Posfácio do Tradutor
Clarice Lispector
Benjamin Moser conta da sua busca pela tradução perfeita da obra de Clarice Lispector. O ponto de partida é A hora da estrela.Em 1954, quando vivia em Washington como mulher de um diplomata brasileiro, Clarice Lispector recebeu a tradução francesa de seu primeiro livro, Perto do coração selvagem. Publicado uma década antes no Rio de Janeiro, este livro foi seu primeiro a ser traduzido no estrangeiro, e o resultado foi calamitoso.
Numa série de cartas que supostamente “prejudicaram a saúde” de seu editor, ela deu conselhos valiosos para seus futuros tradutores.
“Admito, se o senhor quiser, que as frases não refletem a maneira usual de falar, mas lhe garanto que ocorre o mesmo em português”, ela escreve. “A pontuação que eu emprego no livro não é acidental e não resulta de uma ignorância das regras gramaticais. O senhor concordará que os princípios elementares de pontuação são ensinados em qualquer escola. Estou plenamente consciente das razões que me levaram a escolher essa pontuação e insisto que ela seja respeitada.”
Este é um ponto que seus tradutores fariam bem em reter: não importa quão estranha a prosa de Clarice soe em tradução, ela soa igualmente insólita no original. “A estrangeiridade de sua prosa é uma das evidências mais contundentes de nossa história literária e, ainda, da história de nossa língua”escreveu o poeta Lêdo Ivo.
A escritora canadense Claire Varin lamenta a tendência de seus tradutores a “arrancar os espinhos do cactus”.
Essa tendência é compreensível. Pode mesmo ser inevitável. As palavras esquisitas de Clarice Lispector, sua sintaxe estranha, a falta de interesse na gramática convencional produzem frases – ou fragmentos de frases – que vão na direção da abstração sem nunca chegarem lá. O seu objetivo, místico além de artístico, era reorganizar a linguagem convencional para encontrar sentido, sem nunca descartá-lo por completo.
Paradoxalmente, quanto melhor o português do leitor, mais difícil é ler Clarice Lispector. O estrangeiro com uma noção básica das línguas latinas consegue ler A hora da estrela com facilidade. O brasileiro, contudo, frequentemente acha Lispector difícil. Isso porque suas sutis reorganizações da linguagem cotidiana são tão surpreendentes que desconcertam o leitor, principalmente o leitor com pouca experiência de seu estilo.
Quando minha biografia de Clarice Lispector, Clarice,, foi publicada no Brasil, ocorreu um problema surpreendente. Não menos do que cinco revisores examinaram o longo manuscrito. E todos tentaram corrigir, além da minha, a prosa da própria Clarice.
Difícil, mas não intraduzível
Ainda assim, seus livros não são intraduzíveis. Eles não são cheios de regionalismos, gírias, trocadilhos ou piadas internas. A intenção de Clarice é quase sempre perfeitamente clara. O tradutor então tem de resistir à tentação de explicar ou reorganizar sua prosa, o que só pode enfraquecê-la e removê-la da aura “estrangeira” que é a sua marca, e sua glória.
Neste que foi o último livro que Clarice publicou em vida, a linguagem deslocada que se tornou sua marca desde Perto do coração selvagem quase racha. Ela tem uma beleza crepuscular que, mesmo quando não inteiramente inteligível intelectualmente, cria no leitor uma reação emocional e até mesmo tátil.
Em Clarice,, escrevi que muito da fama subsequente de Clarice Lispector, sua duradoura popularidade junto a um público amplo, repousa nesse livrinho, no qual ela conseguiu juntar todos os fios de sua escrita e de sua vida. Explicitamente judaico e explicitamente brasileiro, ligando o Nordeste da infância com o Rio de Janeiro da vida adulta, “social” e abstrato, trágico e cômico, unindo suas questões religiosas e de linguagem com a força narrativa de seus melhores contos, A hora da estrela é um monumento digno da “genialidade insuportável” de sua autora.
É uma grande satisfação pessoal inaugurar a retradução de Clarice Lispector feita pela New Directions com The hour of the Star (A hora da Estrela). Foi o primeiro livro dela que eu li, quando era um estudante do segundo ano de faculdade. Desde então me tornei íntimo do seu trabalho. Mas foi apenas durante a tradução deste livro que realmente compreendi quanta coragem foi necessária para escrever assim.
Espero que essa nova versão, assim como o trabalho dos tradutores responsáveis pelos outros volumes na série, restaure os espinhos ao cactus.
*Benjamin Moser é autor de Clarice, , biografia de Clarice Lispector
publicada pela Cosac Naify. Atualmente é o responsável pela tradução
das obras da escritora para o inglês.Este texto, originalmente intitulado Translator’s afterword, integra aedição americana de A hora da estrela. Tradução: Luiza Franco
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