E então eu fiquei vendo aquela bola alaranjada desaparecer no horizonte. O vento zunia forte uma melodia que me desconcertava os ouvidos. Eu estava feliz. Estranha, e intensamente, feliz. As cores do dia coloriam o que eu não sabia. E eu abraçava quente o presente. O que tinha era bom. Bom de doer os olhos, cheios de areia e brisa de mar. O mesmo mar que me corria por dentro, em medos e incógnitas, e em deslumbramento de poder fluir. No mar o chão é lodo, e também é água. Um chão que suporta o improvável e imprevisível dos dias.
Eu voei. Até onde eu não sabia que podia chegar. Até onde eu me dobrei sobre o controle que não tinha. Vento, gota salgada sob o corpo quente. Beleza que me arrancava lágrimas e silêncios de contemplar a morte. Seu corpo, meu corpo, nossas vidas ali, em mistério de existência conjunta. Docemente enlaçadas, em dança de encher o peito. Sim, o momento era cheio, robusto, vivo. E ele morria secretamente, com o dia que caia no mar.
Assim é, um tempo sempre a escapar. Um porvir de reticências. A terra movediça que nunca vira chão de fincar os pés. O susto do amor, a alegria do respiro, a rota incansável do tempo que lambe a areia e reconstrói paisagens. As dunas móveis, as lagoas de chuva e seca, segredos de vida líquida. Arrepio, calafrio, rumba a beira-mar a cantar o incontido. E as ondas, mansas, sem pressa, fugidias, riem de mim: pequena concha na imensidão submersa. A ida. Para onde não há seta. O destino que nos guarda, buraco frouxo, refluxo, renascença, dúvida, maré que nos cobre, cega, vermelho, escuro, fim.
E aí você disse que era para eu ir embora e eu fui.
Esse é um começo de livro. Um livro bonito, que eu comprei – como tantos – pelo nome, um dia: “L’enfer, son casino, sa plage” (o inferno , seu cassino, sua praia). Mas nem é do livro que eu queria falar, e sim da frase e de seu contexto: uma mulher que é apaixonada por um sujeito que diz pra ela ir embora.
E ela vai.
Tantas vezes é assim: a gente não quer ir embora – mas é pra ir. Porque a outra pessoa, porque o mundo, porque tanta história. Porque já foi e não é mais. Porque tá escuro, tá cinzento, tá enevoado. Porque tem cheiro de tempestade. Porque algo puxa pra outro caminho, embora. Muito embora. Mas é pra ir e a gente sabe. A gente fecha os olhos apertado, a gente tapa os ouvidos com as mãos, a gente tenta não lembrar, mas no fundo a gente sabe. A gente sabe que sabe. Não quer saber que sabe, talvez: mas sabe.
E tem um dia em que a gente vai.
E, como na história do livro, a gente queria que tudo fosse outro, que o novelo da vida tivesse se desenrolado fazendo outros desenhos e que desse pra ficar. A gente pede, até, baixinho, olhando de lado: “me deixa ficar. só mais um pouquinho, vai.” Só que não. Não adianta, não é aquilo, o lugar onde a gente queria se enrodilhar já não existe mais. É um lugar-memória e pra lá dá pra ir às vezes. Depois. Quando não doer mais tanto.
Agora é hora de ir.
De arrumar a mochila, cuidando pra levar só o estritamente necessário: não tem sentido carregar peso demais, atrasa a caminhada. Atenção para os sapatos: se for possível, escolher dois pares – um que aguente o tranco, que seja companheiro das subidas e descidas dos terrenos desconhecidos, e outro levinho, uma sandália talvez, pra deixar os pés de fora em dias de sol, pra balançar na ponta do dedo, pra descalçar sorrindo.
Não tinha dito isso, e agora pode nem parecer: mas vai ter sorrisos também. Ainda vai ter, como não? Claro que vai. Sorrisos, de leve, à toa, braços abertos, banho de cachoeira, rede na varanda, conversas até de manhã. Gargalhadas, cigarros acendidos um no outro, mais cachaça, só mais esse, olhares de lado, olhares de frente, olhares. Mesas com poemas entalhados, o sol nascendo na praia, violão na Sé de Olinda, um jeito de tocar no cabelo.
"O Mundo é um livro imenso, que Deus desdobra aos olhos do Poeta! Pela criação visível, fala o Divino invisível sua Linguagem simbólica. A Poesia, além de ser vocação, é a segunda das sete Artes e é tão sublime quanto suas irmãs gêmeas, a Música e a Pintura! Vem da Divindade a sua essência musical. Mas, meus Senhores, ninguém queira tomar como Poesia qualquer estrofe, pois há muitas Poesias sem estrofes e muitíssimas estrofes sem Poesia... Ser Poeta, não é somente escrever estrofes! Ser Poeta, é ser um “geníaco”, um “filho assinalado das Musas”, um homem capaz de se alçar à umbela de ouro do Sol, de onde Deus fala ao Poeta! Deus fala através das pedras, sim, das pedras que revestem de concreto o trajo particular da Idéia! Mas a Divindade só fala ao Poeta que sabe alçar seus pensamentos, primando pela grandeza, pela bondade, pela glória do Eterno, pelo respeito, pela moral e pelos bons costumes, na sociedade e na família! Existe o Poeta de loas e folhetos, e existe o Cantador de repente. Existe o Poeta de estro, cavalgação e reinaço, que é capaz de escrever os romances de amor e putaria. Existe o Poeta de sangue, que escreve romances cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de ciência, que escreve os romances de exemplo. Existe o Poeta de pacto e estrada, que escreve os romances de espertezas e quengadas. Existe o Poeta de memória, que escreve os romances jornaleiros e passadistas. E finalmente, existe o Poeta de planeta, que escreve os romances de visagens, profecias, e assombrações."
- João Melchíades (personagem), de Ariano Suassuna, em "Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta". 8ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 239.
Ariano Vilar Suassuna nasceu em João Pessoa em 1927. A força do arcaico é justamente sua contínua presentificação e, conseqüentemente, sua capacidade de se eternizar. A arte genuinamente popular se baseia nesse pensamento. Para transformar o local em simbólico e universal, Ariano Suassuna, o "decifrador de brasilidades", como já foi chamado, e um dos principais preservadores da cultura do país, alia os valores mais arraigados de sua região a seu imenso arcabouço erudito e teórico. Com uma escrita que junta, a um só tempo, elementos do Simbolismo, do Barroco e da literatura de cordel, esse ficcionista, poeta, dramaturgo e pensador da cultura, transforma o sertão no palco das questões humanas de qualquer lugar do mundo. Ele foi o criador do Movimento Armorial, que tem como projeto a confluência simultânea de todas as artes populares do Nordeste brasileiro, trabalhando a favor da dignidade humana. ‘Romance d’A Pedra do Reino’ é considerado um dos melhores do país, e a peça ‘O Auto da Compadecida’, além de encenada diversas vezes por todo o mundo, já recebeu três adaptações cinematográficas.
