisa mandou dizer / que a Bahia está viva ainda lá.’ O ainda lá me pareceu muito bonito.”


Um homem triste? “Eu não sou de guardar tristezas. Só vou para a cama quando estou totalmente lavado por dentro. Só depois me deito, mesmo quando estou de digestão feita, leio um bocadinho antes de dormir e limpo a cabeça de todos os problemas do dia. Vou direto até de manhã e me acordo com a luz do dia. Quem me acorda sempre é o sol. Por uma greta que haja. Tomo água em jejum desde 16 anos. E acho uma terapia fabulosa, me dá uma energia, uma tranquilidade. Tenho uma moringa de barro que é a verdadeira. Primeiro, uns três ou quatro goles. Depois, aquele copázio. E depois é que vou pensar.

Por dentro sou um homem que me sinto feliz porque consigo não levar à sério apreensões, a preocupação. Quando descobri que a partir dos 50 anos a vida é repetida, deixei de me preocupar. Nem consigo mesmo com a situação do mundo em volta. E me distraio muito com leitura, gosto de desenho e de pintura, fico de perder a hora da comida. Aí a Stella me aperta.”

Depois daquela pergunta de Stella no inicio, Caymmi veio ao telefone. Após breve e emocionada saudação, agradeci seu conselho. Disse-lhe que desde outubro de 1988, ao despertar, minha primeira ação é beber um copo de água em jejum que faz me sentir bem o dia todo. E a cada manhã, diariamente, sinto a presença do sábio Dorival Caymmi.

http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-de-caymmi/zuza.html


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