Ariano Suassuna recebia inúmeros convites para realizar "aulas-espetáculos" em várias partes do País onde, com seu estilo próprio e seus "causos" imaginativos, deixava o público encantado.
Ariano Suassuna faleceu aos 87 anos, no Recife, decorrente das complicações de um AVC hemorrágico.
Obras de Ariano Suassuna
Uma Mulher Vestida de Sol, 1947
Cantam as Harpas de Sião (ou o Despertar da Princesa), 1948
Os Homens de Barro, 1949
Auto de João da Cruz, 1950 (Prêmio Martins Pena)
Torturas de um Coração, 1951
O Arco Desolado, 1952
O Castigo da Soberana, 1953
O Rico Avarento, 1954
Ode, 1955 (poesia)
O Auto da Compadecida, 1955
O Casamento Suspeito, 1956
Fernando e Isaura, 1956
O Santo e a Porca, 1958
O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, 1958
A Pena e a Lei, 1959
A Farsa da Boa Preguiça, 1960
A Caseira e a Catarina, 1962
O Pasto Incendiado, 1970 (poesia)
Romance d'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, 1971 (partes da trilogia)
Iniciação à Estética, 1975
A Onça Castanha e a Ilha Brasil, 1976 (Tese de Livre Docência)
História d'o Rei Degolado nas Caatigas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, 1976 (parte da trilogia)
Sonetos Com Mote Alheio, 1980 (poesia)
Poemas, 1990 (Antologia)
Almanaque Armorial, 2008
http://www.e-biografias.net/ariano_suassuna/
“Meu nome é Ariano Suassuna...”
LEMBRA DE MIM?
Há alguns anos, no saguão de um hotel de Minas, eu estava com Adauto Novaes, quando se aproximou a figura bela, vestindo a habitual roupa clara de algodão, e falando com a voz que passa a morar no ouvido de quem a ouve: “Meu nome é Ariano Suassuna...”, apresentou-se ele, que não precisava absolutamente de apresentações e comentando música; não é hora de lembrar o que disse mas sim quem disse. Respondi, respondemos que sabíamos, sim, que de Suassuna se tratava. Foi um diálogo que emocionou por tratar-se dele, é tão bom a decência ter voz e vestir-se de algodão claro! Ariano foi-se embora do mundo ontem. A memória volta a esse dia em que o conheci, e me lembro das dezenas de gentes que perguntam: “Lembra de mim?”, na rua, em bastidores, em aeroportos, causando aflição a perguntador e a perguntado e estimulando mentiras medrosas, “lembro”, quando em absoluto nos fogem o rosto e o jeito de uma pessoa vista brevemente em alguma cidade e acontecimento há tempo perdidos, incrustados num ego que precisa do arquivo da memória de alguém.
Entre tanta sabedoria feliz que Ariano espalhou no Brasil, ele, a quem honrava nunca ter saído do País, conte mais essa. Justamente a ele, que nunca precisou de um LEMBRA DE MIM?, a modéstia levava a apresentar-se, a despeito de sua forte singularidade.
Em tempo: Ariano e meu pai, os dois, vestiam-se de maneira semelhante: túnica e calça de algodão e estamos conversados. Beijos, Ariano.
É como capítulos de um romance: a canção Como os nossos pais, de Belchior, define o perfil de uma geração, a dele, a nossa, dentro da tradição oral que acabou gerando as grandes epopeias. O trovador é um catequista e um profeta, um lúcido arauto do que vê e sente, uma referência para seus contemporâneos. Assume assim a função original da poesia, que era contar uma longa história, épica, ou seja, em que personagens se transformam ao longo da narrativa. Vamos aos capítulos:
CAPÍTULO 1: ANUNCIAÇÃO
Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
O trovador diz a que veio. Como um Quixote de formação erudita (os discos aqui como atualização da cultura que era livresca) partiu para a aventura, e ele é o Cervantes que escreve as memórias dessa trajetória. Avisa, adverte que sua história é única, original, pois não está disponível na indústria do espetáculo. Ele e sua memória são os fundamentos dessa história. Assim pretende fisgar o ouvinte/leitor, com a isca de algo inédito e que talvez se identifique com a experiência da plateia.
CAPÍTULO II: O DESPERTAR PARA A HISTÓRIA
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Em vez de imaginar sua literatura, o trovador cria a partir do vivido, que tem mais carisma do que o sonho. A arte é imensa mas não se compara à grandeza da vida real, fonte de toda representação. E essa vida, maior do que a arte, é comum a todos. Não se trata de algo especial no canto do trovador. Ele narra o que existe ao nosso redor e dentro de nós. O que conta não está confinado à sua vivência, à sua alma. Está também em nós.
CAPÍTULO III: DESTINO É ARMADILHA
Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz
Nascemos para o amor, mas somos surpreendidos pela guerra. Desperdiçamos nossa vocação diante da tirania vitoriosa, que impede o crescimento. A geração do amor é vencida pela ditadura.
CAPÍTULO IV: PROFECIA
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração
A aventura leva à esperança de superação. O desconhecido é a passagem para um mundo novo, diverso da herança da repressão. O Mal vai passar, graças ao Tempo, à tendência irreversível de mudança e à disposição de abraçar o novo.
CAPITULO V: AMARGO BALANÇO
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
Estamos presos ao passado, apesar das promessas de mudança, dos sinais explícitos da superação. Nós somos a âncora desse navio atolado no cais. Cristalizamos hábitos, como fizeram as gerações passadas, apesar de sermos tão imbuídos da nossa ideia de revolução. Em vez de nos transformar, engessamos nossas descobertas e fomos atropelados pelo Tempo. Repetimos o erro das gerações passadas, tão combatidas. Essa é talvez a bofetada mais estridente desta grande canção..
CAPÍTULO VI: A LIÇÃO DO PASSADO
Hoje eu sei
Que quem me deu a ideia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando o vil metal
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
O trovador não poupa sua ascendência e adverte a geração com a lição deixada pelo passado: quem achou que mudava acabou sucumbindo. É preciso descobrir essa realidade dura para abrir-se definitivamente para a transformação, abandonando o que nos deixa atrasados para sempre.
Fico escrevendo aqui umas coisas meio paranoicas sobre a evolução tecnológica e aí concluo que me explico mal, porque tem gente que pensa que sou um tecnófobo reacionário, que gostaria de escrever com pena de ganso. Grave injustiça. Fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador para escrever, tripulando um clone nacional (e ordinário) de um Apple II, sem disco rígido e com 148 KB de memória, dos quais o editor de texto comia 120. Com sua tremenda impressora matricial, fazia sucesso e eu recebia visitas turísticas a meu escritório. Sempre gostei de novidades tecnológicas e claro que não sou, nem adianta ser, contra essas novidades.
Meu problema não é com tecnologia, é com certos usos que podem fazer dela. Considerando a geral natureza do ser humano, que, agora mesmo, está se matando ferozmente em várias partes do mundo, esses usos, como alguns que já mencionei aqui, às vezes me metem medo. E, se a tecnologia nos beneficia de incontáveis formas, não devemos esquecer como ela é também usada para o mal e para objetivos odiosos e como pode afetar nossa vida para pior, em termos humanos e sociais.
Além disso, nesta longa estrada cibernética que percorri e continuo a percorrer, tenho tido de me adaptar a mudanças cada vez mais rápidas, que cansam até mesmo alguns viciados em comprar todas as versões do iPad. Nos Estados Unidos, quando computador aqui ainda se chamava “cérebro eletrônico”, cheguei a estudar a linguagem Fortran e trabalhar com um computador que, num ambiente refrigeradíssimo, ocupava todo um andar de um prédio da universidade e era infinitamente menos poderoso que meu notebook de um quilo e pouco.
De lá pra cá, até dá para começar a enumerar as novidades que foram aparecendo, mas hoje ninguém mais pode fazer isso sem recorrer ao Google. A mudança é o tempo todo. E está certo que tudo neste mundo é passageiro, inclusive ele próprio, mas acho que o homem gosta de ter algum senso de permanência, de duração. Antigamente era possível reservar tempo para nos acostumarmos às mudanças, mas hoje esse tempo não existe mais e já é piada conhecida dizer-se que o tempo que economizamos com os novos gadgets é necessário para que possamos aprender a usar os novíssimos.
Lembro-me de um velho porta-retratos na casa de meus pais, com uma foto em preto e branco de meu avô paterno, que ficou lá por mais de cinquenta anos. Havia algo de permanência naquela antiga moldura de madeira e no sorriso do velho, havia um certo sossego, coisas que duravam e eram guardadas “para sempre”. No futuro, acho que não se conhecerá mais essa sensação. Os porta-retratos agora são eletrônicos e programáveis para fazer exibição de slides, mudar a foto periodicamente, tocar música e mais outras coisas. As fotos, que hoje se produzem com uma abundância inadministrável, também não são mais para ficar, nada mais é para ficar.
A maior parte das novidades dura apenas dias e ninguém se lembra delas depois. Aliás, ninguém se lembra de mais nada e a fama às vezes já nem alcança os 15 minutos de Andy Warhol, vai embora literalmente em menos tempo, como acontece com muita gente enfocada em reportagens de televisão. Nossa efemeridade, sempre um pouquinho desagradável de lembrar, não tem mais sua sensação aliviada de quando em vez, ela agora se mostra em toda parte e todo o tempo, nada dura nada e os registros são voláteis. Toda a civilização digitalizada é volátil – e, aliás, governos como o americano conservam seus dados preciosos em papel, método de armazenamento mais confiável que circuitos integrados ou memórias eletrônicas de qualquer natureza.
Todo mundo saberá ler e escrever, num mundo de mensagens instantâneas? Talvez não. Não me refiro a escrever à mão, com lápis ou caneta. Hoje já tem quem escreva uma página digitando com os polegares e não rabisque três linhas com uma caneta. Mas estou pensando em leitura e escrita sem o uso do alfabeto. De vez em quando, sou tentado a crer que as futuras mensagens instantâneas, torpedos e similares, serão grafados mais ou menos com ideogramas simples – imagens como aquelas carinhas Smiley que aparecem em milhares de aplicativos, acrescidas talvez de uma ou outra palavra abreviada em letras. De escrever e ler usando alfabeto e sintaxe, como hoje ainda fazemos, não haverá necessidade para grande parte dos usuários de aplicativos de mensagens. Passaremos mais ou menos para hieróglifos simples, que deverão ser perfeitamente adequados ao vocabulário e ao universo de interesses desses usuários. E talvez os que saibam ler e escrever usando o alfabeto venham a constituir uma categoria especial na sociedade, como eram os escribas da Antiguidade.
Fazer conta, então, nem pensar. Não acredito que na escola ainda se aprenda a tirar raiz cúbica na munheca, como no meu tempo (eu nunca aprendi). Aliás, não acredito na sobrevivência da tabuada – e não me refiro àquelas tipo 7 vezes 8, de que a gente não lembrava na época e até hoje não lembra. Quem, num futuro não muito distante, responder quantas são 6 vezes 9 sem consultar a calculadora será levado para estudos num instituto de neurologia e proporão que se conserve seu cérebro depois da morte. É nesse tipo de coisa que penso, quando falo em tecnologia, não é contra a tecnologia. Será bom para nós não sabermos mais escrever nem fazer contas e deixar fantásticas aptidões naturais, como a memória, irem se perdendo por falta de uso e exercício? Será realmente bom que tudo seja descartável e não dure mais que poucas semanas, nesta vida cada vez mais volátil?
"Se não entendo tudo, devo ficar contente com o que entendo. E entendo que vejo estas árvores e que tenho direito a minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me envergonhe de minha fala; não diga que minha fala é melhor do que a sua; não diga que eu sou bonito, porque sua mulher nunca ia ter casado comigo; não seja bom comigo, não me faça favor; seja homem, filho da puta, e reconheça que não deve comer o que eu não como, em vez de me falar concordâncias e me passar a mão pela cabeça; assim poderei matar você melhor, como você me mata há tantos anos."
(Vila Real)
João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia, em 23 de janeiro de 1941, na casa de seu avô materno, à Rua do Canal, número um, filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro. O casal teria mais dois filhos: Sonia Maria e Manoel. Ao completar dois meses de idade, João muda-se com a família para Aracajú, SE, onde passaria a infância.
Em 1947 inicia seus estudos com um professor particular. Seu pai, professor e político, segundo o biografado, não suportava ter um filho analfabeto em casa. Já alfabetizado, em 1948 ingressa no Instituto Ipiranga. A partir daí permaneceria horas trancado na biblioteca de sua casa devorando livros infantis, sobretudo os de Monteiro Lobato. Forçado por seu austero pai, iria se dedicar com afinco aos estudos, procurando ser sempre o primeiro da classe. Sobre essa fase de sua vida leia mais em "Memória de Livros", deliciosa crônica que consta de "Releituras".
No ano de 1951 ingressa no Colégio Estadual de Sergipe. Sempre dedicado aos estudos, prestava ao pai, diariamente, contas sobre os livros lidos, sendo, algumas vezes, solicitado a resumi-los e a traduzir alguns de seus trechos. João era também solicitado a verter para o português canções francesas que o pai ouvia. Não tinha folga nem nas férias, pois nelas praticava o latim e copiava os sermões do padre Vieira, apesar de afirmar que fazia aquilo com prazer. Manoel Ribeiro, seu pai, era chefe da Polícia Militar e, nessa época, passa a sofrer pressões políticas, o que o faz transferir-se com a família para Salvador. Na capital baiana João Ubaldo é matriculado no Colégio Sofia Costa Pinto. Conta ele que era perseguido pela professora de inglês, em virtude de seu sotaque. "Ela não percebeu que eu falava inglês britânico, já que estudara em Sergipe com um professor educado na Escócia", diz o escritor. Desafiado, dedica empenho extraordinário ao idioma, chegando a decorar 50 palavras por dia. Vizinho de engenheiros americanos, faz amizade com seus filhos para aprimorar ainda mais seus conhecimentos da língua inglesa.
Em 1955 matricula-se no curso clássico do Colégio da Bahia, conhecido como "Colégio Central".
1956 marca o início da amizade com Glauber Rocha, seu colega na escola.
Estréia no jornalismo, começando a trabalhar como repórter no Jornal da Bahia, em 1957, sendo que posteriormente se transferiria para A Tribuna da Bahia, onde chegaria a exercer o posto de editor-chefe.
Em 1958 inicia seu curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Com Glauber Rocha edita revistas e jornais culturais e participa do movimento estudantil. Apesar de nunca ter exercido a profissão de advogado, foi aluno exemplar. Lê (ou relê), então, os grandes clássicos: Rabelais, Shakespeare, Joyce, Faulkner, Swift, Lewis Carroll, Cervantes, Homero, e, entre os brasileiros, Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Nessa mesma Universidade, concluído o curso de Direito, faz pós-graduação em Administração Pública.
Participa da antologia Panorama do Conto Bahiano, organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, em 1959, com "Lugar e Circunstância", e publicada pela Imprensa Oficial da Bahia. Passa a trabalhar na Prefeitura de Salvador como office-boy do Gabinete e, em seguida, como redator no Departamento de Turismo.
Seu primeiro casamento dá-se em 1960 com Maria Beatriz Moreira Caldas, sua colega na Faculdade de Direito. Separaram-se após 9 anos de vida conjugal.
Com "Josefina", "Decalião" e "O Campeão" participa da coletânea de contosReunião, editada pela Universidade Federal da Bahia no ano de 1961, em companhia de David Salles (organizador do livro), Noêmio Spinola e Sonia Coutinho.
Em 1963 escreve seu primeiro romance, "Setembro não faz sentido", título que substituiu o original (A Semana da Pátria), por sugestão da editora.
Em plena efervescência política do ano de 1964, João Ubaldo parte para os Estados Unidos, através de uma bolsa de estudos conseguida junto à Embaixada norte-americana, para fazer seu mestrado em Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia do Sul. Conta que, na sua ausência, teve até sua fotografia divulgada pela televisão baiana, encimada por um enorme "Procura-se". Segundo João, o movimento revolucionário não sabia que ele, tido e havido como esquerdista, estava nos Estados Unidos às expensas daquele país.
Volta ao Brasil em 1965 e começa a lecionar Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia. Ali permaneceu por 6 anos, mas desistiu da carreira acadêmica e retornou ao jornalismo.
Com o prefácio de Glauber Rocha, que se empenhou junto à José Álvaro Editores pela sua publicação, João Ubaldo tem seu primeiro romance "Setembro não faz sentido" impresso, com o apadrinhamento de Jorge Amado.
Em 1969 casa-se com a historiadora Mônica Maria Roters, que lhe daria duas filhas: Emília (nascida em fevereiro de 1970) e Manuela (cujo nascimento ocorreria em junho de 1972). O casamento acabaria em 1978.
Em 1971 lança, pela Editora Civilização Brasileira, o romance "Sargento Getúlio", merecedor do Prêmio Jabuti concedido pela Câmara Brasileira do Livro, em 1972, na categoria "Revelação de Autor". O livro é inspirado principalmente num episódio ocorrido na infância de João Ubaldo, envolvendo um certo sargento Cavalcanti, que recebera 17 tiros num atentado em Paulo Afonso, na Bahia; resgatado pelo pai do autor, então chefe da polícia de Sergipe, chegaria com vida em Aracaju. Segundo a crítica, esse livro filiou seu autor a uma vertente literária que sintetiza o melhor de Graciliano Ramos e o melhor de Guimarães Rosa.
Publica, em 1974, o livro de contos "Vencecavalo e o outro povo" (cujo título inicial era "A guerra dos Pananaguás"), pela Artenova.
Com tradução feita pelo próprio autor, o romance "Sargento Getúlio" é lançado nos Estados Unidos em 1978, com boa receptividade pela crítica daquele país.
Em 1979 passa nove meses como professor convidado do International Writting Program da Universidade de Iowa e publica no Brasil, pela Nova Fronteira, que a partir de então seria sua principal editora, um "conto militar", na sua definição, intitulado "Vila Real".
1980 marca seu terceiro casamento, com a fisioterapeuta Berenice Batella, que lhe daria dois filhos: Bento e Francisca (nascidos em junho de 1981 e setembro de 1983, respectivamente). Participa, em Cuba, do júri do concurso Casa das Américas, juntamente com o critico literário Antônio Cândido e o ator e diretor de teatro Gianfrancesco Guarnieri. O primeiro prêmio foi concedido à brasileira Ana Maria Machado.
Muda-se, com a família, para Lisboa, Portugal, em 1981, graças a uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Edita, no período em que ali viveu, com o jornalista Tarso de Castro, a revista Careta. De volta ao Brasil, passa a residir no Rio de Janeiro, cidade que tanto ama, e lança "Política", livro até hoje adotado por inúmeras faculdades. Lança, também, "Livro de Histórias" (depois republicado com o título de "Já podeis da pátria filhos"), coletânea de contos. Inicia colaboração com o jornal "O Globo", que perdura até hoje, com pequenas interrupções, publicando uma crônica por semana. Sua produção dessa época seria reunida em 1988 no livro "Sempre aos domingos".
Em 1982 inicia o romance "Viva o povo brasileiro", que se passa na Ilha de Itaparica e percorre quatro séculos da história do país. Originalmente o livro se chamava "Alto lá, meu general". Segundo João, o livro nasceu de um desafio de seus editores e da lembrança de uma afirmativa de seu pai, que dizia: "Livro que não fica em pé sozinho, não presta." Como seus livros sempre tiveram poucas páginas, diante da provocação, fez um com mais de 700. Nesse ano participou do Festival Internacional de Escritores, em Toronto, Canadá.
No ano seguinte estréia na literatura infanto-juvenil com "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Seu livro "Sargento Getúlio" chega aos cinemas, num filme dirigido por Hermano Penna e protagonizado por Lima Duarte. O longa-metragem receberia os seguintes prêmios no Festival de Gramado: Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som Direto, Melhor Filme, Grande Prêmio da Crítica e Grande Prêmio da Imprensa e do Júri Oficial. Volta a residir em Itaparica, na casa onde nascera.
"Viva o povo Brasileiro" é finalmente editado em 1984, e recebe o Prêmio Jabuti na categoria "Romance" e o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro. Inicia a tradução desse livro para o inglês, tarefa que lhe consumiria dois anos de trabalho e a partir do qual passaria a utilizar o computador para escrever. Ao lado de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marques, participa de uma série de nove filmes produzidos pela TV estatal canadense sobre a literatura na América Latina.
João Ubaldo é consagrado na Avenida Marquês de Sapucaí: seu livro "Viva o povo brasileiro" é escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval do ano de 1987.
Em 1989 lança o romance "O sorriso do lagarto".
Em 1990 publica "A vingança de Charles Tiburone", sua segunda experiência em literatura infanto-juvenil. A convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, muda-se com a família para Berlim, onde viveria por 15 meses. Publica crônicas semanais no jornal Frankfurter Rundschau, além de produzir peças radiofônicas de grande alcance popular, entre elas, uma adaptação de seu conto "O santo que não acreditava em Deus".
Retorna ao Brasil em 1991, e volta a residir no Rio de Janeiro. Seu romance "O sorriso do lagarto" é adaptado para o formato de minissérie por Walter Negrão e Geraldo Carneiro e estréia na Rede Globo, tendo como protagonistas Tony Ramos, Maitê Proença e José Lewgoy. Volta a escrever no jornal O Globo e inicia colaboração no O Estado de São Paulo, passando a publicar em ambos uma crônica aos domingos.
Em 1993 adapta "O santo que não acreditava em Deus" para a série Caso Especial, da Rede Globo, que teve Lima Duarte no papel principal. No dia 7 de outubro é eleito para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com a morte do jornalista Carlos Castello Branco. Disputavam com ele o piauiense Álvaro Pacheco e o mineiro Olavo Drummond. No terceiro escrutínio João Ubaldo obteve 21 votos contra 13 de Pacheco e um nulo.
Termina, em 1994, a adaptação cinematográfica, feita em parceria com Cacá Diegues e Antônio Calmon, do romance "Tieta do Agreste", de seu amigo e conterrâneo Jorge Amado. O filme teve a atriz Sonia Braga no papel principal e direção de Cacá Diegues. Toma posse na Academia Brasileira de Letras em 8 de junho. Cobre, nos Estados Unidos, a Copa do Mundo de Futebol como enviado dos jornais O Globo e O Estado de São Paulo. De volta ao Brasil é internado numa clínica em Botafogo, com arritmia cardíaca. Participa da Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, e lá recebe o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores alemães e latino-americanos.
Recebe o prêmio Die Blaue Brillenschlange -- concedido ao melhor livro infanto-juvenil sobre minorias não-européias -- pela edição alemã de "Vida e paixão de Pandonar, o cruel". Lança o livro de crônicas "Um brasileiro em Berlim", sobre sua estada naquela cidade.
Volta a participar da Feira do Livro de Frankfurt, em 1996. Detém a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha.
Em 1997 é internado novamente no Rio, desta vez com fortes dores de cabeça provocadas por uma queda. Cacá Diegues compra os direitos de filmagem do livro "Já podeis da pátria filhos". Renova contrato com a Nova Fronteira, depois de receber propostas de outras editoras. Publica o romance "O feitiço da Ilha do Pavão".
Participa em Paris do Salão do Livro da França, em 1998. Vende os direitos de "Viva o povo brasileiro" para o cinema; o filme deve ser dirigido pelo cineasta André Luis Oliveira. Lança o livro "Arte e ciência de roubar galinha", seleção de crônicas publicadas nos jornais O Globo e O Estado de São Paulo.
Durante a IX Bienal do Livro - Rio de Janeiro, em Abril de 1999, lança o livro "A Casa dos Budas Ditosos", da série Plenos Pecados, um romance sobre a luxúria publicado pela Editora Objetiva Ltda., que obtém enorme sucesso de vendas.
Ainda em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo mundo para dar um depoimento ao jornal francês "Libération", sobre o milênio que se aproximava. Escreveu, juntamente com Carlos (Cacá) Diegues, o roteiro de um filme baseado em seu conto "O santo que não acreditava em Deus", cujo título para o cinema foi "Deus é brasileiro". Seu romance "O feitiço da Ilha do Pavão" foi publicado em Portugal e em tradução alemã, pela editora C.H. Beck. "A Casa dos Budas Ditosos" torna-se um grande sucesso editorial, permanecendo, por mais de trinta e seis semanas, entre os dez livros mais vendidos. O romance foi publicado na Espanha, França e outros países. Seu lançamento em Portugal se transformou em problema nacional face à proibição, por duas redes de supermercados, de sua venda naqueles estabelecimentos. A primeira edição, de 5.000 exemplares, foi vendida em poucos dias e novas edições também. João Ubaldo, em janeiro/2000, esteve lá para ser homenageado pelos escritores portugueses com um desagravo a tal procedimento. Nessa oportunidade participou da Semana de Estudos Lusófonos, na Universidade de Coimbra. Foi, também, citado em diversas antologias, nacionais e estrangeiras, inclusive numa sobre futebol, publicada pelo jornal "Le Monde", na França. Saíram várias reedições de seus livros na Alemanha, incluindo uma nova edição de bolso de "Sargento Getúlio". "O sorriso do lagarto" foi publicado na França. "A casa dos Budas ditosos" foi traduzido para o inglês, nos Estados Unidos. Seu livro "Viva o povo brasileiro" foi indicado para o exame de Agrégation, um concurso nacional realizado na França para os detentores de diploma de graduação.
Em 2008, o autor foi agraciado com o Prêmio Camões, considerado o maior galardão da língua portuguesa.
Os dados acima foram obtidos em livros diversos; no sítio da Academia Brasileira de Letras; nos Cadernos de Literatura do Inst. Moreira Salles e fornecidos pelo próprio autor.
Jornalismo, literatura, cinema, televisão. O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro foi um dos poucos que soube passear por diversas áreas com facilidade e reconhecimento, no Brasil e no mundo. Essa trajetória de sucesso foi interrompida nesta sexta-feira, por uma embolia pulmonar, que resultou na morte do escritor, aos 73 anos. João Ubaldo deixa quatro filhos, Emília, Manuela, Banto e Francisca.
Nascido na Ilha de Itaparica, em 23 de janeiro de 1941, João Ubaldo Ribeiro é o filho mais velho do casal Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro. Ainda aos dois meses de idade, mudou-se para a cidade de Aracaju, Sergipe, onde foi alfabetizado e conheceu o amigo Glauber Rocha, com quem frequentou as aulas no Colégio da Bahia, em 1956.
Precoce, começou a trabalhar com jornalismo em 1957, como repórter no 'Jornal da Bahia'. Em 1958, inicia o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Apesar de concluir os estudos, nunca exerceu a profissão, dividindo o tempo entre os sisudos livros de Direito, com a edição de revistas e jornais culturais ao lado de Glauber Rocha, além do envolvimento com o Movimento Estudantil. Na mesma universidade, concluiu a pós-graduação em Administração Pública.
Sua primeira experiência na literatura foi em 1959, com a publicação do conto 'Lugar e circunstância', na antologia 'Panorama do Conto Bahiano', organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia. Em 1961, teve os textos 'Josefina', 'Decalião', e 'O campeão' publicados na coletânea 'Reunião', ao lado dos escritores David Salles, Noêmio Spinola e Sonia Coutinho. O primeiro romance veio em 1963: 'Setembro não faz sentido'.
Afastado da política brasileira no período da ditadura militar, por conta de uma bolsa de estudos conseguida junto à Embaixada norte-americana, para mestrado em Administração Pública eCiência Política na Universidade da Califórnia do Sul, João Ubaldo não deixou de ser “perseguido”. Mesmo estando fora do país, teve sua foto publicada entre procurados por ser conhecido como esquerdista.
Já de volta ao Brasil, em 1965 leciona Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia, carreira da qual desiste novamente pelo jornalismo. Em paralelo, continua escrevendo contos e romances, como o aclamado livro 'Sargento Getúlio', com o qual foi vencedor do Prêmio Jabuti em 1972, na categoria 'Revelação de Autor'. A publicação foi lançada também nos EUA, em 1978, com tradução feita pelo próprio autor, com ótima recepção. Em 1974, lança o livro de contos 'Vencecavalo e o outro povo'.
Em 1981, mais um vez por conta de uma bolsa de estudos – concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian – muda-se do Brasil, agora para Lisboa, em Portugal. Lá edita, ao lado do jornalista Tarso de Castro, a revista 'Careta'.
Novamente no Rio de Janeiro, lança 'Política' e a coletânea de contos 'Livro de Histórias' - que depois seria republicado com o título de 'Já podeis da pátria filhos'. A estreia na literatura infanto-juvenil vem com 'Vida e paixão de Pandonar, o cruel', lançado em 1983. No mesmo ano, o sucesso 'Sargento Getúlio' é adaptado para o cinema pelo diretor Hermano Penna, com o personagem principal vivido por Lima Duarte.
O segundo Prêmio Jabuti da carreira foi recebido na categoria 'Romance', pelo livro 'Viva o Povo Brasileiro', editado em 1984. A publicação também levou o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro. João Ubaldo ainda recebeu os louros de uma das festas mais populares do mundo, o carnaval, tendo o livro escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca, em 1987.
Um dos grandes sucessos do autor, 'O sorriso do Lagarto', é lançado em 1989. Dois anos depois, o romance seria adaptado para minissérie da Rede Globo, por Walter Negrão e Geraldo Carneiro, tendo grandes nomes como Maitê Proença e Tony Ramos no elenco.
Em 1990 parte para Berlim, na Alemanha, onde morou por pouco mais de um ano, à convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst. Na cidade, contribuiu com crônicas semanais para o jornal 'Frankfurter Rundschau'. Teve a oportunidade também de trabalhar com rádio, produzindo adaptações para o veículo, entre elas a de seu conto 'O santo que não acreditava em Deus'. O mesmo conto foi adaptado para a Rede Globo, dentro da série 'Caso Especial', veiculada em 1993. No dia 7 de outubro do mesmo ano foi eleto para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga que era ocupada anteriormente pelo jornalista Carlos Castello Branco.
Em parceria com o cineasta Cacá Diegues, trabalha na adaptação para o cinema no clássico de Jorge Amado 'Tieta do Agreste', em 1994. Os dois voltariam a trabalhar juntos nos anos 2000, no roteiro do filme 'Deus é brasileiro', estrelado por Antônio Fagundes e baseado no conto ' O santo que não acreditava em Deus'.
O ano de 1999 marcou outro grande – e polêmico - lançamento de João Ubaldo. 'A Casa dos Budas Ditosos', livro da série 'Plenos Pecados', da Editora Objetiva. Versando sobre a luxúria, o livro é narrado por uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia, falando de sua própria vida, e de como jamais se furtou a viver as infinitas possibilidades do sexo. Editado em diversos países, a venda do romance foi proibida em redes de supermercados portuguesas por conta de seu conteúdo sexual.
Em 2008, João Ubaldo Ribeiro foi agraciado com o Prêmio Camões, considerado o maior reconhecimento da língua portuguesa. 'O albatroz azul' foi o último livro lançado pelo escritor, em 2009. Ele traz a história de um homem muito velho que, apesar de detentor da sabedoria trazida por todos os seus anos de existência, ainda busca apreender algum sentido na vida.
O aprendizado do cinema é um processo lento e gradual que tem no tempo o seu grande mestre. O mesmo se aplica para as demais artes, como a literatura, por exemplo. O conhecimento das obras-primas requer tempo, paciência, dedicação, hábito. Para se adentrar nos universos de Machado de Assis, Dostoiévski, Thomas Mann, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac, Eça de Queiroz, Guimarães Rosa, entre tantos outros, é necessário, e até mesmo conditio sine qua non, a disponibilidade temporal. O que se torna cada vez mais difícil nesta era da informação galopante, de pragmatismo absoluto, quando o excesso de informações acaba por conduzir à desinformação, considerando que o receptor delas não tem tempo para contemplá-las e, por conseguinte, para reprocessá-las e absorvê-las adequadamente. E, neste diapasão, o jornalismo toma carona na leitura rápida, desaparecidos os antigos suplementos literários, as críticas de rodapé. Em seu lugar, o império do audiovisual.
A proliferação de oficinas de crítica cinematográfica é uma maneira, creio, e assim é se me parece, de colocar o carro adiante dos bois. Por exemplo: nos cursos de Letras, ensina-se muita teoria da literatura, enquanto que os alunos não são estimulados para a leitura. No caso do cinema, há a necessidade de se criar um repertório consistente de filmes. Ver e ver filmes, adquirindo, com isso, um hábito. A crítica é a arte da paciência. Depois da contemplação silenciosa de muitos filmes, formado o repertório, é que o interessado pode começar, então, a escrever sobre cinema. Daí porque é um processo lento e gradual.
A decadência da produção comercial é flagrante. Desfeitos os grandes estúdios de Hollywood, em fins da década de 50, o cinema americano, em crise, apostou em novos talentos (Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Roman Polanski, Bob Rafelson, entre tantos), mas, na segunda metade da década de 70, com a aparição das guerras nas estrelas (nada contra elas, mas constatando fatos) e os espetáculos spielberguianos, houve uma infantilização crescente do ponto de vista temático, a ponto de atualmente ser difícil se encontrar um filme que possa ser visto no circuito comercial dos complexos. Toda regra tem exceção, é claro, e no seio da indústria também pode se encontrar bons e severos filmes. As imagens em movimento se vulgarizaram, todavia, com a possibilidade de se fazer cinema a torto e a direito, com um simples celular. E a visão de filmes numa tela de computador não é a mesma da verificada quando somente se podia ver um espetáculo cinematográfico dentro da sala exibidora mediante o pagamento de um ingresso. Conheço uma pessoa que baixa filmes da internet a perder de vista. Conversando com ela, soube que tem mais de mil filmes baixados do espaço virtual. E quantos você assistiu?, perguntei quase atônico. Menos de 30, respondeu-me. Nada contra quem gosta de baixá-los, inclusive porque dá a oportunidade de se ver algumas obras que nunca poderiam ser vistas num circuito normal ou, mesmo, no disquinho.
Quem lê nos dias que correm uma obra fundamental como Os Irmãos Karamazov? Conta-se nos dedos os estudantes de Letras que conhecem Machado de Assis. Mas estou tomando um atalho no que quero aqui colocar: o tempo como fator fundamental e imprescindível do aprendizado cinematográfico. O paralelo com a literatura vem a propósito nesse sentido. Cinema, na verdade, se aprende indo ao cinema. Evidentemente com o embasamento de leituras de obras especializadas, ensaios e críticas publicadas pela imprensa, mas, sobretudo, o interesse pessoal investigativo, a atenção na visão/revisão dos filmes.
O filme não é um rato para ser destrinchado em laboratório com instrumentos precisos. A obra cinematográfica vale-se, em primeiro lugar, do engenho e da arte de um criador, da emoção de um artista e do sentimento desta emoção pelo espectador. Para se sentir e amar o cinema é necessário vê-lo com carinho, com sensibilidade. É um hábito que se adquire, portanto, com o tempo. Infelizmente, o ‘ir ao cinema’ atualmente se transformou num complemento do exercício do ‘shoppear’, um adendo quase à refeição ligeira de um ‘fast food’, quando não se utiliza a própria sala de exibição para a sua prática.
A minha iniciação cinematográfica se fez pela emoção. Nos já distantes anos 50, quando a imagem estava circunscrita à tela luminosa da sala exibidora. Uma formação baseada nos gêneros, na contemplação dos grandes westerns de John Ford, Anthony Mann, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher…, nos musicais de Vincente Minnelli, George Seaton, Stanley Donen, nos épicos espetaculares como Ben Hur, Spartacus, etc, nos melodramas de Douglas Sirk, Leo McCarey, etc, etc, etc. Depois vim a descobrir que o cinema era uma arte ouvindo as palestras de Walter da Silveira e vendo, estupefato, Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, A noite, de Michelangelo Antonioini, Os sete samurais, de Akira Kurosawa, Oito e Meio, de Federico Fellini,Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha…
É preciso, portanto, aprender primeiro a gostar de cinema, a amar o cinema, e este amor só se consegue indo ao cinema.
É preciso ter o corpo fechado para aguentar os riscos diários do perigoso ofício de crítico na área das linguagens artísticas, em todas elas. Comentar analisando, dissecando, apontando os prós e contras, sempre foi a maneira mais ligeira de contrair inimizades. Nestas areias movediças, o indômito André Setaro escolheu o cinema como matéria de pesquisa principal dos seus variados estudos. Daí até o difícil texto analisando filmes foi um pulo. Na Tribuna da Bahia, na época, um novo jornal que se implantou na Bahia trazendo inovações, uma espécie de revolução na imprensa local, conseguiu o posto de crítico da sétima arte, como cronista diário. Por décadas cumpriu esta missão. Sem perder de vistas que ele foi aluno de Dr. Walter da Silveira, na universidade, além de habitué constante das matinês sagradas, todos os sábados, do Clube de Cinema da Bahia. Quando a província pôde conhecer o de melhor da cinematografia internacional, com introdução analítica do mestre Silveira antes das projeções.
Mas os desígnios do destino tiraram de cena, ainda novo, o desbravador dos caminhos para o cinema baiano, passando o bastão para Guido Araújo, coma sua luminosa Jornada de Cinema da Bahia, que virou nordestina, nacional e, por último, Jornada Internacional de Cinema da Bahia. Por 40 anos, foi o oásis das produções do cinema cultural neste país inzoneiro. Cabendo ao André, através da crítica de qualidade e trabalhando com os alunos na universidade, enfatizando o assunto vital, a linguagem cinematográfica... Eles cobriram o hiato deixado por Dr. Walter. E o cinema baiano pôde dar a volta por cima, sacudir a poeira...
Na década de oitenta, André aceitou um convite meu para o papel de um dono de funerária. Ele, digo, o personagem bebia conhaque comgotas de formol. Setaro vestiu com perfeição o dono da funerária, média-metragem, com enredo de fatos extraídos do realismo mágico do próprio Anísio, o poeta citado. Certa feita, André levou uma noiva para assistir a Cidadão Kane, que ele já havia visto vezes sem conta, na saída notou que ela estava em sono profundo, largou-a lá... e era uma vez o noivado... Paixão pelo cinema é isto aí! Ou não?! Evoé, amigo André Setaro!
A vida é imensa. Demasiada. De vez em quando ela nos chega, em alegria ou dor, avassaladora. Ela não cabe. Nem em nós, nem em uma explicação.
Você vai lendo coisas espalhadas por aí e se depara com "tratar compromissos pessoais como de trabalho" ou coisa similar e pensa que melhor é voltar pra cama e enfiar a cabeça embaixo do travesseiro.
Porque tem dia, tem hora, tem dor, que pede um peito maior. Um cigarro pela metade. Um pouco de silêncio. Algum azul.
Pois é, vai sabendo, eu tenho um coração inquieto. Ele te procura, acho. Ou se procura, mas isso não é muito diferente. Se não estiveres em mim, não estarás em lugar algum que eu possa te saber.
Tem esse filme. Que é até bom, mas ficou ofuscado, pra mim, pela frase-verdade: pessoas machucadas são perigosas, elas sabem que podem sobreviver. Onde se lê perigosas, eu digo: livres.
Você chora por isso e não por aquilo. Amigo, habitam-me mares inexplorados, não me falta sal, posso doer por muitas coisas.
Eu não sei se vocês leram a historinha da menina vendedora de fósforos. Eu me sinto assim, espiando, do lado de lá das janelas, os amores, a conversa, a entrega, os erros, os encontros, a vida. Querendo ser assim, também. Querendo ter assim, também. Do lado de cá, com a mão fria, desenho arremedos nos vidros embaçados. Eu faço de conta que. Aceito amores, mãos dadas, pequenas narrativas de quase encontro pra achar que estou sentindo alguma coisa. Invento medos e dores, cravo as unhas na palma até fazer sangue pra fingir sentir alguma coisa. Conto histórias como quem acende os fósforos, tentando acreditar que colecionar pequenos instantes de felicidade possa aquecer o galpão desabitado que trago no peito. As pequenas chamas me fascinam, mas não há calor o bastante nessa caixinha.
Às vezes eu sinto falta de você. Não, isso não é a precisa verdade. Eu sinto falta de mim. Daquela. De quem eu era, do que eu ria, de como eu queria. Sinto falta dos planos, das promessas, das alegrias simples, das dores miúdas. Sinto falta de abrir todas as portas e janelas. Sinto falta de dar festas no meu peito. Sinto falta da sensação de enfim. De estar no lugar certo. De caber. De acertar. Sinto falta das palavras que completavam minhas frases. De poder contar. Sinto falta de acertar e nem pensar sobre isso. Sinto falta de não desejar estar do lado de lá das janelas, que do lado de cá tinha fogueira.
A cada dia que passa, fica mais nítida a percepção do estrago provocado pelos 7 gols a 1 que o Brasil levou da seleção da Alemanha na semifinal do Mineirão da Copa de 2014. O primeiro prejuízo, fundo como todos os outros, é querer relevar o evento, como se fosse apenas um jogo de futebol,quando foi a imolação suicida de uma nação na cena internacional, que estava inteira focada em nós. O Brasil provocou esse haraquiri, pois se iludiu que estava abafando e que poderia triunfar frente a um time disciplinado, coeso e objetivo, mesmo tendo chegado no confronto fatal depois de um sufoco de sucessivos resultados pífios.
Os alemães aproveitaram a recepção de bordel que o Brasil ofereceu ao mundo inteiro sem se deixarem levar pela sacanagem. Descobriram cedo que o país não tinha um lugar à altura para a sua seleção se hospedar, por isso construíram um resort, longe das armadilhas da torcida e da mídia, que se locupletou, junto com c cartolagem bandida e a publicidade invasiva, enquanto escorregávamos para o abismo. A Alemanha treinou nos horários senegalescos dos jogos e se adaptou ao clima, como expedicionários em missão num território hostil. Outras seleções acreditaram na hospedagem e foram cedo para casa, como Inglaterra e Espanha.
De nossa parte, confiamos num técnico que já provou sua competência em outras competições inclusive na Copa da Confederações, mas que deixou-se levar pelo improviso e a soberba. Armou o time ofensivo sem ter atacantes à altura, escancarando um espaço no meio de campo, exatamente o lugar onde a Alemanha governa. Foi como construir a linha Maginot diante da Blitzkrieg. O resultado foi a invasão da nossa capital, o futebol., depois que os tanques do adversário passearam pelo campo como se fossem os conquistadores vikings em vinhas tépidas do Mediterrâneo. Provamos assim que somos um tesouro a céu aberto, pronto para ser dilapidado.
Por que deixamos isso acontecer? Nossa culpa. Destruímos nossas riquezas permitindo que grupos de criminosos dominem o país e o entreguem de bandeja para todas as máfias, que aqui encontraram seu pouso definitivo. Com mais de 50 mil homicídios por ano, e quase 30 mil roubos em São Paulo só no mês de maio último, sabemos a quem pertence a nação que um dia foi soberana: às inumeráveis quadrilhas dentro e fora da cadeia que se servem da cidadania em pânico.
A prostituição institucionalizada, a venda ilegal e permissiva num varejão inominável de drogas em bairros residenciais, a putaria generalizada, a alegria forjada, a neutralização dos protestos, os acordos com o crime para maneirar agora e se deitar na sopa depois, a ineficiência policial, devastada por políticas públicas da insegurança total, a falta endêmica de educação, dos líderes à população, as negociatas políticas, as traições à Justiça, a corrupção permeando cada detalhe da vida nacional, a expropriação indébita via sistema extorsivo de tributos, a economia decrescente convivendo com a propaganda mentirosa, como nas mais célebres tiranias, são a soma que resultaram no fiasco absoluto do jogo decisivo, quando perdemos o direito até de colocar a cara num saco, porque nele está explícito, em letras luminosas e garrafais, a humilhação que cavamos em nossas vísceras e veio à superfície no momento em que mais precisávamos de autoestima.
Lamber as feridas não adianta. Achar que os alemães estão sendo generosos e elegantes depois de nos dar uma surra é considerá-los racialmente superiores. Aturar a soberba e a barbárie argentina, que soube enfrentar os conflitos em campo com a mesma caradurice de seus maus e desprezíveis hábitos, é o que nos resta. Fizeram a festa enquanto nós ficamos com o lixo. Todos somos culpados. Nos iludimos quando estávamos prestes a ter um lampejo de lucidez. Baixamos as armas no momento exato em que a política nos atropelava.
Agora virão as eleições.A totalização digital dos votos, manipuláveis até minutos antes do encerramento do expediente das urnas, como disse um hacker numa palestra (e ninguém deu bola) é que vai decidir quem continuará nos governando. Retalhamos o país em postas e atiramos os pedaços para a voragem das feras. Não somos mais um país. Somos um bando. A derrota suprema, humilhante e acachapante arrancou do nosso peito as cinco estrelas arduamente conquistadas. Voltamos à estaca zero. Chorar só piora. Ignorar o estrago só dará continuidade ao crime. O mínimo que podemos fazer é enxergar direito onde fomos nos meter.
Quando o Dois de Julho e a Festa de Oyá acontecem em Salvador, uma vez por ano, explodem cotidianos de open, point, hot, fashion, all inclusive, resort, e são brasileiras e baianas, o que poucas manifestações conseguem, hoje, no País. A colonização cultural estadunidense asfixiou o Brasil e enfeou a Bahia, território de brasilidade inconteste e de baianidade resistente.
Mas os gestores precisam fazer sua parte para proteger as tradições que sobrevivem ou as perderemos como perdemos as festas de largo, os festejos juninos, as receitas gastronômicas e as expressões idiomáticas. Sem elas, seremos a colônia do azeite de dendê e da farinha de guerra que considera azeite doce e farinha-do-reino mais saborosos e distintos.
Guilherme Bellintani e Fernando Guerreiro, responsáveis pelas festas populares do Município, ainda não se moveram “de com força” em relação às festas de largo, a de Nossa Senhora da Conceição, 8 de Dezembro; a de Santa Luzia, 13 de Dezembro; a de Bom Jesus dos Navegantes, Primeiro do Ano; a Lavagem do Bonfim, segunda quinta-feira de janeiro. E o Carnaval de rua, aleijado pela Indústria nos últimos vinte anos, recebeu remédios anódinos. A Festa de Oyá tem proteção de suas sacerdotisas, seus ebós e seus raios certeiros. E permanece intacta.
Mas o último desfile do Dois de Julho foi desolador. Em ano eleitoral, sabe-se, o cortejo tende a politizar-se e, por isso mesmo, são necessários guardiões de sua estética para impedir o que se viu nas ruas neste ano. Na fronteira entre o Pelourinho e o Santo Antônio, uma Marujada belíssima e solitária salvava o sabor da festa.
No Santo Antônio, a Cabocla e o Caboclo passaram, sozinhos. Depois de um tempo, surgiu o Governador após centenas de seguranças e batedores farejarem vaias, que acabaram acontecendo. Depois de longo vazio, o Prefeito ACM Neto chegou de pop star, quase devorado pela multidão. E o vazio posterior sugeriu que o Cortejo foi político, realizado na primeira data vitoriosa do Brasil insurgente, depois que as sedições, as inconfidências e as revoltas levaram às prisões e à morte milhares de resistentes à colonização. Não é uma data qualquer. É a nossa data mais importante. Para sempre. Perdê-la é ameaçar o que nos resta de baianidade.